Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Medidas de combate ao Coronavírus: Uma análise de compatibilidade com a Constituição

Agenda 13/06/2020 às 16:45

Este artigo visa analisar a constitucionalidade das medidas de combate de coronavírus sob os aspectos material e formal. São levantadas questões relativas à proporcionalidade, à legalidade, ao respeito às competências federativas.

INTRODUÇÃO

Em seu art. 1°, a Constituição adota expressamente o Estado Democrático de Direito, que em sentido amplo (para além dos conteúdo político da democracia), expressa a prevalência de direitos fundamentais, os quais assumem caráter nuclear dentro da ideia de constitucionalismo garantístico. As liberdades, nas mais diversas facetas (liberdade de locomoção, liberdade religiosa, liberdade de iniciativa, dentre outras) configuram importante expoente na proteção do indivíduo em face de qualquer ingerência estatal, na medida em que asseguram a autonomia individual em face da autoridade do Estado.

Não obstante, embora a regra seja a plena possibilidade de gozo e exercício dos direitos fundamentais, em tempos de pandemia, o interesse público pode conclamar a adoção de medidas que vão ao encontro da tutela das liberdades, dada a intensificação do Poder de Polícia do Estado. Verifica-se, por exemplo, restrições à liberdade de locomoção (desde o fechamento de estradas e fronteiras até a proibição de sair de casa sem justo motivo); à liberdade religiosa (restrição à prática de cultos nos templos religiosos); de reunião; bem como restrições aos fundamentos e princípios da ordem econômica constitucional, tais como a livre iniciativa e a busca do pleno emprego, respectivamente.

Neste aspecto, o presente artigo tem por escopo avaliar a validade jurídica de tais medidas, buscando responder a seguinte indagação: as medidas de distanciamento social e isolamento determinadas pelas diversas esferas de governo encontram guarida Constitucional?

Para tentar responder o questionamento proposto, o presente artigo se debruça, num primeiro momento, sobre o caráter material das restrições impostas. Após, centra-se na perspectiva da análise da constitucionalidade formal das medidas de restrição, perpassando por aspectos que englobam legalidade, federalismo e sistema constitucional de crises.

  1. ANÁLISE MATERIAL DA VALIDADE DAS MEDIDAS DE COMBATE AO CORONAVÍRUS: UM EXERCÍCIO DE PROPORCIONALIDADE

A Constituição de 1988 consagra-se como um texto comprometido com a realização dos direitos fundamentais. Já no artigo 1°, elenca a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. No título II (arts. 5° ao 17), traz expressamente extenso rol de direitos fundamentais, os quais, todavia, não se limitam ao respectivo título.

Para Marmelstein (2016), os direitos fundamentais “correspondem aos valores mais básicos e mais importantes, escolhidos pelo povo (poder constituinte), que seriam dignos de uma proteção normativa privilegiada”.  Neste cenário, os direitos fundamentais assumem caráter nuclear no ordenamento, e o respeito a tais disposições é fator condicionante e legitimador de qualquer ato do Poder Público. Assim, se o ato mostrar-se incompatível com a sistemática dos direitos fundamentais, eivado estará de inconstitucionalidade, e não poderá permanecer no ordenamento.

Não obstante, embora centrais no ordenamento, os direitos fundamentais não tem caráter absoluto, na medida em que podem ser relativizados à luz de outros direitos igualmente fundamentais. Assim, eventuais restrições a direitos podem se justificar dentro de um determinado contexto.

Como forma de limitação de direitos, no atual cenário de pandemia, ganham relevo as normas poder de polícia estatal, responsável por limitar e restringir a propriedade e os direitos individuais. O art. 78 do Código Tributário Nacional define o Poder de Polícia nos seguintes termos:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Nota-se, pois, que mesmo a liberdade individual, nas suas mais diversas facetas, pode ser condicionada pelo poder de polícia estatal. Resta averiguar, contudo, se as limitações impostas justificam-se diante do contexto de pandemia. Averiguar a validade jurídica das medidas de isolamento social requer, num primeiro momento, a realização de exercício que leva em conta a própria proporcionalidade da restrição adotada.

Para aplicação da proporcionalidade, devem ser sopesados três outros subprincípios: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, os quais devem ser levados em consideração no momento da escolha da restrição individual ser aplicada ao caso concreto. Acerca de tais subprincípios, destaca-se:

Pela adequação, deve-se perquirir se o meio escolhido é ou não adequado para atingir a finalidade colimada. Em caso positivo, a medida será adequada, vencendo o primeiro subprincípio.  A necessidade, por sua vez, guarda relação com a análise se o meio escolhido é o menos drástico e, ao mesmo tempo, suficiente para proteger a norma constitucional. Por fim, quanto à proporcionalidade em sentido estrito, deve-se buscar uma relação entre os bônus e ônus trazidos pela medida, ponderando-se o peso e a importância da mesma, para que se constate se há mais benefícios ou prejuízos. (ALBUQUERQUE, MACEDO, 2020).

Feita estas considerações, cumpre recordar que a recomendação dos órgãos de saúde para combate à pandemia traduz-se em evitar a aglomeração e fluxo de pessoas. Há orientação expressa para que todos fiquem em casa, razão pela qual verifica-se a adoção das medidas restritivas de liberdade com vistas ao aumento do isolamento social. Sob o prisma da adequação, a medida de confinamento mostra-se adequada para o fim colimado, haja vista que tem o condão de interromper o ciclo de transmissão do vírus causador da pandemia.

No que toca à real necessidade de tal medida, os órgãos de saúde parecem convergir no sentido de que a adoção unicamente de medidas menos drásticas (reforço na higiene pessoal, por exemplo) não se mostra suficiente para, por si só, conter a propagação do vírus. Soma-se a este quadro a inexistência de vacinas ou remédios com eficácia comprovada em face da doença, o que reforça a necessidade da medida de isolamento social.

A questão ganha contornos mais tênues, contudo, quando se coloca em debate a análise da proporcionalidade em sentido estrito, buscando-se verificar a relação entre o ônus e o bônus trazido pelas restrições em apreço. Certo é que, se o isolamento social mostra-se medida adequada e necessária para contenção da pandemia, também não se pode olvidar que as medidas tomadas para fazer valer o isolamento vão ao encontro da liberdade individual, ocasionando perdas significativas para diversos setores da economia.

O fechamento do comércio, por exemplo, impacta diretamente na renda de milhares de famílias, com potencial efeito de aumento do desemprego. As restrições à liberdade de locomoção impactam no setor de transportes, trazendo grande dano para esse ramo de atividade. Neste momento, põe-se em relevo a análise de bens jurídicos distintos, que devem ser sopesados pelas autoridades: de um lado, a proteção à saúde pública, consubstanciada no risco de um potencial colapso do sistema de saúde caso não haja uma contenção imediata da propagação do vírus (com aptidão para aumentar exponencialmente o número de mortes); de outro, as questões relativas à economia e abastecimento da população, aliada à forte restrição de direitos individuais.

Nota-se, pois, que a questão em apreço não é de fácil solução. A adoção das medidas de isolamento tende a trazer severos danos para a população. A tutela da liberdade fica comprometida em suas mais diversas facetas: liberdade de locomoção, liberdade religiosa e liberdade de reunião, por exemplo, passam a sofrer restrições que vão além da mera regulação, na medida em que atingem o próprio núcleo essencial do direito. Diversos estados e municípios passaram a adotar o chamado lockdown, determinando o fechamento e paralisação de múltiplas atividades. Com estes atos, também restam afetados os valores da ordem econômica constitucional, como a livre iniciativa e a busca do pleno emprego.

 Todavia, caso tais medidas não sejam tomadas, acredita-se que o potencial danoso da propagação da pandemia pode ser ainda maior, potencializando o número de mortes e ocasionando um colapso na saúde pública. Assim, sob o prisma material, entende-se que a adoção do isolamento social e das medidas restritivas para sua efetivação em tempos de pandemia vence o postulado da proporcionalidade e afigura-se medida razoável e necessária para contenção do coronavírus. Na sequência, passa a analisar as medidas restritivas sob o aspecto formal.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos
  1. - PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E AS MEDIDAS DE COMBATE AO CORONAVÍRUS

Analisados os aspectos materiais das medidas de isolamento, cumpre perquirir acerca dos pressupostos formais que permeiam sua adoção. O primeiro aspecto a ser destacado diz respeito à necessidade de observância do princípio da legalidade.

A legalidade encontra previsão expressa no art. 5°, II da Constituição, o qual dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Trata-se de necessidade de submissão à lei, de modo a limitar o poder do Estado e impedir arbitrariedades.

 Emerson Borges de Oliveira destaca que a legalidade possui facetas diferentes para o Estado e para o cidadão. Segundo o autor, o indivíduo pode fazer tudo o que não lhe seja vedado, ao passo que, para o Estado, tudo o que não lhe for expressamente permitido será proibido.    Ainda para o referido doutrinador “o cidadão pode fazer tudo aquilo que não esbarre na proibição de uma lei. Se a lei nada diz a respeito, então o cidadão poderá fazer.” (Oliveira, 2020, p. 81).

Destaque-se ainda que o princípio da legalidade afigura-se como uma garantia ao particular em face de possíveis ingerências do Executivo e do Judiciário, bem como se sustenta como base do Estado de Direito. Para que determinado ato esteja em consonância com o princípio da legalidade, há a necessidade de que seja colocado por uma lei em sentido amplo, isto é, qualquer das espécies normativas previstas no art. 59 da Constituição[1]. Desta forma, respeitar a legalidade significa adequação ao procedimento formal e material do processo legislativo constitucional, o que não se confunde com a ideia de reserva legal. Por reserva legal, entende-se a necessidade de tratamento de determinadas matérias por leis em sentido estrito.

Ou seja, respeitar a legalidade perpassa pela observância do processo legislativo constitucional, através dos atos previstos no art. 59 da Constituição. Tais atos são chamados atos normativos primários, pois encontram seu fundamento de validade diretamente no Texto Constitucional. Tem, pois, a prerrogativa de inovar no ordenamento jurídico, criando direitos e deveres imputáveis aos individuais.

Como corolário da legalidade, tem-se que demais atos, que não sejam oriundos do processo legislativo, não podem inovar no ordenamento jurídico, pois seu fundamento de validade não encontra guarida direta na Constituição, mas tão somente numa norma infraconstitucional. Por isso, são chamados de atos secundários, e não podem impor, por si próprios, obrigações aos cidadãos. Nesta categoria, encontram-se os decretos do Executivo, que devem servir ao fiel cumprimento da lei, sem aptidão para inovar no ordenamento e criar obrigações não previstas em atos normativos primários.

Certo é que, no âmbito legislativo, o Congresso Nacional agiu rápido e aprovou, ainda em fevereiro de 2020, a lei 13.979. A Lei permite que, para combater a propagação do coronavírus, as autoridades adotem diversas medidas de caráter preventivo e sanitário, dentro às quais destaco, neste momento, o isolamento e a quarentena.

Nos termos do art. 2° da lei em questão, o isolamento constitui a  separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus. A quarentena, por sua vez, diz respeito à restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação.

Note-se que legislação em questão trouxe um panorama geral, inovando no ordenamento ao trazer institutos até então inexistentes, como o isolamento e a quarentena. Neste contexto, certo é que cabe ao Executivo e regulamentar o disposto na lei, mediante a elaboração de decretos. Deve o Executivo, por exemplo, disciplinar a forma como será cumprido o isolamento ou a quarentena, dentro dos termos estabelecidos pela Lei. Caso o Executivo extrapole os limites da regulamentação da Lei, e passe a inovar no ordenamento jurídico por meio de decretos, estar-se-á diante de uma violação do princípio da legalidade.

Aqui reside o primeiro problema formal de várias das medidas de combate ao coronavírus: o desrespeito ao princípio da legalidade. Isto porque, sob a premissa de regulamentar lei, diversos decretos, tanto de Executivos municipais quanto estaduais, passaram a impor restrições à liberdade individual. Ocorre que, muitas das vezes, os decretos extrapolam o poder regulamentar, e acabam inovando no ordenamento, impondo obrigações em descompasso com o princípio da legalidade.

Entendo que os decretos de lockdown, quer determinados pelo Executivo ou pelo Judiciário, sejam o maior expoente de afronta à legalidade. Isto porque a lei não prevê tal prática. Trata-se de inovação na ordem jurídica, realizada ao arrepio da legalidade. Da mesma forma, decretos diretamente criem obrigações e multas em caso de descumprimento também não se coadunam com a legalidade democrática.

3  A PANDEMIA E O FEDERALISMO BRASILEIRO

Outro aspecto que deve ser observado no que toca às medidas de combate ao vírus consiste no respeito à repartição de competências federativas estabelecidas pela Constituição. Isto porque a Constituição adotou a forma federativa de estado, elevando tal escolha ao patamar de cláusula pétrea prevista no art. 60 §4° I.

Acerca da forma federativa de Estado, destaque-se a necessidade de divisão do poder em função do território. Confira-se:

Como característica inerente à Federação, tem-se a existência de distribuição geográfica do poder político em função do território de um determinado Estado soberano. Ou seja, em detrimento do Estado Unitário, no qual há um único polo central que emana todo o poder político, a federação é marcada pela descentralização política do poder. Há, pois, ao lado do ente soberano, outros entes com capacidade política e administrativa próprias, dotados de autonomia. (MACEDO, 2019)

Sobre a dita autonomia, Bernardo Gonçalves Fernandes lecioana que “autonomia é a capacidade de desenvolver atividades dentro de limites previamente circunscritos pelo ente soberano. Assim sendo, autonomia nos traduz a ideia de algo limitado e condicionado pelo ente soberano.” (FERNANDES, 2015, p. 738).

Em aspectos práticos, significa dizer que cada ente federado autônomo (União, Estados, Distrito Federal ou Municípios) possui, como corolário de sua autonomia, as capacidades de se autogoverno, auto-organização e auto legislação, respeitados os limites previamente definidos pela Constituição.

Neste particular, a Constituição lança mão de diferentes técnicas para definir o papel de cada ente federado como elemento de sua autonomia. No art. 23, há competências materiais comuns, atribuídas indistintamente a todos os entes federados, ao passo que o art. 21 elenca competências materiais exclusivas da União. Em relação às competências legislativas, ora a Constituição adota um sistema de repartição vertical (estabelecendo a cada ente sua atribuição), ora adota um sistema horizontal, consubstanciado na existência de competências legislativas concorrentes, previstas no art. 24.  

Importante sedimentar que, no âmbito da competência legislativa concorrente, à União cabe a edição de normas gerais, e aos Estados incumbe o papel de suplementar as normas gerias federais. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência plena. Os municípios, embora não constem como destinatários da competência concorrente do art. 24, podem suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, II CF), dispositivo este que deve ser observado sob o prisma do interesse local, vetor norteador da competência municipal.

Isso posto, certo é que, caso um ente federado ultrapasse os limites de sua competência, tratando sobre matérias da alçada de outros entes, restará configurado o chamado vício formal orgânico, malferindo o ato de inconstitucionalidade.

Com base nestas premissas, deve-se buscar identificar se a imposição de medidas de combate ao coronavírus tem respeitado as atribuições federativas ou se extrapolam os limites constitucionais da repartição de competências.

Tal questão já foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No julgamento da ADI 6341, o STF entendeu que as medidas do Governo Federal de enfrentamento ao novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. Como fundamento, o Supremo destacou que União, Estados, Distrito Federal e Municípios têm competência comum para zelar pela saúde pública, nos termos do artigo 23, inciso II, da Constituição.

Ademais, STF também deferiu medida cautelar na ADI 6343, decidindo que que estados e municípios, no âmbito de suas competências e em seu território, podem adotar, respectivamente, medidas de restrição à locomoção intermunicipal e local durante o estado de emergência decorrente da pandemia do novo coronavírus, sem a necessidade de autorização do Ministério da Saúde para a decretação de isolamento, quarentena e outras providências.

Pelos precedentes acima listados, constata-se que o STF vem entendendo que todos os entes federados podem adotar medidas de combate ao conoravírus, sobretudo pela competência comum para zelar pela saúde pública. Ocorre que a questão não é de fácil solução. Embora tomando por pano de fundo a proteção da saúde, algumas medidas tocam outros ramos e atingem outras searas de competência. A título exemplificativo, a legislação sobre trânsito e transporte é da competência privativa da União (art. 22 XI), e não pode ter seu âmbito invadido por normas estaduais ou municipais, ainda que estas abarquem uma política de fundo de combate ao coronavírus.

E mais: efeitos práticos da descentralização da competência para adoção de medidas de combate ao vírus podem acarretar uma crise de insegurança jurídica. Cite-se, por exemplo, o fato ocorrido após a edição do decreto 10.344 pelo Governo Federal, de 11 de maio de 2020, que incluiu salões de beleza, barbearias e academias como atividades essenciais, com possibilidade de funcionamento durante o estado excepcional decorrente da pandemia. Não obstante, alguns estados trouxeram normativa em sentido contrário, ocasionando uma cenário de insegurança jurídica.[2]

Para além, chega-se ao ponto da possibilidade de coexistência de regras distintas para municípios limítrofes, a exemplo das regiões metropolitanas das grandes capitais brasileiras. Neste cenário, o problema reside no fato de que, muitas das vezes, não são nítidos os limites entre um município e outro. O simples atravessar de um rua pode se estabelecer como marco divisório, ensejando aplicação de regras distintas para localidades tão próximas.

Atente-se ainda para o fato de que as normas sanitárias das autoridades públicas são consideradas normas penais em branco para fins da incidência do tipo penal previsto no 268 do Código Penal (Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa). Tal fato tem o condão de agravar a crise de segurança jurídica, pois pode ocorrer que determinado fato (andar sem máscara, por exemplo) se configure como crime em determinados municípios, mas sejam indiferentes penais em outras localidades.

Percebe-se, pois, que definição dos limites de atuação de cada ente federado não é tarefa simples. Ao mesmo tempo em que a pandemia atinge de forma diversa cada um dos mais de cinco mil municípios brasileiros, o tema é de abrangência nacional. Mais do que isso, trata-se de questão de interesse global. Logo, embora os municípios e estados tenham competência para zelar pela saúde pública, suas medidas deveriam estar em consonância com as medidas adotadas pela União, sob pena de intensificação de embates que traduzem verdadeira guerra federativa e geram grande insegurança jurídica.

  1. SISTEMA CONSTITUCIONAL DAS CRISES – LEGALIDADE EXTRAORDINÁRIA

Outro aspecto que deve ser considerado diz respeito à forma pela qual devem ser impostas as restrições à liberdade como medidas de combate à pandemia. Conforme já sedimentado anteriormente, as medidas adotadas em algumas localidades são drásticas a tal ponto que restringem o próprio núcleo essencial do direito fundamental, extrapolando os limites do poder de polícia ordinário.

Neste jaez, cite-se, por exemplo, o lockdown. Quando decretado, tal medida provoca drástica restrição à liberdade, em suas mais diversas facetas. Resta comprometida a liberdade de locomoção, a livre iniciativa, a liberdade de reunião, religiosa, de profissão, dentre outras.

Se tais medidas extrapolam o regular poder de polícia, saliente-se que a própria Constituição traz mecanismos excepcionais para o devido enfretamento de situações de crise, os quais possibilitam a inserção de um estado de legalidade extraordinária, legitimando práticas que restrinjam direitos fundamentais em detrimento do interesse público.

Enquadram-se nestas situações excepcionais, com possibilidade de restrição de direitos, a decretação dos estados de defesa e de sítio. Esses estados excepcionais informam-se pelos princípios da necessidade e temporariedade, tendo por função precípua reestabelecer a normalidade constitucional. Por sua própria essência, têm por consectário a imposição de limitações às liberdades constitucionais.  O sistema constitucional das crises, uma vez acionado, tem o condão de gerar, no âmbito da sociedade civil, o status subjectionis, com aptidão para afetar de modo substancial o regime das liberdades públicas.

Alerte-se, todavia, que não se deve confundir os estados constitucionais de exceção com os decretos de calamidade pública. Estes tem impacto diretamente nas questões que englobam o orçamento público, ditando medidas a serem tomadas pelo Estado na busca de contornar determinada situação, com fundamento no art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal[3]. Todavia, não podem impedir o gozo dos direitos individuais, ainda que calcados sob a égide de normas de vigilância sanitária. Isto porque as normas sanitárias configuram, por sua essência, exercício do poder de polícia que, naturalmente, limitam a liberdade individual. Não podem, contudo, restringir o exercício de uma atividade lícita de modo a inviabilizar o seu exercício, sob pena de ilegalidade.

Neste contexto, a suspensão de direitos fundamentais devidamente postos pela Constituição somente se legitima em face da configuração dos estados excepcionais (estado de defesa e estado de sítio), os quais instituem um sistema de legalidade extraordinária, com base na necessidade, temporariedade e proporcionalidade.

Neste cenário, destaque-se o caráter excepcional do estado de defesa e estado de sítio. Ou seja, conforme já delimitado alhures, a regra traçada pela Constituição é o pleno exercício dos direitos fundamentais, devendo qualquer situação que suspenda seu legítimo exercício ser tratada como excepcional. Ou seja, o decreto de estado de defesa ou de sítio somente terá cabimento nos casos graves, em que a situação fática não pôde ser solucionada pelas relações institucionais entre os Poderes, sempre com escopo de restaurar a situação de normalidade.

Ademais, o decreto deve ser temporário. No estado de defesa, não será superior a trinta dias, (art. 136 §2º CF), havendo possibilidade de prorrogação por uma única vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação. No estado de sítio, se decretado com base no art. 137 I (

Verifica-se, destarte, que a duração da medida deve ficar adstrita ao tempo estritamente necessário para restauração da normalidade. Assim, uma vez cessados os motivos que ensejaram a decretação excepcional, deve o exercício dos direitos fundamentais ser prontamente retomado, sob pena de restar configurada inconstitucionalidade, com consequente apuração de responsabilidade dos executores da medida.

No que concerne às limitações materiais trazidas pelos decretos excepcionais, o estado de defesa, nos termos do art. 136 § 1° da Constituição, implica em restrições aos direitos de a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; bem como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública. Tem como pressuposto preservar ou restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

No estado de defesa, existe ainda a possibilidade de prisão por crime contra o Estado, na ocorrência de hipóteses a que se refere o art. 136, caput, da Constituição. Ressalte-se que esta, determinada pelo executor da medida, configura exceção ao princípio trazido no art. 5º, inc. LXI da Constituição, que determina que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente.

O estado de sítio, por sua vez, tem caráter ainda mais rigoroso. Nos termos do art. 137 da Constituição, pode ser decretado diante de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; bem como em caso de  declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Trata-se de estado excepcional que culmina na suspensão de garantias constitucionais.

Nos termos do art. 139 a Constituição permite a adoção das seguintes medidas durante o estado de sítio:  obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; e  requisição de bens.

Feita esta explanação, reitere-se que, conforme sedimentado, a suspensão de direitos fundamentais somente se afigura constitucional diante dos estágios excepcionas previstos na Constituição como mecanismos de defesa do estado e das instituições democráticas. Neste quadrante, embora adequada e necessária, as medidas decorrentes da política de isolamento social (proibição de reuniões, restrições à liberdade de locomoção, à liberdade religiosa, dentre outras) somente se legitimam e ganham caráter cogente a partir da decretação formal de um estado excepcional.

Frise-se que, pelo cenário atual de pandemia mundial, entende-se que há substrato material suficiente para decretação de estado de sítio, calcado na comoção de grave repercussão nacional (art. 137 I CF). Saliente-se que a principal medida de combate à pandemia (isolamento social) encontra fundamento direto no art. 139 I da Constituição (obrigação de permanência em localidade determinada), bem como no inciso IV do mesmo dispositivo (suspensão da liberdade de reunião).

Recorde-se ainda da existência de mecanismos de controle por parte do legislativo quando da decretação de estado de sítio (necessidade de autorização do Congresso), o que afasta eventual alegação de autoritarismo por parte do chefe do executivo.

Afora a decretação formal de algum estado excepcional, a política de isolamento social levada a efeito pelo poder público deve ter caráter tão somente educativo e de orientação, não podendo suspender a liberdade individual.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, constata-se que as medidas de combate à pandemia adotadas nas diversas esferas de governo vencem o postulado da proporcionalidade, sendo materialmente constitucionais em face da necessidade de preservação do direito fundamental à saúde pública.

Não obstante, encontram óbices formais, tanto em questões de legalidade e competência, extrapolando os limites do regular poder de polícia. As medidas mais drásticas (lockdown) somente se legitimariam sob o prisma formal durante os estados de legalidade extraordinária, haja vista que atingem o núcleo essencial da tutela das liberdades, ocasionando não uma mera restrição, mas sim verdadeira suspensão do exercício de direitos.

Se a própria Constituição determina que durante o estado de sítio pode-se obrigar os indivíduos a permanecerem em localidade determinada e suspender o direito de reunião (art. 139, I e III), a interpretação a contrario sensu deve-se dar no sentido de que, ausente uma decretação formal de um estado de legalidade extraordinária, tais medidas não podem ser adotadas. As medidas restritivas são, pois, materialmente constitucionais, mas formalmente não se coadunam com a Constituição.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Helcínkia. MACEDO, Pedro. Aplicação de valores constitucionais e direitos fundamentais às medidas coercitivas executivas. In Perspectivas teóricas sobre o direito contemporâneo. Uma discussão sobre os direitos humanos e as políticas públicas. EDITORA ÍTHALA CURITIBA – 2020. Organizadores SABRINA CASSOL FABIANA DAVID CARLES CHARLES BORGES ROSS. p. 256.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Editora Jus Podivm, 2015.

MACEDO, Pedro. Intervenção federal e sua efetivação nos estados do Rio de Janeiro e Roraima. Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Acre. Rio Branco, v.14, dez, 2019. P. 135.MARMELSTEIN. George. Curso de Direitos Fundamentais. 6ª edição. Editora Atlhas. 2016. P. 258.

OLIVERIA, Emerson Ademir Borges de. A Constituição Brasileira ao alcance de todos. 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.


[1] Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de:

I - emendas à Constituição;

II - leis complementares;

III - leis ordinárias;

IV - leis delegadas;

V - medidas provisórias;

VI - decretos legislativos;

VII - resoluções.

Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.

[2] A título de exemplo, leia-se a matéria disponibilizada pelo Correio Braziliense, a qual determina que a maioria dos governadores decidiu ignorar as medidas do governo federal. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/05/12/interna_politica,853992/saloes-de-beleza-governadores-ignoram-decreto-de-bolsonaro-para-reabe.shtml

[3] Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:

I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;

II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9o.

Sobre o autor
Pedro Augusto França de Macedo

Procurador do Estado do Acre. Mestre em Direito pela Universidade de Marília. Especialista em Direto Constitucional, Direito Público e Processual Civil.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!