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Face perversa do assédio no trabalho

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Agenda 07/06/2020 às 20:39

[1] É uma forma de violência cometida no local de trabalho, pode consistir em atos, gestos, palavras e comportamentos humilhantes e degradantes, praticados de forma sistemática e prolongada contra o empregado, com clara e nítida intenção de persegui-lo, visando à sua eliminação da organização do trabalho.

O autor pode ser o empregador ou superior hierárquico, o então chamado assédio vertical, ou de um colega de serviço, o chamado assédio horizontal, ou até mesmo, um subordinado, o chamado assédio ascendente.

[2] O assédio moral acontece devido ao abuso do poder por parte da liderança formal (cujo poder é atribuído pela autoridade do cargo) ou ainda por conflitos, entre os membros de um grupo, gerados pelas relações de trabalho deterioradas, provocando um cenário de discriminação dentro da organização.

De uma forma geral, o medo do desemprego é uma das principais causas desse fenômeno, e o trabalhador, diante de uma situação conflituosa, acaba se sujeitando a atitudes não profissionais para conviver com a suposição de empenho – e assim, não perder o seu emprego.

É importante a compreensão da dimensão do assédio moral que ultrapassa a dimensão individual, pois o assédio é produto de relações de trabalho degradantes, advindas de um contexto de trabalho desumanizador.

Dessa forma, compreendem-se as dimensões individuais, grupais e organizacionais do assédio moral. "Um longo processo de assédio moral nos indica a existência de uma forma de organização do trabalho perversa, doentia, desrespeitosa em relação ao ser humano".

Além disso, hoje se compreende mais claramente que a liderança opera dentro do grupo, e o sentimento de liderança se desenvolve entre seus participantes – líderes e liderados. O fenômeno da liderança é parte de um processo social e culturalmente construído no grupo, uma inter-relação entre líder e liderados, onde o líder demonstra maior habilidade para administrar e mobilizar o sentido das atividades desenvolvidas pelo grupo.

Dessa forma, entende-se que a liderança é um relacionamento, um processo mútuo de ligação entre aqueles que lideram e os que são liderados, onde o líder a partir da identificação das necessidades daquele grupo dá forma às situações e sentido aos fenômenos vividos pelo grupo e organiza a ação de acordo com este sentido previamente estabelecido.

[3] Com base na lei brasileira, veremos que já existe definição, por parte do legislador, do assédio moral. Ele é chamado de “violência psicológica”, e está delimitado no art. 7º, II, Lei 11.340/2006,  a tão falada “Lei Maria da Penha”. 

Diz a citada lei: “a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;”. 

Ao que parece, o legislador trouxe a definição com base no assédio moral trabalhado por Heinz Leymann (Mobbing), Marie-France Hirigoyen (Le harcélement moral: la violence perverse  au quotidien, traduzido no Brasil como Assédio moral: a violência perversa do cotidiano; Malaise dans le travail: harcèment moral, démeler le vrai du faux, traduzido no Brasil como Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral) e Harald Ege (Mobbing. Che cos’é il terrore psicológico sul posto de lavoro).

 

[4] A Vitimologia em si é uma ciência que estuda o papel da vítima no crime, trazendo uma posição de equilíbrio, colocando a vítima no local central do crime e não o réu, obviamente respeitando todos os seus direitos e garantias. Quando o Estado democrático de direito começou a se organizar e assumir o monopólio da justiça, a vítima foi passada para segundo plano e com o surgimento do Direito Penal moderno, as atenções passaram a ser voltadas para a pessoa do réu.

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Todavia, a vítima já ocupou a posição central do delito, e não apenas uma posição periférica como acontece nos dias atuais,  dava-se a ela a colocação de destaque, a opção de escolha entre a vingança e a compensação, esta era foi conhecida como idade de ouro.

O surgimento da Vitimologia se deu como uma disciplina derivada de uma ciência maior denominada criminologia, entretanto, há divergência doutrinária sobre a existência ou não de uma autonomia científica desse estudo. Existem autores que tratam a Vitimologia como uma ciência autônoma, pelo fato de existir método, finalidade e princípio próprios.

Porém a maior parte da doutrina entende de  maneira diversa, qual seja, a Vitimologia sendo um ramo de uma ciência maior denominada Criminologia. Ocorre também um terceiro posicionamento isolado que não reconhece a existência da Vitimologia, nem como ramo específico da criminologia, tampouco por ciência autônoma.

A análise da vítima no contexto delitivo é extremamente importante no caso concreto, pois irá gerar consequências jurídicas podendo, em alguns casos, ocorrer a exclusão da culpabilidade do agente

 pela aplicação da inexigibilidade de conduta diversa, ou até mesmo a exclusão do próprio crime em virtude da inexistência da tipicidade. A relação entre a vítima e o agente ofensor no contexto delitivo

não é caracterizada apenas pela divergência de vontades, ou seja, pela contraposição, mas também pela convergência de vontades, pela harmonia.

[5] Recentemente, a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que traz mecanismos para o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, foi alterada pelas leis 13.641/18 e 13.505/17.  Houve avanços, porém o progresso poderia ter sido maior. No que tange à Lei 13.505/17, acrescentou os artigos 10-A, 12-A e 12-B na Lei 11.340/06, com o intuito de fortalecer a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores previamente capacitados, preferencialmente do sexo feminino (artigo 10-A). O atendimento pode abranger providências como proteção policial, tratamento médico e transporte.

A oitiva de vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar contra a mulher deve trilhar o seguinte procedimento (artigo 10-A, parágrafo 2º): a) realização em recinto especialmente projetado, com equipamentos próprios à idade da mulher e à gravidade da violência sofrida; b) quando for o caso, intermediação por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial; c) registro em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrarem o inquérito.

[6] Feminicídio significa a perseguição e morte intencional de pessoas do sexo feminino, classificado como um crime hediondo no Brasil... Alguns estudiosos do tema alegam que o termo feminicídio se originou a partir da expressão "genocídio", que significa o assassinato massivo de um determinado tipo de gênero sexual.

O feminicídio é o homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher (misoginia e menosprezo pela condição feminina ou discriminação de gênero, fatores que também podem envolver violência sexual) ou em decorrência de violência doméstica. A lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal brasileiro, incluindo como qualificador do crime de homicídio o feminicídio.

Violência doméstica ou familiar: quando o crime resulta da violência doméstica ou é praticado junto a ela, ou seja, quando o homicida é um familiar da vítima ou já manteve algum tipo de laço afetivo com ela. Esse tipo de feminicídio é o mais comum no Brasil, ao contrário de outros países da América Latina, em que a violência contra a mulher é praticada, comumente, por desconhecidos, geralmente com a presença de violência sexual.

Menosprezo ou discriminação contra a condição da mulher: quando o crime resulta da discriminação de gênero, manifestada pela misoginia e pela objetificação da mulher Quando o assassinato de uma mulher é decorrente, por exemplo, de latrocínio (roubo seguido de morte) ou de uma briga simples entre desconhecidos ou é praticado por outra mulher, não há a configuração de feminicídio.

[7] A principal obra no Brasil, sobre Assédio moral, é “Assédio moral: a violência perversa do cotidiano”, de Marie-France Hirigoyen, pela editora Bertrand Brasil. Nesse livro vemos que acontecem assédios familiares entre casais e entre descendentes / ascendentes. No entanto, por sorte, as famílias são locais onde o assédio moral é menos frequente do que no trabalho.

No entanto, o assédio familiar é mais destrutivo que o assédio laboral, pois a família é o local de abrigo emocional e afetivo de uma pessoa. Em quase todos os casos de assédio moral familiar, vemos que se aplicam as medidas protetivas da famigerada “Lei Maria da Penha”, descritas nos arts. 22 e 23. Mas o problema maior não é resolvido pela lei. O vínculo emocional que o agressor moral provoca na vítima é tão grande que a própria vítima não consegue se desvincular. 

É necessário um acompanhamento psicológico que não incuta na pessoa a ideia de que ela é um “masoquista incubado”, pois muitos psicólogos entendem assim.  Na verdade, a vítima de assédio moral é justamente o perfeccionista, a pessoa de caráter, que querem fazer o melhor para o outro, em vez de pensar primeiro só em si.

[8] O líder tem papel primordial no que diz respeito à prevenção do desenvolvimento do assédio moral. A partir de uma liderança transparente e de uma gestão organizacional focada nos indivíduos, em que as relações de trabalho sejam estruturadas a partir de um sentido ético, é possível propiciar a existência de relações interpessoais saudáveis no trabalho, nas quais o trabalhador significará seu trabalho e seu crescimento pessoal.

O desenvolvimento de uma consciência ética (respeito à singularidade, à subjetividade e diversidade, autonomia, etc.) por parte das lideranças e a influência destas em relação à equipe por meio da administração do sentido de pertença ao grupo possibilita a ressignificação tanto do ambiente organizacional quanto das relações de trabalho, fazendo com que estas se tornem mais humanas. 

Uma liderança que gera sentido ético e humano, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento constante dos sujeitos, pode propiciar um ambiente de trabalho no qual a possibilidade de aparecimento do assédio moral seja minimizado ou extinto.

[9] Em razão dos altíssimos índices de crimes cometidos contra as mulheres que fazem o Brasil assumir o quinto lugar no ranking mundial da violência contra a mulher, há a necessidade urgente de leis que tratem com rigidez tal tipo de crime. Dados do Mapa da Violência revelam que, somente em 2017, ocorreram mais de 60 mil estupros no Brasil.

Além disso, a nossa cultura ainda se conforma com a discriminação da mulher por meio da prática, expressa ou velada, da misoginia e do patriarcalismo. Isso causa a objetificação da mulher, o que resulta, em casos mais graves, no feminicídio.

[10] A ressignificação que pode ser realizada pela liderança, em conformidade com o contexto da organização e suas estratégias, no sentido de clarificar o papel de cada indivíduo da equipe, iluminar condições e relações de trabalho transparentes e humanizadoras, terá papel central tanto no que diz respeito a saúde mental do trabalhador quanto nas possibilidades de crescimento e desenvolvimento da organização.

Quanto maior for a intelectualidade das organizações em relação à humanização do ambiente de trabalho e das relações aí existentes, tanto menor será o risco de que ocorra dentro destas o assédio moral.

A mudança da gestão pautada no sentido da competitividade para uma gestão que objetiva e possibilita o sentido do desenvolvimento individual do trabalhador, bem como da equipe de trabalho como um todo, minimiza os conflitos existentes em relação à hierarquia e a disputa pelo crescimento profissional entre os indivíduos.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

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