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MANIPULAÇÃO DE DADOS E FALSIDADE IDEOLÓGICA

Agenda 08/06/2020 às 18:01

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE FATOS CONCRETOS E SUAS REPERCUSSÕES.

MANIPULAÇÃO DE DADOS E FALSIDADE IDEOLÓGICA

 

I – O FATO

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, fez duras críticas na noite do dia 6 de junho do corrente ano,  às mudanças feitas pelo Ministério da Saúde na divulgação dos dados sobre casos e óbitos de Covid-19 no Brasil. O ministro escreveu em sua conta no Twitter que "a manipulação de dados é manobra de regimes totalitários" e disse ainda que as mudanças não vão "isentar responsabilidade pelo eventual genocídio".

"A manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários. Tenta-se ocultar os números da #COVID19 para reduzir o controle social das políticas de saúde. O truque não vai isentar a responsabilidade pelo eventual genocídio. #CensuraNao #DitaduraNuncaMais", escreveu o ministro.

No dia 5 de junho, a pasta modificou a forma de divulgar os dados e deixou de informar o total de casos e óbitos do país e de cada estado. Somente os casos e mortes confirmadas nas últimas 24 horas passaram a ser informados. Além disso, tirou o portal do ar. No lugar, apareceu uma mensagem que dizendo que a plataforma estava em manutenção.

Isso diz respeito às declarações de Carlos Wizard, cotado para assumir a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, para quem o número de mortos por covid-19 no país foi inflado por gestores estaduais e municipais com objetivo de receber mais recursos do governo.

A declaração de Wizard foi publicada pela coluna da jornalista Bela Megale, de "O Globo". De acordo com o texto, Wizard disse que “tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid."

O texto da coluna diz também que Wizard, que ainda não assumiu formalmente o cargo no Ministério da Saúde, afirmou que o número de mortos é "fantasioso ou manipulado" e que fará uma recontagem por acreditar que a quantidade é inflada.

Segundo o Gaúcha ZH Saúde, ”próximo do ministro interino, Wizard já tem atuado como conselheiro da pasta desde abril, sem remuneração. O convite, afirma, veio do general, com quem atuou em Roraima em operações de atendimento a refugiados venezuelanos — Wizard é missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.”

Segundo o site da Folha de São Paulo, o empresário Carlos Wizard Martins, ex-dono da escola de inglês que mantém seu nome, anunciou, no dia 7 de junho,  que deixou de ser conselheiro do Ministério da Saúde e recusou o convite para virar secretário da pasta.

Se isso não bastasse, dentro desse escândalo, o site do Estadão, em 8 de junho do corrente ano, informou que “a mudança na forma como o Ministério da Saúde divulga dados sobre a covid-19 ocorreu após o presidente Jair Bolsonaro determinar que o número de mortes ficasse abaixo de mil por dia. A ordem foi repassada ao ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, que entregou a demanda à sua equipe. 

Para se enquadrar no limite imposto pelo chefe do Executivo, a solução foi separar óbitos ocorridos nas últimas 24 horas das que haviam ocorrido em dias anteriores, mas só confirmadas naquele período.  Até a semana passada, o Ministério da Saúde somava todas as mortes registradas em um mesmo dia, independentemente de quando ela havia ocorrido.”

II – OS PRECEDENTES EM GOVERNOS AUTOCRÁTICOS

O episódio tem precedente no Brasil.

Era a ditadura militar e o ano de 1971.

Sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici, o país vivia o “milagre econômico”, o auge da repressão e da tortura, além de censura nas artes, televisão e imprensa.

Na zona sul de São Paulo, eclodia a maior epidemia de meningite da história do país, mas autoridades sanitárias não podiam falar a respeito, muito menos a imprensa. A omissão levou ao avanço da doença, que em quatro anos já tinha assolado o país.

Na china, diante da epidemia da covid-19 houve silêncio da parte do governo da China, uma ditadura.

Igualamo-nos  a países como a China, a Rússia, a Coréia do Norte, a Bielorrússia, cujos dados oficiais são ridicularizados mundialmente e que tem um ponto em comum: são governos autocráticos.

III – O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA

Segundo o que noticiou o portal Terra, “o Ministério Público Federal abriu procedimento extrajudicial para apurar o atraso e a omissão na divulgação de dados sobre o novo coronavírus no País. A Procuradoria enviou pedido de cópia dos atos administrativos do Ministério da Saúde que resultaram nas mudanças promovidas pelo governo e cobrou esclarecimentos sobre os fundamentos técnicos sobre o caso.”

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Não se admitem na Administração ações sigilosas.

No ensinamento de Hely Lopes Meirelles(Direito administrativo brasileiro, 13ª edição, pág. 564), a publicidade, como princípio da administração pública, abrange toda atuação estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de seus atos como ainda de propiciação do conhecimento da conduta interna de seus agentes. Essa publicidade, como lembrou José Afonso da Silva(Curso de direito constitucional positivo, 5ª edição, pág. 565), atinge, assim, os atos concluídos e em formação, os processos em andamento e finais, as atas de julgamentos das licitações e os contratos de quaisquer interessados, bem como os comprovantes de despesas e as prestações de contas submetidas aos órgãos componentes. Tudo isso é papel ou documento público que pode ser examinado na repartição por qualquer interessado e dele obter certidão ou fotocópia autenticada para fins constitucionais.

IV – O CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA

Aplica-se, para tanto, o artigo 299 do CP.

O que é documento?

Documento, como conceitua Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de direito penal, volume III, 22ª edição, Atlas, pág. 212) é toda peça escrita que condense graficamente o pensamento de alguém, podendo provar um fato ou a realização de algum ato dotado de significação ou relevância jurídica. O escrito deve ser feito a mão ou por meio mecânico ou químico de reprodução de caracteres. Mas, inexiste a falsificação de documento se trata-se de simples reproduções fotográficas (xerocópias) não autenticadas que não se conceituam como documentos (RTJ 108/156). Mas, é essencial que o documento possa apresentar relevância no plano jurídico, gerando consequências no plano jurídico (RTJ 616/295). Nelson Hungria conceitua o documento como “ todo escrito especialmente destinado a servir ou eventualmente utilizável como meio de prova de fato juridicamente relevante”.

O documento, via de regra, é um papel escrito. Mas nem todo papel escrito é um documento, pois nem todo papel tem força probante.

De toda sorte, a veracidade probatória é a objetividade jurídica desses crimes em estudo.

São requisitos do documento:

  1. Forma escrita, redigidos em língua nacional, seja a mão ou a máquina;
  2. Determinação da autoria;
  3. Conteúdo (uma manifestação de vontade, uma exposição dos fatos);
  4. Relevância jurídica

A falsidade que o artigo 299 do CP incrimina é a ideológica que se refere ao conteúdo do documento e não o falso material(vide o artigo 298 do CP).

São três as modalidades alternativamente previstas: a) omitir declaração que dele devia constar. A conduta é omissiva. O agente omite(silencia, não menciona) fato que era obrigado a fazer constar; b) inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita. O agente diretamente insere(faz constar, coloca) declaração falsa ou diversa da que devia ser consignada; c) fazer inserir declaração falsa ou diversa de que devia ser escrita. O comportamento é semelhante, mas o agente atua indiretamente, fazendo com que outrem insira a declaração falsa ou diversa. Em qualquer das modalidades é indispensável que a falsidade seja capaz de enganar e tenha por objeto fato juridicamente relevante, ou seja, é mister que a declaração falsa constitua elemento substancial do ato ou documento, pois “uma simples mentira, mera irregularidade, simples preterição de formalidade, não constituirão tal tipo, como ensinou Magalhães Noronha(Direito penal, 1995, volume IV, pág. 163). A alteração da verdade deve ser juridicamente relevante e ter potencialidade para prejudicar direito, caso contrário será “um dado supérfluo, inócuo, indiferente”, como explicou Miguel Reale Júnior(RT 667/250). Já no que concerne à simulação, a doutrina estudada não se encontra pacificada. Uns a vinham como falsidade ideológica(contra Bento de Faria, Código Penal Brasileiro, 1959, v. VII, pág. 53). Observo que no que concerne ao abuso de folha assinada em branco, exigia-se que se tratasse de papel entregue ou confiado ao agente para preenchimento. Caso contrário, o falso seria material.

O elemento do tipo é o dolo, na vontade livre e consciente de omitir, inserir ou fazer inserir e o elemento subjetivo do tipo referido pelo especial fim de agir.

O crime consuma-se com a efetiva inserção ou omissão.

Admite-se a tentativa, como se lê de Damásio de Jesus(Direito Penal, 1995, volume IV, pág. 53). Contra também não admitindo a tentativa na modalidade de inserir, tem-se os ensinamentos de Magalhães Noronha(Direito Penal, 1995, volume IV, pág. 166) e ainda Júlio Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, 1985, volume III, pág. 237).

V – CRIME DE RESPONSABILIDADE

No caso há crime de responsabilidade do atual presidente da República.

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

........

4 - expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da Constituição;

.........

7 - proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decôro do cargo.

O Presidente da República teria cometido  “crimes contra a probidade na administração pública, como a expedição de ordens contrárias à Constituição Federal, a teor da Lei nº 1.079/50.

Constitui crime de responsabilidade contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. De forma semelhante dispunha o Decreto nº 30, de 1892, ao preceituar, no artigo 48, que formava seu capitulo VI, ser crime de responsabilidade contra a probidade da administração “comprometer a honra e a dignidade do cargo por incontinência política e escandalosa, ......, ou portando-se com inaptidão notória ou desídia habitual no desempenho de suas funções”.

Como disse ainda Paulo Brossard (O impeachment, 1992, pág. 56), “não é preciso grande esforço exegético para verificar que, na amplitude da norma legal – “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” – cujos confins são entregues à discrição da maioria absoluta da Câmara e de dois terços do Senado, cabem todas as faltas possíveis, ainda que não tenham, nem remotamente, feição criminal.

Tal se dá em decorrência do princípio republicano, na possibilidade de responsabilizá-lo, penal e politicamente, pelos atos ilícitos que venha a praticar no exercício das funções.

Paulo Brossard (obra citada, pág. 132) fala em pena política que o Senado impõe, ao acolher acusação da Câmara consistente na destituição do presidente da República. Para o ministro Brossard, dado que impropriamente chamados crimes de responsabilidade, enquanto infrações políticas, não são crimes, mas ilícitos de natureza política, como política é a pena a eles cominada.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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