O ápice do trâmite da ação penal é a prolação da sentença pelo juiz. É nesse momento que o julgador tem a árdua tarefa de avaliar as provas produzidas pela acusação e pela defesa, seja para absolver, seja para condenar o réu.
Na última hipótese referida, uma vez reconhecida a materialidade e a autoria do delito, caberá ao magistrado aplicar a reprimenda conforme dispõe o art. 387 do Código de Processo Penal e o art. 68, caput, do Código Penal, sempre atendendo ao disposto no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal de 1988, que trata do princípio da individualização da pena.
Aliás, o propósito da referida regra constitucional é garantir a aplicação das penas de acordo com as circunstâncias do fato e as condições pessoais do agente infrator, evitando-se, com isso, uma padronização da sanção penal.
Segundo a doutrina, o princípio da individualização da pena se desenvolve em três vertentes: legislativa, judiciária e executória.
Importa, para o estudo encetado, o segundo aspecto, pois está diretamente relacionado com a aplicação da reprimenda pelo juiz sentenciante, que deverá respeitar os limites legais impostos, assim como a regra insculpida no art. 68, caput, do Código Penal, in verbis:
“A pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento”.
Acerca da dosimetria da reprimenda, Guilherme de Souza Nucci leciona:
“Conceito de fixação da pena: trata-se de um processo judicial de discricionariedade juridicamente vinculada visando à suficiência para prevenção e reprovação da infração penal. O juiz, dentro dos limites estabelecidos pelo legislador (mínimo e máximo, abstratamente fixados para a pena), deve eleger o quantum ideal, valendo-se do seu livre convencimento (discricionariedade), embora com fundamentada exposição do seu raciocínio (juridicamente vinculada). Na visão de LUIZ LUISI, “é de entender-se que na individualização judiciária da sanção penal estamos frente a uma ‘discricionariedade juridicamente vinculada’. O Juiz está preso aos parâmetros que a lei estabelece. Dentre deles o Juiz pode fazer as suas opções, para chegar a uma aplicação justa da lei penal, atendo as exigências da espécie concreta, isto é, as suas singularidades, as suas nuanças objetivas e principalmente a pessoa a que a sanção se destina. [...] Diz a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal: “A sentença deve ser motivada. Com o sistema do relativo arbítrio judicial na aplicação da pena, consagrado pelo novo Código Penal, e o do livre convencimento do juiz, adotado pelo presente projeto, é a motivação da sentença que oferece garantia contra os excessos, os erros de apreciação, as falhas de raciocínio ou de lógica ou os demais vícios de julgamento”” (Código penal comentado. 14. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 459).
Precisamente sobre a pena-base, onde as circunstâncias judiciais são consideradas (art. 59, caput, do CP), convém destacar o comportamento da vítima, fator que raramente é considerado no momento da dosimetria.
Sabe-se que, em tese, todas as circunstâncias judiciais podem ser interpretadas em favor, em desfavor ou de forma neutra ao réu. Mas, por lógica e imposição legal, todas elas são inicialmente neutras, uma vez que a pena-base sempre parte do mínimo legal.
Porém, as circunstâncias judiciais normalmente são consideradas para elevar a reprimenda na primeira fase da dosimetria. Isso pode ocorrer, desde que exista prova e fundamentação concreta.
O comportamento da vítima, contudo, foge à regra, visto que não pode ser considerado em desfavor do acusado, mas somente em seu benefício.
Ora, se houve alguma colaboração do ofendido, é de se admitir que a censurabilidade do agente é menor.
Nesse caso, o comportamento da vítima poderá servir para atenuar a reprimenda, caso a pena-base tenha sido elevada por outra circunstância judicial; ou, para neutralizá-la, caso o ofendido não tenha contribuído para a prática do delito.
Sobre o tema, colhe-se da doutrina:
“Comportamento da vítima: É a atitude da vítima, que tem o condão de provocar ou facilitar a prática do crime. Cuida-se de circunstância judicial ligada à vitimologia, isto é, ao estudo da participação da vítima e dos males a ela produzidos por uma infração penal. [...] o comportamento da vítima apenas deve ser utilizado em benefício do réu, devendo tal circunstância ser neutralizada no caso de não interferência do ofendido na prática do crime” (Masson, Cleber. Código penal comentado. 3. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015, p. 337).
“A circunstância judicial do comportamento da vítima apresenta relevância nos casos de incitar, facilitar ou induzir o réu a cometer o crime” (Lima, Rogério Montai de. Guia prático da sentença penal condenatória e roteiro para o procedimento no tribunal do júri. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012. p. 33).
“Não pode gerar agravamento da pena o fato de o comportamento da vítima não ter contribuído para o crime. Com efeito, “o comportamento neutro da vítima não justifica o acréscimo da pena-base”. Ademais, o comportamento da vítima nunca pode ser valorado negativamente ao acusado, pois se trata de circunstância judicial que somente pode abrandar a sua pena” (Fabrício Castagna Lunardi e Luiz Otávio Rezende. Curso de sentença penal: técnica, prática e desenvolvimento de habilidades. 2. Ed. – Salvador: Juspodivm, 2018, p. 176).
A jurisprudência já se manifestou sobre o assunto:
“O comportamento da vítima apenas deve ser considerado em benefício do agente, quando a vítima contribui decisivamente para a prática do delito, devendo tal circunstância ser neutralizada na hipótese contrária, de não interferência do ofendido no cometimento do crime, não sendo possível, portanto, considerá-la negativamente na dosimetria da pena” (STJ. HC n. 255231, julgado em 26/2/2013. Relator: Min. Marco Aurélio Bellizze).
“O fato de a vítima não ter contribuído para o delito é circunstância judicial neutra e não deve levar ao aumento da sanção” (STJ. HC n. 217819, julgado em 21/11/2013. Relatora: Mina. Maria Thereza de Assis Moura).
“O comportamento da vítima não pode ser utilizado em demérito do réu, na medida em que constitui circunstância neutra” (STJ. HC n. 182572, julgado em 3/6/2014. Relator: Min. Nefi Cordeiro).
Vejamos, pois, os exemplos abaixo, que podem, em tese, justificar a redução da pena inicial com fundamento no comportamento do ofendido:
“Será possível que a circunstância judicial do comportamento da vítima atenue a pena do réu quando, por exemplo, no crime de furto, a vítima tiver deixado a chave do veículo dentro dele, com as janelas abertas. Também será possível reduzir a pena no caso do crime de lesão corporal quando, antes da agressão, a vítima havia proferido graves insultos ao réu e praticado vias de fato contra ele” (Fabrício Castagna Lunardi e Luiz Otávio Rezende. Curso de sentença penal: técnica, prática e desenvolvimento de habilidades. 2. Ed. – Salvador: Juspodivm, 2018, p. 176).
“[...] aquele que abertamente manuseia grande quantidade de dinheiro em um ônibus, por exemplo, incentiva a prática de furtos ou roubos por ladrões. E a mulher que, interessada em lucros fáceis, presta favores sexuais mediante remuneração em estabelecimento pertencente a outrem, colabora para o crime de favorecimento da prostituição (art. 228 do CP)” (Masson, Cleber. Código penal comentado. 3. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015, p. 337).
Bem a propósito, importa destacar precedente do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, em que o juízo ad quem reduziu a pena inicial do acusado pela prática do crime de homicídio (art. 121 do CP), com base nos seguintes fundamentos:
“Também merece provimento o pleito defensivo para que o “comportamento da vítima” seja valorado em favor do réu.
Isso porque os depoimentos colhidos judicialmente, tanto do réu como das demais testemunhas, descrevem que a vítima contribuiu para o crime, pois, sem qualquer motivo aparente, desferiu um golpe contra o rosto do apelante assim que ele chegou ao bar e foi cumprimenta-la, o que desencadeou a ação violenta dos réus que levaram ao seu óbito.
Desse modo, a circunstância judicial do “comportamento da vítima” deve ser valorada como favorável ao acusado, visto que a ação da vítima foi decisiva para que os réus iniciassem as agressões” (TJPR. Apelação criminal n. 0001745-57.2013.8.16.0060, julgada em 20/4/2020. Relator: Des. Clayton Camargo).
Noutro caso, agora envolvendo o delito de maus-tratos (art. 136 do CP), o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios assim decidiu:
“A pena-base ficou acima do mínimo legal, três meses de detenção, por causa dos maus antecedentes do réu, já condenado anteriormente. Contudo, o comportamento reprovável da vítima contribuiu para deflagração da ação criminosa, implicando a mitigação da pena: ela deixou a irmãzinha febril na casa, sem qualquer assistência, saindo para fumar narguilé com amigos. Assim, reduz-se a pena ao mínimo legal, dois meses de detenção, sendo inócua a confissão em cotejo com a reincidência, que se neutralizaram, compensando-se reciprocamente. Não há causas de aumento ou redução” (TJDFT. Acórdão n. 881110. Apelação criminal n. 20120510022988, julgada em 9/7/2015. Relator: Des. George Lopes).
É certo que o comportamento da vítima, por natureza, não justifica a prática de crimes, mas não se trata disso! Trata-se de avaliar, no caso concreto, se ela contribuiu para o cometimento de uma infração penal por outrem.
Conclui-se, assim, que a circunstância judicial do comportamento da vítima, caso não seja neutra, pode atenuar a reprimenda do réu, desde que a pena-base tenha sido fixada acima do mínimo legal, em razão de alguma circunstância judicial negativa, sendo inviável a sua utilização em desfavor do acusado.
Autor: Fabiano Leniesky, OAB/SC 54888. Formado na Unoesc. Advogado Criminalista e Consultor Jurídico. Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduado em Advocacia Criminal. Pós-graduando em Ciências Criminais.