Para produzir os efeitos previstos pelo Ordenamento Jurídico e desejados pelas partes, o negócio jurídico precisa ser existente, válido e eficaz.
As vezes o negócio jurídico pode ser válido e não se tornar eficaz. Porém, para que seja eficaz, necessariamente precisa ser válido.
As patologias relacionadas ao negócio jurídico, e as respectivas demandas judicias de “rescisão” [termo geral e – as vezes – improprio para designar a dissolução do contrato], se diferenciam principalmente em duas categorias: de um lado, (i) as patologias que se referem ao plano da validade, afetando os elementos constitutivos do negócio, ou seja, a anulabilidade e a nulidade; e, doutro, (ii) as que se referem ao plano da eficácia do negócio, já validamente constituído, e que compreendem várias situações patológicas como o inadimplemento, a excessiva onerosidade, o superveniente e injustificado desequilíbrio entre as partes, etc.[1].
A individuação fática e jurídica do tipo de patologia aplicável ao negócio é determinante, sendo que a disciplina e os efeitos que derivam são diferentes, não unicamente com relação ao tipo de demanda processual, mas também com relação – entre os demais – aos efeitos ex tunc ou ex nunc da invalidade, à prescrição da demanda, à titularidade e à oponibilidade da demanda, e ao ônus probatório.
Quando a demanda de “rescisão” se fundamenta em uma patologia que envolve o plano da validade do negócio [anulabilidade e nulidade], os vícios são expressos pelos artigos 166, 167 e 171 do Código Civil.
Em particular, pelo artigo 166 do Código Civil, o negócio jurídico há a ser declarado nulo quando for[2]:
- celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
- for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
- o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
- não revestir a forma prescrita em lei;
- for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
- tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
- a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Ainda, o art. 167 do Código Civil prevê a nulidade também quando o negócio é simulado: “e’ nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I – aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II – contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III – os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados [...]”.
Em relação à anulabilidade, o art. 171 do Código Civil prevê que o negócio jurídico possa ser declarado anulado quando, além dos casos expressamente declarados na Lei, os vícios se refiram à incapacidade relativa do agente, ou quando as declarações de vontade que concretizaram a conclusão do negócio jurídico foram o resultado de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
Quando a demanda de “rescisão” se refere a patologias que envolvem o plano da eficácia do negócio – especificas dos contratos a prestações reciprocas ou sinalagmáticas – há a se incluir os seguintes casos[3]:
- a resolução por inexecução voluntaria, que acontece quando uma das partes, por culpa ou dolo, não executa as obrigações estabelecidas pelo contrato;
- a resolução por inexecução involuntária, que ocorre quando intervê uma impossibilidade objetiva que impede o cumprimento da obrigação;
- a resolução por clausula resolutiva tácita, mais conhecida como exceptio non adimpleti contractus, que é sintetizada no ditado Codicista “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”[4];
- a resolução por onerosidade excessiva, que se verifica quando a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, desequilibrando o sinalagma contratual, em decorrência de um evento extraordinário e imprevisível;
- a resilição bilateral, quando o contrato e’ terminado por acordo das partes;
- a resilição ou denuncia unilateral, quando o contrato e’ terminado unilateralmente e nos casos previstos pela lei.
Em particular, dentro da resolução por inexecução voluntaria ou por inadimplemento [que concentra o maior número de casos de demandas para resolução do negócio] veio também a assumir grande importância o debate jurisprudencial e doutrinário do que há a ser entender para descumprimento das obrigações, principais e acessórias, escritas e não escritas. Assume, por isso, grande importância a obrigação referente aos deveres conteúdos no princípio do respeito da boa-fé objetiva que acompanham a negociação, a redação, a execução e a interpretação de qualquer negócio jurídico, seja isso substancial, processual ou misto.
Releva imediatamente observar que a ampla extensão da obrigação dos deveres descritos pelo respeito do princípio da boa-fé objetiva tenha induzido a jurisprudência e a doutrina a considerar o relacionamento obrigacional não unicamente como simples relacionamento jurídico mas como um relacionamento necessariamente mais complexo, a partir do qual nascem várias e reciprocas outras obrigações entre as partes [além da principal], não necessariamente preordenadas, mas todas finalizadas à satisfação da função principal e relativa ao conseguimento do objeto e do proposito do negócio em si.
Consequentemente, a noção de relação jurídica obrigacional, qual fonte de multíplices obrigações, supera hoje aquela positivada pelo próprio Código Civil, incluindo vários deveres preparatórios e instrumentais à realização do objetivo programático perseguido pelas partes[5]. A eventual análise da patologia chamada de inadimplemento negocial deve, portanto, ter em consideração esta relação jurídica articulada e complexa, que hoje concretiza o vínculo obrigacional.
Independentemente das várias patologias em que o negócio jurídico pode incorrer – seja na sua fase constitutiva ou na sua fase executiva -, a Lei disciplina, e jurisprudência e doutrina complementam, mecanismos de cura e de conversão destes negócios viciados, ao fim de conservar o negócio constituído, em nome de uma maior segurança e transparência das relações jurídicas.
O princípio da conservação consiste em se procurar salvar tudo o que é possível num negócio jurídico concreto, tanto no plano da existência, quanto da validade, quanto da eficácia.
O princípio da conservação é particularmente relevante, sendo que a eventual desconsideração da conceptualização jurídica do brocardo pacta sunt servanda (“os acordos vão respeitados”) tornaria o conceito de negócio jurídico um mero paliativo estético e as consequências – com certeza – não estariam livres de responsabilidades! “A supremacia exacerbada do querer íntimo leva à insegurança nas relações jurídicas. Além disso, esta concepção não atende ao princípio da proteção da boa-fé de terceiros”[6]. De fato, caso os negócios jurídicos pudessem ser desatendidos – pergunta-se – qual outra segurança jurídica existiria entre as relações negociais? E no próprio sistema de Direito?
Por isso – entende-se – vale, e deve valer, o brocardo pacta sunt servanda!
O princípio da conservação – coluna fundamental do Ordenamento Jurídico e da Teoria Geral do Negócio Jurídico – se encontra disciplinado em várias partes do Código Civil. O artigo 170 do Código Civil concretiza toda a força e a importância deste princípio, sendo que o aplica caso se verifique a patologia mais grave que pode afetar o negócio jurídico, ou seja, a própria nulidade [“Rescisão por nulidade”]! Leia-se: “Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quanto o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade” (grifo nosso). Em outras palavras, mesmo em caso de negócio nulo, há a se preservar quantos mais efeitos jurídicos derivem disso.
A mesma disciplina se encontra – evidentemente – também quando a patologia é menos grave, mesmo que afete o negócio no plano da sua validade: vale a dizer, a anulabilidade. O artigo 172 do Código Civil estabelece que: “O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de terceiro”. Mais, o artigo 184 do Código Civil dispõe: “Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte validade, se esta for separável; a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”. Em outras palavras, há a se manter quanto é possível sanar até o próprio negócio na sua totalidade, desde que tenha o acordo das partes e o não prejudique o terceiro!
Da mesma forma, o princípio da conservação se aplica também quando a patologia afeta o plano da eficácia do negócio jurídico, ou seja, em caso de inexecução voluntaria ou um inadimplemento por uma das partes [“Rescisão por inadimplemento”] e em todos os outros casos de desequilíbrio do sinalagma negocial.
Também neste caso, a ratio é a “corrigir” um acordo que – ao longo do tempo – se andou desequilibrando respeito à situação de equilíbrio originário, representado pelo objeto do acordo, e aonde o inadimplemento por uma das partes alterou de fato este equilíbrio (seja isso econômico e/ou jurídico). O desequilíbrio das obrigações que estão em reciproca interdependência – pela existência do sinalagma contratual – concretiza inidoneidade a satisfazer os interesses originários das partes. Daqui a previsão legislativa em querer “sanar” a situação de eventual desequilíbrio (por exemplo, tentando reestabelecer os equilíbrios do originário sinalagma contratual), e unicamente quando não conseguir “sanar” ou “corrigir”, chegar ao último e mais traumático dos remédios, ou seja, o de rescindir ou, mais vulgarmente, desfazer o negócio[7].
A “rescisão” persegue, portanto, a finalidade de resolver um vício de natureza objetiva ao negócio (que determinou o desequilíbrio econômico e/ou jurídico), cujo âmbito de aplicação e’ – com certeza – diferente das mais graves formas patológicas de invalidade constitutiva do negócio [nulidade e anulabilidade]. A parte prejudicada pelo desequilíbrio contratual possui, portanto, o direito à eliminação deste desequilíbrio. O desequilíbrio, determinado por uma situação de inadimplemento, é consequentemente o pressuposto material e processual do pedido de resolução ou rescisão do contrato: a parte não possui o direito de se “libertar” do contrato concluído, mas do contrato eventualmente desequilibrado!
A parte contra a qual se age para que seja declarada a resolução ou a rescisão do contrato poderá, portanto, agir para evita-la, ou demonstrando de fato que não teve um objetivo desequilíbrio ou – se teve – corrigindo-o, oferecendo uma eventual modificação ao contrato, ou interrompendo o estado de inadimplência, etc. Unicamente, quanto não seja possível executar esta fase “corretiva”, caberá o ultimo e mais grave dos remédios, a dissolução do negócio!
A teoria do adimplemento substancial é a expressão mais objetiva do próprio princípio da conservação do negócio jurídico, sendo que permite de analisar, de um lado, a natureza e o peso das obrigações objeto do negócio jurídico [considerado o crescente número de obrigações principais e instrumentais que compõem o vínculo obrigacional] e, doutro, o desequilíbrio do sinalagma inicial que constitui o fundamento do negócio, para poder-se decidir se o negócio precisa efetivamente ser terminado. Lembra-se o ensinamento do grande mestre Pontes de Miranda: “[...] na determinação das categorias jurídicas, se atende ao mínimo suficiente e, na interpretação da vontade negocial, se lhe salva o máximo possível [...][8].
Voltando ao título do presente artigo, a pergunta deveria ser em tom objetivo: quais contratos é que se requeira a rescisão?? A princípio, a resposta deveria ser: “exceto quando previamente estabelecido pelas partes e dentro dos limites da Lei, NENHUM!” Lembre-se o brocardo pacta sunt servanda. A tendência justamente deveria ser – quando objetivamente possível – a de eliminar as situações de invalidade e inadimplências, corrigir as assimetrias e os desequilíbrios assim como os abusos, e continuar manter em vigor o negócio. Unicamente quando – em última análise – não seja objetiva e motivadamente mais possível conservar o negócio e/ou os seus efeitos, o negócio poderá ser declarado desfeito. Havendo como corrigir a invalidade ou o inadimplemento ou ajustar o equilíbrio o contrato deve sempre ser mantido.
Mutatis mutandis, a questão se propõe novamente, sempre em tom objetivo, mas neste caso em relação ao acordo de deleção: “é possível resolver um acordo de delação premiada?”
Por ter uma natureza negocial, há a se entender que as mesmas categorias patológicas que foram analisadas em relação ao geral instituto do Negócio Jurídico [“Rescisão por nulidade” e “Rescisão por inadimplemento”] hajam a se referir também ao acordo de delação.
Desta forma, o acordo de delação poderá ser declarado nulo (“Rescisão por nulidade”) quando for[9]:
- celebrado por pessoa absolutamente incapaz;
- for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;
- o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;
- não revestir a forma prescrita em lei;
- for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade;
- tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
- a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Ainda, o acordo de delação será igualmente nulo quando for simulado [tendo em consideração a definição dada pelo próprio Código: “e’ nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma [...]”.
Enfim, o acordo de delação poderá ser anulável quando, além dos casos expressamente declarados por Lei, os vícios se refiram à incapacidade relativa do agente, ou quando as declarações de vontade que concretizaram a conclusão do negócio jurídico foram o resultado de erro, dolo, coação etc.[10].
No plano da ineficácia [“Rescisão por inadimplemento”], o acordo de delação poderá ser também rescindido caso seja comprovado o descumprimento contratual por uma das partes assim como previsto de forma geral em matéria de inadimplemento pela Teoria Geral do Negócio Jurídico. Em particular, há a se presumir que o acordo de delação possa apresentar uma patologia rescisória quando – no caso do colaborador – o colaborador não “entregue” às Autoridades de Justiça todas as informações e os documentos relevantes para que as próprias Autoridades de Justiça possam beneficiar objetivamente da “ajuda” do colaborador na luta ao crime organizado.
A questão apresenta aspectos não pouco polêmicos, sendo que o acordo de delação é, de fato, um negócio a execução imediata, portanto, o sinalagma se concretiza no momento em que há a troca das prestações, e no especifico – no caso do colaborador – das informações e das outras provas. Uma vez “entregue” as informações (ou outro tipo de atividade probatória) há a se entender que a prestação foi executada, e não pode mais ser objetivamente cancelada[11]. Desta forma, o inadimplemento seria imediatamente detectável, e – assume-se – que provavelmente impediria a própria conclusão do acordo. Considerando-se que o acordo de delação – para ser formalmente perfeito – precisa também passar por um procedimento de homologação judiciário que examina a negociação que foi executada pelas partes (colaborador e Ministério Público) para a realização do acordo, aparece-nos difícil detectar o momento em que poderia se configurar uma patologia que justificaria uma demanda de rescisão por inadimplemento.
Ainda mais, a detecção da situação de inadimplemento ficaria ainda mais complicada quando a prestação exigida ao colaborar integrasse atividades não repetíveis e arriscadas, como a participação em ações controladas (escutas e gravações etc.)[12], que até colocaram em risco a incolumidade, ou até a própria vida, do colaborador. De fato, uma vez realizadas, não tem volta! Trata-se de atividades que, unicamente pelo fato de ter sido executadas se tornam facta concludentia, ou seja, elementos objetivos do cumprimento da prestação[13].
Discutiu-se, também, – sempre ao fim de acertar a situação de inadimplemento do acordo de delação – sobre o eventual descumprimento do princípio da boa-fé objetiva. Há a se entender que – como pela própria definição do instituto da boa-fé objetiva – as obrigações das partes devem ser avaliadas principalmente de forma objetiva, no sentido, de um lado, de ponderar quanto materialmente o colaborador tenha efetivamente contribuído a luta contra o crime, desmascarando e identificando os membros da organização criminosa etc. e, doutro, quanto o Ministério Público tenha objetivamente aproveitado desta colaboração.
Apesar de poder configurar claramente as patologias rescisórias eventualmente aplicáveis ao acordo de delação, o princípio da conservação do negócio jurídico – assim como estatuído pela Teoria Geral do Negócio Jurídico -, há se aplicar também ao acordo de delação. Desta forma, a normativa contida nos artigos 170, 172 e 184 etc. do Código Civil estabelece que, mesmo que o negócio seja afeto de nulidade, anulabilidade ou rescindível por inadimplemento, as partes devem “esgotar” todas as eventuais alternativas ou correções antes que o negócio seja desfeito, lembrando o brocardo pacta sunt servanda e o pressuposto segundo o qual a parte não possui o direito de se “libertar” do contrato concluído, mas do contrato eventualmente desequilibrado!
É importante destacar que o Ordenamento Jurídico privilegia a aplicação do princípio da conservação do negócio enquanto princípio geral. Consequentemente, o mesmo há a ser aplicado também ao acordo de delação.
Portanto, à pergunta é possível rescindir um acordo de delação premiada? Entendemos que a responsa haja a ser verossimilmente objetiva: NÃO, não e’ possível, sendo que pacta sunt servanda! desde que – sendo efetivamente reconhecida e identificada a patologia rescisória – hajam sido esgotadas todas as várias possibilidades de corrigir, sanar e converter o mesmo acordo, eventualmente, em outro, no respeito da aplicação do princípio da conservação do negócio!
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já reconheceu e fundamentou o raciocínio acerca a aplicação do princípio da conservação do negócio, evidenciando – na análise dos casos de delações – a importância e a supremacia dos dados objetivos respeito aos aspectos puramente formais e subjetivos que eventualmente podem só definir a personalidade do colaborador, mas que se tornam irrelevantes – próprio porque não objetivos – para a efetiva concretização da luta ao crime[14].