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AS LACUNAS IDEOLÓGICAS NO SISTEMA JURIDICO POSITIVO E REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS

Agenda 08/06/2020 às 09:41

O ARTIGO TRATA SOBRE O TEMA DAS LACUNAS IDEOLÓGICAS.

AS LACUNAS IDEOLÓGICAS NO SISTEMA JURIDICO POSITIVO E REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS

Rogério Tadeu Romano

 

I – AS LACUNAS IDEOLÓGICAS

Já ensinou Norberto Bobbio(Teoria do Ordenamento Jurídico, tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, 4º edição, pág. 21) que o direito não é norma, mas um conjunto coordenado de normas, sendo evidente que uma norma jurídica não se encontra jamais só, mas está ligada a outras normas, com os quais forma um sistema normativo.

Daí vem a teoria do ordenamento jurídico, que se constitui uma integração da teoria da norma jurídica, cujas balizas foram elencadas por Kelsen, dentro do que se chamou positivismo jurídico.  

Ressente-se o hermeneuta da situação em que se encontra diante da falta de critérios válidos para decidir qual norma deve ser aplicada

Entende-se ainda por “lacuna” a falta não já de uma solução, qualquer que seja ela, mas de uma solução satisfatória, ou em outras palavras, não já a falta de uma norma, mas a falta de uma norma justa, isto é, de uma norma que se ensejaria que existisse, mas que não existe. Uma vez que essas lacunas derivariam não da consideração do ordenamento jurídico com ele é, mas da comparação entre ordenamento jurídico como ele é e como deveria ser.

Mas, o ordenamento jurídico não é completo. Há vazios que a realidade põe nas relações sociais que não estão suficientemente abrangidos pela norma jurídica.

Estamos diante de lacunas ideológicas

As lacunas ideológicas são lacunas de iure condendo(de direito a ser estabelecido), já as lacunas legais são de iure conditio(do direito já estalecido).

Essa distinção entre essas lacunas foram estabelecidas por Brunetti(Sul valore del problema dele lacune, 1913).

Brunetti sustentou que que, para se poder falar de completude ou de incompletude ou de uma coisa qualquer, é mister não considerar a coisa em si mesma, mas compará-la com alguma outra coisa.

Assim lançou dois casos:

  1. Quando comparo uma determinada coisa com o seu tipo ideal ou com aquele que deveria ser, tem sentido perguntar se uma dada mesa é perfeita ou não somente se comparar com aquela que deveria ser uma mesa perfeita;
  2. Quando comparo a representação de uma coisa com a coisa representada, por exemplo, um mapa da Itália. Com relação ao ordenamento jurídico, Brunetti Sustenta que se o consideramos em si mesmo, isto é, sem compará-lo com alguma outra coisa, perguntar-se é completo ou não tornar-se sem sentido, como se nós perguntássemos se o ouro é completo ou não torna-se sem sentido, como se perguntássemos se o ouro é completo, se o céu é completo. Seria necessário para que o problema das lacunas tenha sentido seria preciso comparar o ordenamento jurídico real com o ordenamento jurídico ideal.

Para Brunetti, o problema das lacunas têm três faces:

  1. O problema de o ordenamento jurídico, considerado em si próprio, ser completo ou incompleto; o problema assim colocado(colocação mais frequente entre os estudiosos do direito) não tem sentido;
  2. O problema de ser completo ou incompleto o ordenamento jurídico, tal como ele é, comparado comparado ao ordenamento jurídico ideal: esse problema tem sentido, mas as lacunas que aqui vêm a baila são lacunas ideológicas que não interessariam aos juristas, sendo problema para os que legislam;
  3. O problema de ser completou ou incompleto o ordenamento legislativo, considerado como parte do todo, isto é, com o ordenamento jurídico; esse problema tem sentido e o único caso em que se pode falar das lacunas no sentido próprio da palavra. Seria o caso de lacunas ideológicas. Isso existe na oposição entre aquilo que a lei diz e aquilo que deveria dizer para ser perfeitamente adequada ao espírito de todo o sistema.

Para Brunetti, afinal, o problema da completude é um problema sem sentido, e de lá onde tem sentido, as únicas lacunas, das quais se pode mostrar a existência, são lacunas ideológicas.

II – O MANDADO DE INJUNÇÃO

Nesse contexto é por demais importante citar o problema do chamado mandado de injunção.

O mandado de injunção é uma garantia constitucional instituída pelo artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal, onde se lê: “LXXI - conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”

Anotou José Afonso da Silva(Curso de direito constitucional positivo, 5º edição, pág. 386) que o mandado de injunção é um instituto que se originou na Inglaterra, no século XVI, como essencial remédio da equity, nascendo do chamado juízo de equidade.

Sendo assim é considerado um remédio outorgado mediante um juízo de discricionariedade quando falta uma norma legal(statutes), regulando a espécie quando a Common Law não oferece proteção suficiente.

Assentar-se-ia na valoração judicial dos elementos do caso e dos princípios de justiça material segundo uma pauta de valores sociais.

Temos que ver a garantia constitucional em foco dentro dos limites de nosso sistema romano-germânico onde a legalidade, a par do princípio da legalidade,  é a tônica. Ninguém é obrigado a uma conduta  senão em virtude de lei.

Disse o ministro Alexandre de Moraes(Direito constitucional, 2003,p.179): “ O mandado de injunção consiste em uma ação constitucional de caráter civil e de procedimento especial, que visa suprir uma omissão do Poder Público, no intuito de viabilizar o exercício de um direito, uma liberdade ou uma prerrogativa prevista na Constituição Federal”.

O objeto do writ é assegurar o exercício: de qualquer direito constitucional não regulamentado; de liberdade constitucional não regulamentada, sendo de notar que as liberdades são previstas em normas constitucionais normalmente de aplicabilidade imediata, como explica a doutrina; das prerrogativas que são próprias e inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, quando não regulamentadas.

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O que é norma regulamentadora:

É ainda José Afonso da Silva que aponta que norma regulamentadora é toda medida para tornar efetiva uma norma constitucional.

Realiza o mandado de injunção, de forma concreta, em favor do impetrante, um direito, liberdade ou prerrogativa, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o seu exercício.

Outorga-se, com o mandado de injunção, diretamente, o direito reclamado independente de uma regulamentação da matéria enfocada na norma constitucional.

Como já decidiu o STF aplica-se o mandado de injunção  somente à omissão de regulamentação de norma constitucional, pois não há possibilidade de “ação injuncional, com a finalidade de compelir o Congresso Nacional a colmatar omissões normativas alegadamente existentes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em ordem a viabilizar a instituição de um sistema articulado de recursos judiciais, destinado a dar concreção ao que prescreve o Artigo 25 do Pacto de S. José da Costa Rica”

A doutrina entende que nas decisões aditivas(também ditas modificativas ou manipuláveis) a inconstitucionalidade detectada não reside tanto naquilo que a norma preceitua quanto naquilo que ela não preceitua; ou, por outras palavras, a inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição. E, então, o órgão de fiscalização acrescenta (e, acrescentando, modifica) esse elemento que falta.

Uma lei ao atribuir um direito ou uma vantagem(como exemplo, uma pensão) ou ao adstringir a um dever ou ônus(por exemplo, uma incompatibilidade), contempla certa categoria de pessoas e não prevê todas as que se encontram na mesma situação, ou acolhe diferenciações infundadas. Como irá se resolver? Eliminar os preceitos que, qualitativa ou quantitativamente violem o princípio da igualdade? Ou, ainda, pelo contrário, invocando os valores e interesses constitucionais que se projetam nessas situações, restabelecer a igualdade? Decisões aditivas são, em especial, as que adotam o segundo termo da alternativa.

III – SENTENÇAS ADITIVAS

Por fim, falo das chamadas sentenças aditivas.

Nas decisões aditivas há um segmento ou uma norma que se acrescenta com idêntico fim.

Canotilho(Direito constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 990) advertiu que através de sentenças desse tipo o tribunal: a) alarga o âmbito normativo de um preceito, declarando inconstitucional a disposição na parte em que não prevê certas situações que deveria prever(sentenças aditivas); b) declara a inconstitucionalidade de uma norma na parte ou nos limites em que contém uma prescrição em vez de outra(sentença substitutiva).

Anotou a propósito Canotilho:

“Não obstante as categorias das sentenças aditivas e substitutivas serem originárias da doutrina e jurisprudência italianas, sugestivamente, utilizam o conceito geral de sentenças manipulativas para designar as técnicas de decisão transformadoras do significado da lei”.

Os italianos falavam em “sentenze additive. Em Portugal houve decisões do Tribunal Constitucional que produziram efeitos normativos semelhantes aos das sentenças manipulativas italianas.

Observe-se o Acórdão do Ac. 143/85(caso de exercício da advocacia por docentes), na medida em que alargou a exceção à incompatibilidade com o exercício da advocacia a todos os docentes(e não apenas, como prescrevia o Estatuto da Ordem dos Advogados aos docentes de disciplinas de direito. No Ac. 203/86, houve o caso dos beneficiários de pensões, pois ao julgar-se inconstitucional a norma que mandava aplicar a disposição menos favorável aos beneficiários das pensões fixadas antes da de uma certa data, acabou por estender o âmbito da aplicação do regime mais favorável, como se lê de Nunes de Almeida e ainda de Rui Medeiros(A decisão de inconstitucionalidade páginas 456 e seguintes).

Das decisões aditivas distinguem-se as decisões integrativas, através das quais se interpreta certa lei(com preceitos insuficientes e, nessa medida, eventualmente inconstitucionais) complementando-a com preceitos da Constituição sobre esse objeto que lhe são aplicáveis e porque diretamente aplicáveis. Em Portugal, tem-se por exemplo os acórdãos n. 329/99 e 517/99 do Tribunal Constitucional de 2 de junho e de 22 de setembro(sobre licenças de loteamentos, de obras de urbanização e de construção).

Como ensinou Jorge Miranda(Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 514), a diferença está em que nas decisões aditivas o órgão de fiscalização formula, implícita ou indiretamente, uma regra, ao passo que nas decisões integrativas ele vai apoiar-se diretamente numa regra constitucional.

O Tribunal Constitucional de Portugal enfrentou decisões aditivas nos seguintes casos, como exemplo: Acórdão nº 143/85, de 30 de julho(sobre atividades docentes e advocacia), Acórdão 191/88 de 20 de outubro(sobre pensões por morte em caso de acidentes do trabalho), dentre outras.

Escreveu Rui Medeiros(citado por Jorge Miranda, obra mencionada, às folhas 515) que tais decisões brigariam, com o princípio democrático e com o da separação de poderes. Ainda que se admitisse que a proibição do retrocesso pudesse impedir a decisão de inconstitucionalidade de uma lei que concretizasse em termos discriminatórias uma norma constitucional, daí não se retiraria uma legitimidade geral dessas decisões, pois não se vislumbraria como uma lei inconstitucional poderia condicionar a atuação futura do legislador legitimado democraticamente. Substituindo a vontade do legislador por outra, elas só em casos excepcionais seriam de aceitar e deveriam ser limitadas na medida do possível, como entendeu Gomes Canotilho(Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva, in Perspectivas constitucionais, obra coletiva, Coimbra, 1996, páginas 882 e seguintes).

Nessa orientação, a modificação da lei proposta pelo Tribunal Constitucional não seria vinculativa para o tribunal a quo na fiscalização concreta e na fiscalização abstrata não beneficiaria da força obrigatória geral da declaração de inconstitucionalidade.

Todavia, Jorge Miranda(obra citada, pág. 515) não segue tal posição. Disse ele: “Embora reconhecendo a necessidade de divisas estreitas e de se não menosprezarem os condicionalismos financeiros, à luz do postulado da “reserva econômica do possível”, não vemos como recusar esse tipo de decisões perante discriminações ou diferenciações infundadas, frente as quais a extensão do regime mais favorável se favorece, simultaneamente, como a decisão mais imediata para a sensibilidade coletiva e a mais próxima dos valores constitucionais. Há imperativos materiais que se sobrepõem a considerações orgânico-funcionais.”

Como disse Jorge Miranda, o órgão de fiscalização não se comporta como legislador, no caso, pois que não age por iniciativa própria, nem segundo critérios políticos; age em processo instaurado por outrem e vinculado aos critérios de interpretação e construção jurídica inerentes à hermenêutica constitucional.

Dito isso observo recente pronunciamento do ministro Roberto Barroso quanto de interpretação que deu com relação a edição da Medida Provisória 960/2020.

A MP do governo estabelece que as autoridades só poderão ser responsabilizadas se ficar comprovado o dolo (ação intencional) ou “erro grosseiro”. No entanto, estipula que o chamado “erro grosseiro" só estará configurado a partir de cinco variáveis, o que, na prática, torna muito restritivo o enquadramento de autoridade por essa conduta.

Por nove votos a um, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o alcance da medida provisória (MP) do presidente Jair Bolsonaro que livra qualquer agente público de processos civis ou administrativos motivados por ações tomadas no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. Segundo os ministros da Corte, medidas que possam levar à violação aos direitos à vida e à saúde ou sem o embasamento técnico e científico adequado poderão ser punidas. No julgamento, houve críticas a ações que ignorem a ciência e, mesmo sem citar nomes, à gestão do governo na área da saúde.

Em seu voto, o ministro Barroso estabeleceu que erro grosseiro é ato administrativo que “ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado por inobservância: i) de normas e critérios científicos e técnicos; ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”.

O ministro Barroso também propôs que “a autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente as normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria tais como estabelecidos por o e entidades médicas e sanitárias nacional e internacionalmente e sanitárias reconhecidas, e da observação dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.

O ministro Luís Roberto Barroso, propôs que, na interpretação da MP, seja considerado como erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação do direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado em razão da inobservância de normas e critérios científicos e técnicos.

Trata-se, portanto, de um exemplo de decisão aditiva que vem a ser proposta.

A MP deveria inserir em seu texto, na interpretação do voto do ministro, alguns critérios que  nela não estariam explicitamente acentuados.

Mas outros princípios ali deveriam ser citados: o da isonomia, da razoabilidade, o da proporcionalidade

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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