INTRODUÇÃO
O Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Cláudio de Mello Tavares, suspendeu, recentemente, os efeitos de uma liminar concedida pela 7° Vara de Fazenda Pública, que conteve os decretos de flexibilização do Estado e da Prefeitura do Rio. Em sua decisão, o Desembargador afirmou que havia uma interferência do Poder Judiciário no Poder Executivo, onde o executivo deve decidir em sobre a flexibilização do isolamento. Além da antiga liminar que continha os efeitos dos decretos estaduais e municipais, fora marcada uma audiência para discutir sobre o tema. Ocorre que, em razão da suspensão da antiga liminar, duvidas ecoam na sociedade, diante da necessidade ou não da flexibilização do isolamento, pois o retorno das atividades ao normal, pode desencadear mais contaminações pela doença.
1 - DA SUSPENSÃO DOS DECRETOS ESTADUAL E MUNICIPAL
No último dia 08/06, a 7ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, diante de pleitos do Ministério Público e Defensoria do Estado [1], suspendeu trechos dos decretos municipal e estadual que flexibilizavam o isolamento social. Assim sendo, foram suspensas as eficácias dos artigos 6º a 14 do Decreto Municipal nº 47.488, de 02 de junho de 2020, e dos artigos 6º a 10 do Decreto Estadual nº 47.112, de 05 de junho de 2020, conforme é estabelecido nos decretos:
“DECRETO RIO Nº 47488 DE 2 DE JUNHO DE 2020
Art. 6º O Plano de Retomada subsidiará as decisões governamentais, conferirá previsibilidade à retomada gradual da atividade econômica e social em compasso com as diretrizes de enfrentamento à pandemia, devendo estar estruturado, minimamente, com ações de curto prazo, além de cronograma descritivo para sua implementação.
§1º O Plano de Retomada levará em consideração bases de dados e informações técnicas produzidas por órgãos e entidades, públicas e particulares, que detenham expertise, especialmente àqueles afetos às questões de saúde pública, que poderão ser contemplados no planejamento, a partir de documento base definido no Anexo I e o faseamento definido no Anexo II deste Decreto.
§2º Além das questões de natureza técnica e legal que devem nortear a elaboração do referido plano, o Comitê deverá considerar dados válidos e informações obtidas junto ao setor econômico.
Art. 14. O faseamento de retomada das atividades iniciar-se-á com a implementação da “Fase 1”, e resultará na evolução para a fase subsequente, após o prazo mínimo de quinze dias, desde que observados e avaliados os indicadores de saúde monitorados que permitam esta liberação para a fase posterior e observada autorização dos Comitês Estratégico e Científico.
§1º Ficam autorizadas a funcionar as atividades relativas à Fase 1, observadas as restrições por atividade nele discriminadas, sem prejuízo das já autorizadas pelo Decreto Rio nº 47.282, de 2020.
§2º O Poder Executivo Municipal, amparado pelas decisões do Comitê Estratégico, pelo Comitê Científico e pelo acompanhamento de indicadores, poderá deliberar pela manutenção, regressão ou progressão de fases a qualquer tempo. “ [2]
“DECRETO 47.112, DE 5-6-2020
Art. 6º - FICAM AUTORIZADAS a prática, o funcionamento e a reabertura das seguintes atividades e estabelecimentos, a partir de 06 de junho de 2020...
Art. 7º - FICA AUTORIZADO o funcionamento de shopping centers e centros comerciais, exclusivamente no horário de 12 horas às 20 horas, a partir do dia 6 de junho de 2020, até o limite de 50% (cinquenta por cento) de sua capacidade total, desde que...
Art. 8º - FICAM AUTORIZADAS as atividades de organizações religiosas, a partir de 06 de junho de 2020, que deverão observar os protocolos definidos pelas autoridades sanitárias, e também observar...
Art. 9º - FICA DETERMINADO horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais, industriais e de prestação de serviços, de acordo com as tabelas indicadas nos Anexos I, II III e IV deste Decreto, a partir do dia 06 de junho de 2020.
Art. 10 - Em todos os estabelecimentos que se mantiverem abertos, impõe-se a observância de todos os protocolos e medidas de segurança recomendados pelas autoridades sanitárias, inclusive... “
Os decretos previam um plano de retomada gradual e já sendo iniciado com o funcionamento de algumas atividades comerciais, conforme é estabelecido nas normas. ” [3]
2 - DA SUSPENSÃO DA LIMINAR
O Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio de Mello Tavares, decidiu por suspender os efeitos da liminar concedida pela 7° Vara de Fazenda Pública, que vetou trechos de Decretos do Estado e do Município do Rio de Janeiro para flexibilizar o isolamento social. Em sua decisão, o Desembargador afirmou que o Poder Judiciário estaria interferindo na atuação do Poder Executivo, que deve decidir sobre as regras de distanciamento:
"Neste sentido, a correta interpretação do princípio da separação dos Poderes, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do judiciário quando a administração pública atua dentro dos limites concedidos pela Constituição e pela lei, o que parece ser o caso dos autos. Em suma, a atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas não pode se dar de forma indiscriminada, pois isso violaria o princípio da separação dos Poderes. "
"Não cabe ao Poder Judiciário adentrar o mérito das decisões administrativas, mormente no atual momento vivenciado pelo país, não podendo substituir prévias avaliações técnicas do Poder Executivo. O ônus da política de combate a COVID-19 é do Poder Executivo. "
"Nesse diapasão, o controle judicial de políticas públicas constitui medida de caráter excepcional em prestígio ao princípio da separação dos poderes. O que prevalece é o respeito aos critérios utilizados pelo Poder Executivo, a quem cabe definir seus planos de ação no combate à pandemia, porquanto promanados de governantes escolhidos pelo povo, que é o titular originário do poder, e que legitima o atuar político da Administração Pública " [4]
3 - DA SEPARAÇÃO DOS PODERES
A separação dos poderes, conhecido como sistema dos freios e contrapesos, foi criada pelo filósofo Montesquieu. Desse modo, era previsto que poderia ser mantido o equilíbrio dos poderes, separando-os em pessoas distintas, sem a sua concentração. Todavia, na teoria de Montesquieu o Judiciário não era considerado um poder, mas sim um papel estatal. Contudo, a queda das monarquias europeias fez surgir a carência por um novo poder, diante da inutilidade dos Parlamentos. Assim, a jurisdição constitucional foi ganhando força na medida da democratização dos países europeus, conforme é afirmado por Gilmar Mendes:
“A queda, em sucessão, dos regimes monárquicos na Europa, coincidindo com a progressiva adoção do parlamentarismo – em que é inerente a proximidade do Executivo ao Legislativo –, enfraqueceu a ideia de que a proclamação da separação dos Poderes seria meio suficiente para a defesa das liberdades. Sentiu-se a necessidade de uma nova fórmula de proteção dos indivíduos. Impunha-se a descoberta de novas fórmulas de controle do poder do Estado... O Parlamento, que se revelara débil diante da escalada de abusos contra os direitos humanos, perdeu a primazia que o marcou até então. A Justiça Constitucional, em que se viam escassos motivos de perigo para a democracia, passou a ser o instrumento de proteção da Constituição – que, agora, logra desfrutar de efetiva força de norma superior do ordenamento jurídico, resguardada por mecanismo jurídico de censura dos atos que a desrespeitem” [5]
Desse modo, o judiciário passou a figurar-se como poder independente e harmônico, dentro da teoria da separação dos poderes, que passara a se dividir em executivo, legislativo e judiciário, conforme é enfatizado pelo doutrinador:
“A separação dos Poderes tem por objetivo político reparti-los entre pessoas distintas, para, por esse meio, impedir a concentração, adversária potencial da liberdade. A teoria se compreende “segundo a moldura do conflito clássico entre liberdade e autoridade (...) método lucubrado para a consecução de um fim maior: limitar o poder político”. Dessa fonte espiritual decorre a aplicação posterior do princípio da divisão de tarefas no Estado, entregue a pessoas e órgãos diferentes, como medida de proteção da liberdade. ” [6]
A Constituição Federal de 1988 contempla o princípio da separação dos poderes como cláusula pétrea, não podendo ser modificado por constituir parte da formação do Estado Democrático de Direito:
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. ” [7]
4 - DO PODER JUDICIÁRIO
Conforme é estabelecido pela Constituição Federal em seu artigo 5°, XXXV, é função do judiciário defender os direitos infringidos ou ameaçados:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; “ [8]
Desse modo, os tribunais devem controlar os atos realizados pelos demais poderes, devido a harmonia criada pelo sistema de freios e contrapesos, conforme Gilmar Mendes aborda:
“Os tribunais detêm a prerrogativa de controlar os atos dos demais Poderes, com o que definem o conteúdo dos direitos fundamentais proclamados pelo constituinte. A vinculação das cortes aos direitos fundamentais leva a doutrina a entender que estão elas no dever de conferir a tais direitos máxima eficácia possível. Sob um ângulo negativo, a vinculação do Judiciário gera o poder-dever de recusar aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais. “ [9]
Portanto, um judiciário independente é garantidor de direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, pois de forma equilibrada, controla os atos discricionários realizados pelos poderes restantes.
5 - DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO
O objetivo dos atos administrativos deve obedecer o princípio da prevalência do interesse público. Logo, as ações realizadas pela Administração Pública devem atender à população como um todo, trazendo benefícios para a sociedade, satisfazendo assim o interesse da coletividade. Por esse motivo, todo e qualquer ato do Poder Público deve ser razoável e proporcional, sob a ótica da sensatez e da aceitabilidade. Assim, são esses os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que alguns doutrinadores os classificam como um só. Gilmar Mendes trata da utilização do princípio da proporcionalidade:
“O princípio da proporcionalidade é invocado, igualmente, quando Poderes, órgãos, instituições ou qualquer outro partícipe da vida constitucional ou dos processos constitucionais colocam-se em situações de conflito. Daí a aplicação do referido princípio nas situações de conflito de competência entre União e Estado ou entre maioria e minoria parlamentar ou, ainda, entre o parlamento e um dado parlamentar. “ [10]
A razoável atuação do Poder Público também fora destacada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“Sendo – como já se acentuou – a taxa judiciária, em face do atual sistema constitucional, taxa que serve de contraprestação à atuação de órgãos da justiça cujas despesas não sejam cobertas por custas e emolumentos, tem ela – como toda taxa com caráter de contraprestação – um limite, que é o custo da atividade do Estado, dirigido àquele contribuinte. Esse limite, evidentemente, é relativo, dada a dificuldade de se saber, exatamente, o custo dos serviços a que corresponde tal contraprestação. O que é certo, porém, é que não pode taxa dessa natureza ultrapassar uma equivalência razoável entre o custo real dos serviços e o montante a que pode ser compelido o contribuinte a pagar, tendo em vista a base de cálculo estabelecida pela lei e o quantum da alíquota por esta fixado” [11]
6 - CONCLUSÃO
O princípio da separação de poderes é essencial para a materialização do Estado Democrático de Direito, diante da independência e harmonia conferidas aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. É imperioso destacar que, conforme destacado pelo doutrinador, os tribunais devem controlar os atos dos demais poderes que forem discricionários, pois detém prerrogativa para isso. Dessa maneira, um judiciário independente concretiza a garantia dos direitos fundamentais, através do sistema de freios e contrapesos.
A decisão do Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro pode estar infringindo a atuação do judiciário. Isso ocorre pois, os decretos de flexibilização do isolamento social contrariam o princípio da razoabilidade do Poder Público, pois hoje, o Estado do Rio de Janeiro não se encontra em condições para isso, em razão do risco de novas contaminações. Portanto, o Poder Judiciário, ciente de tal violação, pode e deve suspender os decretos que infringem os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, garantindo a harmonia entre os poderes.
Pode ser observado então, que a Administração Pública deve ser razoável e proporcional em seus atos, com observância ao interesse público. Os referidos decretos municipal e estadual, podem colocar em risco a vida de milhões de pessoas e o judiciário, ao ser questionado sobre essa matéria e observando as violações de direitos e garantias, atuará para impedi-los.
REFERÊNCIAS
[1]http://www.tjrj.jus.br/web/guest/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/7298028
[2] http://www.aeerj.net.br/file/02-06-2020-decretorio47488covid.pdf
[3] https://www.contabeis.com.br/legislacao/5902320/decreto-47112-2020/
[5] (Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. – Pág 71 -São Paulo: Saraiva Educação, 2018.)
[6] (Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. – Pág 65 -São Paulo: Saraiva Educação, 2018.)
[7] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[9] (Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. – Pág 224 -São Paulo: Saraiva Educação, 2018.)
[10] (Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 13. ed. – Pág 323 -São Paulo: Saraiva Educação, 2018.)
[11] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=263851