Cidadão. Cidadania.
Se fosse possível "gastar" palavras, estas seriam
palavras gastas. Desde quando se começou o afastamento
dos militares do comando de Estado, muito se falou - e ainda muito
se fala - em cidadania; colocou-se "o cidadão"
no centro de todo e qualquer discurso político. Resta,
contudo, questionar o que significa e o que pode significar cidadania
para que possamos dizer se somos ou não cidadãos
e qual a amplitude desta qualificação.
Em Semiologia e Direito, procurei reconstruir um certo enfoque para a sociedade, tal qual a conhecemos. Permito-me resumir o que afirmei então: é possível compreender o termo "Estado" como um adjetivo - não um substantivo -, indicando uma característica da organização socio-política humana, determinada ao longo da evolução histórica da humanidade. Cuida-se de um valor institucional e uma estrutura de organização social (com mecanismos protetores). Esta estrutura social e todos os instrumentos que a asseguram revestem-se de uma significação específica: significam "Estado". Uma organização de indivíduos (o aparelho de Estado) controla esta estrutura social, correspondendo-lhe um poder de Estado, isto é, uma capacidade institucional de ação reguladora sobre a estrutura social, a partir do manejo e do emprego de instrumentos repressivos, ou coercitivos, de Estado (1995: 87).
Conquanto vivamos em uma sociedade de palavras, este poder de Estado exerce-se por normas, ou seja, "enunciados do aparelho de Estado (ou seja, dos detentores do poder de Estado, a elite política organizada e institucionalizada - em suas estreitas relações com a elite econômica da sociedade) que visam regular a existência e convivência social pelo estabelecimento de modelos hipotéticos de comportamentos (e situações devidas), revestindo-lhes de uma significação e um valor autorizado (jurídico), dispostos em um sistema imposto (que é o Direito), de onde cada unidade retira a sua imperatividade. A norma jurídica deve ser cumprida voluntariamente pelos súditos de Estado ou poderá ser aplicada a sanção que lhe corresponde (em sentido lato sensu, quer dizer, tanto a pena prevista, quanto a execução forçada da obrigação normativa, ou a anulação do ato etc), usados os poderes repressivos da estrutura organizada de Estado" (Idem: 86). Por tais razões, denuncio que "o fim último do Direito é manter a estrutura de Estado o mais estável possível, com o que culmina por garantir que um modelo de vida e organização social (e, por conseqüência, um modelo econômico) se perpetue, referenciado pelos interesses dos que detêm o poder necessário para validá-los e efetivá-los" (Idem: 87).
Pode-se argumentar que vivemos em um tempo de democracia, não havendo muitos ditadores e ditaduras pelo mundo. Muito se evoluiu, reconheço, mas muito há por evoluir. O objetivo deste trabalho é justamente demonstrar a existência de falhas no modelo político vigente. Nossas estruturas políticas estão viciadas na centralização de poder e no desrespeito ao interesse público. SOUZA, a propósito, refere-se a "uma elite de empresários, políticos e servidores públicos dos três Poderes" que "compõem uma cúpula privilegiada por uma legislação elaborada meticulosamente para manter esse estado de vantagens e opressões" (apud MUNIZ, 1994: p. 12).
Não foram consolidadas formas efetivas para o exercício de cidadania, permitindo a participação real dos indivíduos na determinação dos destinos da sociedade (e democracia pressupõe sociedade civil forte, consciente e participativa. Assim a proposta de um "Estado Democrático de Direito" fica estéril, carente de instrumentos que permitam limitar o poder e as ações dos administradores. Não denuncio - vê-se - ditaduras; alerto para o poder que é inerente às estruturas de Estado, passível de ser exercido arbitrariamente, o que cria a necessidade de que cada indivíduo (e, coletivamente, a sociedade) esteja atento e participe(1).
Este poder sublinhado não se restringe ao controle central da estrutura de Estado: ele transborda por "n" níveis de agentes de Estado (todos aqueles que ocupam funções na organização de Estado), que o rateiam. A porção de poder de cada um desses agentes é determinada não apenas pelo nível hierárquico ocupado, mas também pelas funções desempenháveis (sua competência funcional) e desempenhadas (seu trabalho, o "espaço" que ocupa); acresça-se a capacidade de influenciar outras esferas administrativas (próximas ou distantes). Tais agentes de Estado, demonstra AGUIAR, funcionam como "microlegisladores", isto é, "legislador para pequenos grupos, para parcelas da comunidade atingidas pelo preceito originário". Sua característica essencial "é a de ser destinatário do mandamento legal originário" o que "lhe confere obrigações e direitos que balizam o âmbito de sua liberdade na questão regulamentada pela norma geral." (1984: 30-31)
Destarte, os súditos de Estado não estão apenas à mercê de um poder central (das cúpulas dos três poderes), mas submetidos a níveis de poder estratificado, em muitos dos quais as normas jurídicas não assumem formas clássicas (Constituição, leis, decretos etc); ex.: por normas verbais, policiais, carcereiros etc exercem sua parcela de poder. Porém, o exercício deste poder fragmentado pode realizar-se sob a forma de agressão ao direito de administrados, em proveito de outros interesses; segundo AGUIAR, tais agentes, enquanto microlegisladores, via de regra, confirmam pela exegese que concretizam os parâmetros que orientam "a norma original, adaptando-a, interpretando-a em função das características do grupo e da correlação de forças que o compõem. [...] Mas dentro dos parâmetros estabelecidos, o microlegislador pode desenvolver uma tarefa normativa que chega a desfigurar o teor normativo original, ultrapassando os parâmetros estabelecidos." (Idem: 31)
A situação é lamentavelmente notória: um agente de Estado, investido de uma porção de poder e encarregado de determinadas atribuições específicas (e devendo respeitar o conjunto normativo vigente), utiliza-se dessa parcela de poder para obter uma vantagem indevida de qualquer natureza (uma "comissão", uma recompensa etc), desvirtuando o sentido das normas que deve aplicar ou simplesmente desconhecendo-o e desrespeitando-o. Um exemplo simples: o sem número de exigências e dificuldades que funcionários (mesmo os mais desqualificados) podem impor ao exercício de um direito, problema endêmico de muitas de nossas repartições públicas.
Mais: há atos que não são propriamente ilegais, mas que subvertem o fim das normas, lesionando parcelas da sociedade. O agente de Estado utiliza a atribuição de poder e competência que lhe foi atribuída para negar (total ou parcialmente) a vigência da norma a aplicar. As omissões constituem hábito endêmico entre nós, face à prática de legislar retoricamente (sem visar a implementação das hipóteses definidas); o art. 3, III, da Constituição afirma constituir objetivo fundamental da República "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais"; convive, porém, com um quadro de mortalidade infantil(2) e de miséria. DRUMOND, refere-se ao contraste entre a Constituição, consagrando "a saúde como direito do cidadão e dever do Estado" e a entrada do Brasil "na década de 90 com um inventário na área da saúde que bem espelha o acentuado desarranjo do tecido social brasileiro que, é bom enfatizar, beira a tragédia" (1993: 135) (3). Some-se a omissão no poder/dever de proteger (quer legislando eficazmente, quer processando e julgando) os bens e interesses públicos, o que já determinou uma generalizada descrença pública diante de tantos escândalos financeiros, políticos etc. (4)
Aqui, impossível não reproduzir a pertinente análise de FARIA, apontando para a divisão do aparelho de Estado brasileiro em "anéis burocráticos", cada um deles: "(a) agindo em função dos interesses e particularismos de sua clientela específica, visando a manutençao e a expansão de suas prerrogativas e reforçando com isso seus traços neocorporativistas; (b) distorcendo os programas sociais, mediante o sistemático desvio dos recursos e subsídios de projetos destinados originariamente aos segmentos mais carentes da população para os próprios setores estatais, para vários grupos empresariais e para as próprias classes médias; (c) produzindo uma distribuição desigual e perversa dos direitos e deveres consagrados pelas leis, uma vez que os grupos mais articulados conquistaram não só acesso a foros decisórios privilegiados mas, igualmente, mais prerrogativas do que obrigações, sob a forma de incentivos fiscais, créditos facilitados, juros subsidiados, reservas de mercado etc.; (d) tornando o jogo político-institucional dependente da ´jurisprudência´ interna de cada um desses ´anéis´, pois os programas sociais foram convertidos em recursos de poder, razão pela qual a importância de cada ´anel´ passou a decorrer de seu orçamento interno e/ou de seu poder regulamentar; (e) descaracterizando ideologicamente os partidos e obscurecendo a transparência do jogo político e das ações públicas, na medida em que a retórica parlamentar e sua ambigüidade programática jamais explicitaram critérios e prioridades em termos de gastos públicos." (1992: 22-23)
Sem dúvida, o exame das práticas de Estado revela incontáveis situações desconformes ao Direito, ou, no mínimo, contrárias à ética e à moral (balizas do processo de interpretação/aplicação das normas), bem como lesivas aos fins declarados para a República. Estas situações demonstram a opressão da estrutura (e do poder) de Estado. Revelam, ademais, que a estrutura de Estado é manejada para beneficiamento de alguns. SOUZA ressalta que "a legislação mentirosamente acena com justiça social, direitos humanos, desenvolvimento, mas tudo não passa de letra morta diante da inversão cultural que levou ao desconhecimento dos princípios éticos e dos mais elementares ditames do Direito, afastando-o do cidadão para tratá-lo como número em estatísticas quase sempre manipuladas." (Op. cit.: 12) Também BASTOS já teve a oportunidade de frisar que "as leis são rasgadas num momento político de imposição da força pela força; ou são contornadas, elegantemente contornadas na conduta administrativa ou nas sentenças e acórdãos" (apud ENCARNAÇÃO, 1995: 52). CARVALHO NETTO, por seu turno, refere-se a uma "subversão efetiva dos significados possíveis, originais e primeiros dos textos legais que, ao serem atualizados por práticas tradicionais inerentes à ordem anterior, asseguram a continuidade desta" (1992: 207).
Em resumo: estamos submetidos a um poder de Estado: somos súditos
(em maior ou menor grau) daqueles que o controlam (política
ou economicamente); num segundo nível, somos reféns
potenciais de incontáveis "agentes públicos".
Neste quadro, a cidadania deveria ser uma verdadeira possibilidade
de limitação deste poder, diluindo-o entre toda
a sociedade: o indivíduo deixaria a condição
de mero sujeito de direitos e deveres e tornar-se-ía
cidadão, ou seja, tornar-se-ía uma célula
consciente de participação social.
Enquanto possibilidade de efetiva participação nos desígnios de Estado (determinadores do destino da sociedade), será o próprio conjunto normativo que definirá o que seja cidadania, bem como seu (maior ou menor) alcance. Em circunstâncias tais, pode-se dizer, como lê-se em AGUIAR, que as Constituições dos regimes modernos tendem a estabelecer uma "autolimitação do Estado" (1984: 40). Ou seja, os sistemas jurídicos contemporâneos, em sua maioria, exibem um conjunto (maior ou menor, dependendo da evolução histórico-política das respectivas sociedades) de previsões normativas que criam limites para o exercício do poder de Estado, em lugar de obrigações para os súditos. Porém, para haver, de fato, maior distribuição de poder (ou seja, democracia) não bastam normas jurídicas definindo limites para a atuação dos agentes de Estado ou direitos para os súditos (individualmente ou coletivamente considerados). Faz-se necessário, isto sim, uma profunda revisão das relações sociais, que tendem à exploração desmesurada das massas em benefício de poucos, e dos fins da estrutura de Estado, tradicionalmente manipulada para conservação da exploração intrínseca àquelas relações sociais.
Já neste ponto, desenha-se o "mito da cidadania", fenômeno presente em diversos ordenamentos jurídicos, dentre os quais destaco o brasileiro. Poucas transformações (geralmente superficiais, cênicas ou retóricas) imitam concessões, mas apenas falseiam a conservação do poder de Estado. No Brasil, os mais variados textos (normas, discursos políticos, publicidade "oficial" etc) ressaltam a importância da cidadania para a concretização de um "Estado Democrático de Direito" (Constituição Federal, art. 1); no entanto, por mais que os brasileiros queiram se acreditar partícipes, por mais que se valorize o poder de cidadania, conservam-se problemas crônicos, como truculência policial, abusos de autoridades administrativas, inoperalidade, corrupção, impunidade, dentre outros. (5)
O exercício da cidadania no Brasil possui três grandes obstáculos: 1º) o sistema jurídico brasileiro não possui uma ampla definição de possibilidades para uma efetiva participação popular consciente; 2º) a postura excessivamente conservadora de parcelas do Judiciário, apegando-se a interpretações que limitam absurdamente o alcance dos dispositivos legais que permitiriam uma efetiva democratização do poder; por fim, 3º) uma profunda ignorância do Direito: a esmagadora maioria dos brasileiros não possui conhecimentos mínimos sobre quais são os seus direitos e como defendê-los. Desta forma, o poder continua preservado, como preservados continuam os benefícios desfrutados por aqueles que podem determinar (ou influenciar), de fato, os desígnios de Estado.
Neste sentido, para além do poder de votar e ser votado, os brasileiros dispõem de poucas e limitadas possibilidades de fazer valer a lei (menos ainda de fazer valer a sua vontade na lei); e não se olvide que as eleições são jogos marcados por retórica, teatralidade e publicidade, onde vendem-se imagens nem sempre verdadeiras e honestas. Para além desse "poder" de eleger e ser elegido (com todas as limitações que o jogo político lhe impõe), são poucos os espaços para a participação popular. BELLO, em artigo ainda inédito, destaca o problema justamente sob o ângulo da cidadania, tomando tal conceito "ante uma perspectiva ampla", ou seja, "como uma célula ou unidade mínima do Estado de Direito (participativo), que não tem, unicamente, a capacidade de votar e ser votado" (1996) ou, ainda, como definição de CLÉVE, encarando o cidadão como "sujeito ativo na cena política, sujeito reivindicante ou provocador da mutação do direito." (apud BELLO, op. cit.)
Segundo BELLO, a partir do art. 1, parágrafo único (dispondo que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição), a vigente Lei Maior "estabeleceu hipóteses de participação popular na Administração Pública: na educação (art. 206, VI), na proteção do patrimônio cultural (art. 216, 1), na fixação da política agrícola (art. 187), no planejamento municipal (art. 29, X), no controle das contas municipais (art. 31, 3), na seguridade social (art. 194, VII) etc." (Idem). Entretanto, reconhece, "embora seja uma grande conquista o elenco dessas normas na Constituição Federal, elas são normas programáticas e dependem de regulamentação legal para terem ampla aplicação." É uma concessão periférica(6): alude, mas não garante a participação popular na Administração Pública, o que seria, segundo FERRAZ, um dos "instrumentos cogitáveis para o desmantelamento do aparato autoritário da administração pública brasileira e do direito administrativo brasileiro" (apud BELLO, op. cit.). E, se pequenas brechas foram abertas pela legislação, não houve ainda uma mobilização para ocupar tais espaços; "o cidadão também precisa compreender - que a participação é boa para si mesmo e para a coletividade. A falta de tradição do Brasil neste aspecto não inviabiliza a concretitude de tal proposta" (BELLO, op. cit).
Para além da possibilidade (ou impossibilidade) de participação, resta a questão da defesa do Direito estabelecido, da busca de efetivação das normas limitadoras do poder de Estado, normas moralizadoras e disciplinadoras da ação pública etc. BARROSO, apoiando-se em JELLINEK, destaca: "as diversas situações jurídicas subjetivas criadas pela Constituição seriam de ínfima valia se não houvesse meios adequados para garantir a concretização de seus efeitos. É preciso que existam órgãos, instrumentos e procedimentos capazes de fazer com que as normas jurídicas transformem, de exigências abstratas dirigidas à vontade humana, em ações concretas" (1993: 115).
De fato, a previsão normativa de um direito, ou de uma garantia individual ou coletiva, não exaure, por si só, o embate entre dominadores e dominados, entre exploradores e explorados. Não basta a Constituição dizer, em seu art. 1, III, que o Estado Brasileiro possui como fundamento "a dignidade da pessoa humana"; a tal previsão não corresponde um meio pelo qual um cidadão possa impedir a degradação de uma família (conduzida pelo desemprego para a mendigância), a prostituição infantil, a exploração de trabalho em carvoarias etc.; o texto normativo, assim, não é mais que retórica. Aliás, a Constituição Brasileira é um amplo discurso retórico: repleta de previsões normativas não implementadas. O art. 3 da Constituição Federal afirma constituirem objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária", "garantir o desenvolvimento nacional", "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação". Como um cidadão pode exigir a sua concretização? Mesmo munido da comprovação estatística de que a pobreza, a marginalização e as desigualdades sociais e regionais estão se ampliando, um cidadão não pode exigir o cumprimento da norma constitucional (base de todo o sistema jurídico pátrio).
Aliás, nosso sistema jurídico (normas e jurisprudência) é extremamente injusto e elitista: estimula, quer pelo processo (previsto e praticado), quer pelo estabelecimento de penas (em abstrado e em concreto), a impunidade dos mais abastados (empresários, administradores públicos, parlamentares, entre outros). Assim, pune-se de forma basicamente igual aquele que lesa o patrimônio público (subtraindo-o, apropriando-se, desviando, superfaturando etc) em milhões e aquele que lesa o patrimônio público e/ou privado em pequenos valores. Note: desviar milhões de reais, destinados a programas de saúde, é fato que provavelmente não será apenado (via de regra, há prescrição da pretensão punitiva, quando não há absolvição face à precariedade da instrução probatória), e se o for, merecerá condenação inferior a de um roubo com ameaça de violência e concurso de agentes), face à primariedade, bons antecedentes, etc. O absurdo está em não agravar a pena de acordo com a gravidade da lesão (chegando a décadas de privação da liberdade quando o dano for de grande monta, o que incentivaria a reposição do patrimônio público).
Existem alguns instrumentos processuais previstos para a defesa de alguns dos direitos elencados. Apenas possibilidade, já que, como dito, restam dois grandes embaraços para o manejo amplo e irrestrito de tais caminhos procedimentais: despreparo jurídico (desinformação) da população (ignorante de seus direitos, bem como dos deveres de seus concidadãos e dos agentes públicos) e uma endêmica resistência de parte da magistratura em concretizar os avanços sócio-políticos, insistindo em posturas (inclusive hermenêutica) excessivamente conservadoras, formalistas, contribuindo para a impunidade (não apenas penal). Em defesa dessa postura, as hierarquias superiores do Judiciário insistem em invocar uma desvirtuada necessidade de separação e harmonia dos poderes; vale dizer: obrigar os outros Poderes a cumprir normas estabelecidas constituiria risco à independência destes, atentando contra a separação e harmonia entre todos. Mesmo quando há uma evolução legal, verifica-se, ainda assim, uma resistência judiciária em aceitar o avanço. BARROSO, a respeito, apoia-se em BARBOSA MOREIRA para criticar uma tendência de "interpretação retrospectiva", ou seja, aquela que "lê o novo texto com espírito nostálgico, em o ímpeto de buscar novas soluções. Tanto a timidez como a eventual hostilidade do Poder Judiciário tirar-lhe-íam as honras de colaborador sincero e empenhado da restauração democrática, para transformá-lo em coadjuvante do fracasso, como sabotador voluntário ou involuntário." (Idem: 120)
Exemplo desta "timidez judiciária" é o Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI, da Constituição). Foi previsto para que a ausência de normas regulamentadoras não impedisse a aplicação de normas constitucionais: o Judiciário poderia suprir a lacuna para o requerente, permitindo a efetivação do dispositivo constitucional. Entretanto, como lê-se no Mandado de Injunção 288-6/DF, "a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de atribuir ao mandado de injunção a finalidade específica de ensejar o reconhecimento formal da inércia do Poder Público em dar concreção à norma constitucional positivadora do direito postulado, buscando-se, com essa exortação ao legislador, a plena integração normativa do preceito fundamental invocado pelo impetrante do writ como fundamento da prerrogativa que lhe foi outorgada pela Carta Política."(rel.: Min. CELSO DE MELLO; DJU de 3.mai.95, p. 11.629)
O Supremo Tribunal Federal transformou o Mandado de Injunção numa mera ação declaratória de "mora legislativa": em lugar de suprir a ausência de regulamentação de um dispositivo constitucional, garantindo sua eficácia plena, limita-se a declarar a existência da lacuna, reconhecendo a inadimplência do Poder Legislativo no cumprimento de seu dever de regulamentar os direitos e as garantias previstas na Lei Básica. Via de conseqüência, exterminou-se a possibilidade de dar eficácia imediata às normas constitucionais; mesmo notificado de sua mora, o Legislativo pode não suprir a lacuna. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, norma que, há muito, o STF já declarou carecer de regulamentação (cf. ADIn 4/DF); a interposição de Mandado de Injunção sobre a matéria, a exemplo do nº 457-9/SP, merece apenas o reconhecimento da inadimplência, mas não o suprimento da lacuna: o mandado é "deferido em parte, para que se comunique ao Poder Legislativo a mora em que se encontra, a fim de que adote as providências necessárias para suprir a omissão" (cf. DJU de 4.ago.95, p. 22.440).
A mesma timidez (ou resistência) envolve certos aspectos da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Como já tive ocasião de analisar alhures, "tal como posto em nossa legislação, essa - efetiva - participação de Estado é praticamente impossível de ser exercida: o ordenamento jurídico brasileiro cria, assim, uma cidadania parcial, na medida em que retira do cidadão o poder de agir para a preservação dos interesses sociais (depois de já ter retirado, da grande maioria da população, o poder de compreensão, não lhe fornecendo condições para uma formação educacional, minimamente satisfatória que fosse). A isto acresça-se uma exegese judicial que dificulta ainda mais o exercício da cidadania: o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, erige todas as dificuldades possíveis para o exercício das ações diretas de constitucionalidade." (1995b: 153, nota 2)
Entre as dificuldades erigidas, pode-se exemplificar com a definição e compreensão do que seja "entidade de classe de âmbito nacional" (cf. ADIn 334-8; DJU de 31.mar.95, p. 7.772), bem como a exigência de que haja uma "relação de pertinência entre o interesse específico da classe" defendida por tal entidade e "o ato normativo que é argüido como inconstitucional" (cf. ADIn 913-3; DJU de 5.mai.95, p. 11.904). O Supremo Tribunal Federal transformou tais requisitos em elementos mais importantes do que o próprio exame da pertinência da alegação de inconstitucionalidade. Destarte, mais do que requisitos procedimentais, tais elementos cumprem a função de entraves colocados justamente para dificultar o exame da inconstitucionalidade, passando a questão de mérito a ocupar posição secundária, justamente em função do formalismo exacerbado que impede o seu conhecimento.
Outros instrumentos processuais do Direito vigente dirigem-se à defesa de direitos e interesses coletivos e difusos ou seja, respectivamente: (a) interesses e direitos de um grupo de indivíduos que se pode determinar, ligados entre si por elemento comum; ex.: profissionais de uma mesma área - associados em entidade profissional -, empresas de uma região ou área econômica - organizadas em entidade representativa -, alunos ou pais de alunos de uma instituição de ensino, condôminos etc.; (b) interesses e direitos que dizem respeito a um conjunto não enumerável de indivíduos - não identificados ou identificáveis -, como "a sociedade", os moradores de uma região, os consumidores de um certo produto etc.. A proteção destas duas ordens de direitos e interesses (destacada a difusão) constitui tema inegavelmente central no debate jurídico contemporâneo. Infelizmente, no Brasil, não se consolidou ainda uma legislação, e muito menos uma tradição judiciária adequadas a uma ampla defesa de interesses e direitos dessas naturezas (uma lamentável falta de amplitude democrática).
A Constituição Federal de 1988 (art. 5, XXI) avançou ao permitir que as entidades associativas pudessem buscar a defesa dos direitos de seus membros, judicial ou extrajudicialmente. O texto da norma, contudo, refere-se à necessidade de "autorização expressa" dos membros, o que, em conjunto com a disposição do inciso XX, do mesmo art. 5 (prevendo que "ninguém poderá ser compelido a associar-se ou permanecer associado"), tem sido utilizado como argumento para limitar o âmbito de atuação das associações. O argumento impeditivo deve ser analisado com seriedade, mas, principalmente, com razoabilidade, certo que em inúmeras situações esta autorização chega a se presumir (ex.: associação de pais e mestres em procedimentos que dizem respeito à administração de unidade escolar, preço de mensalidade, prestação de contas; associações de aposentados, em procedimentos que visem a melhoria de pecúlios ou serviços assistenciais etc). Sem este bom senso na interpretação do dispositivo constitucional, fugir-se-á aos fins visados pela norma, um inegável retrocesso na busca da consolidação de um Estado Democrático de Direito.
Ainda para a defesa dos interesses difusos, pode-se listar a ação civil pública, pretendendo determinar a responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico. A capacidade de aforamento da ação civil pública é limitada pelo texto legal (Lei 7.347/85): o Ministério Público, os entes políticos e seus órgãos descentralizados, as associações velhas de um ano, cujos estatutos prevejam a tutela do interesse cogitado in concreto. Um inegável instrumento para a proteção dos bens e dos interesses públicos. Entretanto, como anota BARROSO, a legislação que a disciplina já está a comportar uma evolução: "extensão da legitimidade ativa a particulares, agindo em nome da coletividade", assim como a ampliação dos "interesses tutelados", "não havendo razão para restringir as ações coletivas aos temas que a lei, numerus clausus, delimita" (Op. cit.: 140-141).
O art. 5, LXXIII, do Texto Constitucional de 1988 lista a "ação popular" que pode ser proposta por "qualquer cidadão", visando "a anular ato lesivo ao patrimônio público ou entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência". Destaca BARROSO que "a legislação ordinária que disciplina a ação popular ampliou-lhe largamente a área de incidência", tutelando não apenas as "pessoas estatais, mas também autarquias, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as fundações instituídas pelo poder público e os serviços sociais autônomos, dentre outras (Lei n 4.717/65, art. 1). Além disso, ao fixar o conceito de patrimônio público, dilatou-o para abranger os bens e direitos de valor econômico, artístico, histórico ou turístico (art. 2)." (Op. cit.: 134)
O mandado de segurança, atualmente previsto no art. 5, LXIX, da Constituição, é instrumento que surgiu já na Carta de 1934, estando regulamentado pela Lei 1.533/51. O art. 5, LXX, da vigente Constituição, criou a figura do manejo coletivo do mandado de segurança, determinando uma "ampliação da legitimação ativa", "uma hipótese de substituição processual", com o que "poderá uma entidade de classe intervir em nome da coletividade como um todo, na defesa de um interesse geral, que apenas se reflete, sem com ele confundir-se, no interesse individual de cada um dos seus membros", o que implica em uma "grande simplificação e economia de tempo e trabalho", assim como suprime a "possibilidade de decisões logicamente conflitantes" (Idem: 136-137). Mas também quanto ao mandado de segurança coletivo paira a sombra de uma interpretação limitadora que poderia ser impingida a partir da invocação do inciso XX, do mesmo art. 5 (cf. supra), exigindo seriedade e razoabilidade do Judiciário, certo que pode-se limitar em excesso o emprego do mandamus coletivo com uma exegese ortodoxa, lamentavelmente reiterada por certa parcela da magistratura.
No âmbito dos direitos individuais, há o habeas-corpus, cuja presença no direito brasileiro (hábil à proteção da liberdade de locomoção - art. 5, LXVIII) é clássica, não merecendo, no âmbito deste trabalho, maiores considerações. A Constituição de 1988, em seu art. 5, LXXII, criou uma nova ação, qual seja o habeas-data, permitindo o "conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público", bem como a retificação destes dados. Para a interpretação deste art. 5, LXXII, é indispensável que se lance atenção para outro direito e garantia individual, anotado no art. 5, XXXIII, da vigente Constituição Republicana: "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado."
O constituinte procurou sepultar uma antiga prática de
Estado no Brasil, onde os administradores insistem em práticas
abusivas. Já "ao tempo do Império, havia expedientes
em que a simples afirmativa ´Consta que´ era suficiente para a
cassação até de direitos políticos
dos cidadãos, demonstrando com isso o arbítrio que
havia, no tocante ao fornecimento de dados pessoais comprometedores
da honorabilidade do cidadão, utilizados por terceiros,
sem que o prejudicado tivesse ciência do fato ou pudesse
corrigir eventuais abusos, por lhe serem negadas informações
referentes à sua pessoa. Na atualidade, ocorrem abusos
semelhantes, que o preceito em tela procura evitar, facultando
o acesso do interessado às informações de
que necessite." (SOARES,1990: 136)