INTRODUÇÃO
No último mês, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a proibição da doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional. O relator do caso, ministro Edson Fachin, afirmou que não pode ser dado tratamento diverso por conta da orientação sexual, em respeito à dignidade da pessoa humana. Desse modo, o STF decidiu por declarar inconstitucional a Portaria 158/2016 do Ministério da Saúde e da Resolução RDC 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que tratavam de forma diversa homens homossexuais. Contudo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em uma notícia no seu portal, esclareceu que as normas declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal devem continuar sendo seguidas, alegando não haver julgamento final sobre o tema.
1 - DA DECISÃO DO STF
No mês de maio do corrente ano, por 7 votos a favor e 4 contra, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a proibição de doação de sangue por homens homossexuais é inconstitucional, dando procedência à Ação Direta de Inconstitucionalidade 5543. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária, havia excluído do rol de habilitados os homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes[1]. Prevaleceu então, o voto do relator, Ministro Edson Fachin, que tratou sobre a não discriminação dos homossexuais, diante do tratamento diverso na doação de sangue. O Relator destacou sobre o princípio da isonomia:
“A restrição forte de doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais (e/ou suas parceiras) aposta no art. 64, IV, da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde e no art. 25, XXX, d, da Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 34/2014 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) estabelece limitação fundada no risco a que esses sujeitos estão supostamente expostos pelo simples fato de serem homossexuais ou bissexuais. ” [2]
Ou seja, a restrição é fundada no grupo de risco, estabelecido pela orientação sexual dessas pessoas, e não pelas suas condutas que poderiam expô-las aos riscos. Ao assim disporem, essas normas estabelecem limitação fundada na orientação sexual das pessoas, e não em suas práticas e comportamentos. Ao invés de o Estado possibilitar que essas pessoas promovam o bem ao doar sangue, ele restringe indevidamente uma atuação solidária com base em preconceito e discriminação, violando-se o disposto no art. 3º, IV e principalmente o direito fundamental à igualdade entalhado no art. 5º, caput, da Constituição da República.
A violação à igualdade, portanto, sobressai evidente. Isso porque ainda que o índice estatístico e epidemiológico coletivo indique que o índice de probabilidade de uma pessoa ter AIDS ser maior se esta for um homem homossexual ou bissexual, não é possível transpor tais dados para o plano subjetivo do doador, sob pena de se estigmatizar, de forma absolutamente ilegítima, um grupo de pessoas. “
2 - DO NÃO CUMPRIMENTO PELA ANVISA
Apesar do Supremo Tribunal Federal ter decidido por permitir a doação de sangue por parte de homossexuais, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, em uma notícia no seu portal, afirmou que as antigas normas continuarão a ser cumpridas até o julgamento final do da ADI 5543, conforme é afirmado pelo órgão:
“A Anvisa esclarece que, até o encerramento definitivo do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543, as regras previstas na Portaria de Consolidação 5/2017 – Anexo IV do Ministério da Saúde (MS) e na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 34/2014 da Agência sobre doação de sangue devem ser seguidas normalmente pelos serviços de hemoterapia públicos e privados em todo o país. [3]
A Anvisa aguarda a publicação do acórdão do STF sobre o julgamento para analisar as medidas administrativas e judiciais cabíveis, inclusive eventual apresentação de recurso sobre o tema. Assim sendo, enquanto não houver o julgamento final da ADI 5543, estão mantidas as normas vigentes. “
Em razão do ocorrido, duas reclamações foram instauradas no Supremo Tribunal Federal para questionar o descumprimento, assinadas por entidades LGBT[4], pelo partido Cidadania e pelo senador Fabiano Contarato. As associações alegam má-fé e tentativa de procrastinar o cumprimento da decisão. Assim sendo, as entidades pediram que a ANVISA seja obrigada a expedir uma circular dando cumprimento imediato a decisão do STF.
3 - DO CUMPRIMENTO DA DECISÃO
O artigo 77 do Código de Processo Civil trata dos deveres das partes na ação. Logo, as partes têm liberdade para conquistar seus objetivos através dos meios legais, porém, eles devem estar limitados a lealdade e probidade, conforme é previsto no artigo:
“Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
I - expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II - não formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento;
III - não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito;
IV - cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;
V - declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional onde receberão intimações, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva;
VI - não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso.
§ 1º Nas hipóteses dos incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça.
§ 2º A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar à responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta. ”[5]
Pode ser apresentado como uma violação ao princípio da lealdade qualquer ação que seja de conduta maliciosa, como por exemplo tentar atrapalhar o trâmite processual para dificultar o contraditório ou tentar avolumar a multa judicial. De acordo com Humberto Theodoro Junior, o comportamento de boa-fé não trata apenas da conduta maliciosa, mas também, da ética como um todo para o bom trâmite processual:
“É importante ressaltar que a exigência de um comportamento em juízo segundo a boa-fé, atualmente, não cuida apenas da repressão à conduta maliciosa ou dolosa da parte. O novo Código de Processo Civil, na preocupação de instituir o processo justo nos moldes preconizados pela Constituição, inclui entre as normas fundamentais o princípio da boa-fé objetiva (art. 5º), que valoriza o comportamento ético de todos os sujeitos da relação processual. Exige-se, portanto, que as atitudes tomadas ao longo do processo sejam sempre conformes aos padrões dos costumes prevalentes no meio social, determinados pela probidade e lealdade. Não importa o juízo íntimo e a intenção de quem pratica o ato processual. Não é só a má-fé (intenção de prejudicar o adversário ou a apuração da verdade) que interessa ao processo justo, é também a avaliação objetiva do comportamento que se terá de fazer para mantê-lo nos limites admitidos moralmente, ainda quando o agente não tenha tido a consciência e a vontade de infringi-los. “ [6]
O cumprimento das decisões judiciais então, se torna essencial para a materialização da boa-fé, diante do respeito ao trâmite processual, com observância ao princípio da lealdade. Assim como, é possível notar na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que negou provimento a apelação do DETRAN por não cumprimento da ordem judicial:
“DIREITO PROCESSUAL PENAL. ALIENAÇÃO JUDICIAL CRIMINAL. TRANSFERÊNCIA DO BEM ARREMATADO. ÓBICE. AÇÃO E OMISSÃO DO DETRAN/PR. FIXAÇÃO E APLICAÇÃO DE MULTAS DIÁRIAS PELO DESCUMPRIMENTO DE ORDENS DE TRANSFERÊNCIA DO BEM. ADEQUAÇÃO. ART. 537, § 2º, DO CPC. RESSARCIMENTO DO ARREMATANTE E RESGUARDO DO EXERCÍCIO E DIGNIDADE DA JURISDIÇÃO. 1. Conquanto a arrematação dos referidos bens tenha natureza originária (art. 144-A, § 5º, do Código de Processo Penal), observa-se que o DETRAN/PR dificultou a transferência do veículo, o que implicou a fixação de astreintes, nos termos do art. 537, § 2º, do Código de Processo Civil. 2. Restou induvidosamente caracterizado que o DETRAN/PR: a) não cumpriu as ordens de transferência do bem arrematado no prazo estabelecido; b) não informou prontamente ao Juízo a ocorrência de eventuais dificuldades para a realização da transferência do bem arrematado; e, c) quando veio aos autos, não apresentou qualquer justificativa plausível para o atraso no cumprimento. 3. A manutenção da condenação nas astreintes é necessária para o ressarcimento do arrematante (art. 537, § 2º, do Código de Processo Civil) e para o resguardo do exercício e dignidade da jurisdição. 4. Negado provimento ao recurso de apelação. “ [7]
5 - CONCLUSÃO
A decisão do Supremo Tribunal Federal foi clara. O Ministro Edson Fachin se pautou no princípio da isonomia, o que foi perfeitamente aplicado no caso, diante da discriminação de um determinado grupo. Se esperava então, o cumprimento da decisão judicial proferida em juízo, para que não ocorresse diferença diante da opção sexual em se tratando de matéria de doação de sangue. Contudo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária se recusa a cumprir a ordem, com o fundamento de que irá esperar até o fim da referida ação direta de inconstitucionalidade.
Ora, vejamos ao longo do artigo que diante da doutrina, jurisprudência e legislação apresentadas que a ANVISA não cumpre as normas vigentes, pois, o não cumprimento de uma decisão proferida em juízo poderá ser considerada má-fé. Desse modo, em razão o Código de Processo Civil, em seu inciso IV, é dever das partes “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação”, ou seja, o argumento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária não está de acordo com a legalidade, pois independente da decisão ser de natureza provisória ou final, ela deve ser cumprida. É imperiosa então, a análise do judiciário perante a conduta da autarquia, que pode estar tentando ludibriar o juízo.
Referências
http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443015&ori=1. s.d.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. s.d.
http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaFachin/anexo/ADI5543.pdf. s.d.
https://bit.ly/2zmKASh. s.d.
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/10/acoes-no-stf-dizem-que-anvisa-descumpre-decisao-que-autorizou-doacao-de-sangue-por-homens-gays.ghtml. s.d.
Júnior, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
“TRF-4 - APELAÇÃO CRIMINAL : ACR 5006371-27.2016.4.04.7002 - 27 de Fevereiro de 2019 - SALISE MONTEIRO SANCHOTENE.” s.d.
[1] ( http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443015&ori=1 s.d.)
[2] (http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaFachin/anexo/ADI5543.pdf s.d.)
[3] (https://bit.ly/2zmKASh s.d.)
[4] (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/10/acoes-no-stf-dizem-que-anvisa-descumpre-decisao-que-autorizou-doacao-de-sangue-por-homens-gays.ghtml s.d.)
[5] (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm s.d.)
[6] (Júnior 2015, 391)
[7] (TRF-4 - APELAÇÃO CRIMINAL : ACR 5006371-27.2016.4.04.7002 - 27 de Fevereiro de 2019 - SALISE MONTEIRO SANCHOTENE s.d.)