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Dosimetria da pena: critérios para a fixação da pena privativa de liberdade e a desproporcionalidade na aplicação da pena

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Agenda 15/06/2020 às 20:43

A dosimetria da pena é um ato discricionário do julgador. Porém, é necessário apego a critérios ideais para a fixação da pena-base e provisória, já que o legislador não trouxe um quantum definido para estas duas primeiras etapas do sistema dosimétrico.

Resumo: A dosimetria da pena é um ato discricionário do julgador. Porém, é necessário apego a critérios ideais para a fixação da pena-base e provisória, já que o legislador não trouxe um quantum definido para estas duas primeiras etapas do sistema dosimétrico. Por isso mesmo, é necessário o estudo desses critérios que a doutrina e a jurisprudência vêm ao logo do tempo aprimorando-os, fazendo uma análise crítica que contribua para o desenvolvimento da matéria. Para tanto, é necessário, ainda, demonstrar distorções na aplicação de tais critérios em cotejo com os princípios da individualização da pena, da hierarquia das fases e da proporcionalidade.

Palavras-chave: Dosimetria da pena. Pena-base. Critérios ideais. Princípios da dosimetria da pena. Pena provisória. Desproporcionalidades. Discricionariedade do julgador.


1. INTRODUÇÃO

Para a correta fixação da pena, o julgador precisa fazer uso de critérios que o orientam a aplicar a pena em um determinado quantum. Não são critérios rígidos, mas têm grande aplicabilidade para a maioria dos casos em concreto.

No entanto, a utilização errônea desses critérios pode criar distorções para o sistema trifásico fronte aos princípios basilares que regem a dosimetria da pena. Por isso, o presente artigo objetiva a investigação de critérios ideais para a fixação da pena-base e seus possíveis reflexos para a fixação da pena intermediária ou provisória quando há elementos que podem incidir em fases distintas, como ocorre, por exemplo, com a reincidência e os antecedentes criminais.

Nesses casos, o julgador deve ter o cuidado de não desvirtuar a hierarquia das fases e, por conseguinte, o sistema trifásico, criando distorções que resultam em aplicação de pena maior para um réu com maus antecedentes do que para o réu reincidente, ou até mesmo quando multirreincidente.

Por isso mesmo, é relevante o estudo desses critérios que os tribunais e a doutrina vêm desenvolvendo para, em seguida, ser analisada uma hipótese de violação ao sistema trifásico e quais as possíveis soluções a jurisprudência adota para superar a questão.

No primeiro tópico será abordado o ponto de partida para a fixação da pena-base em que a doutrina e a jurisprudência, desde os tempos da codificação penal, discutem como iniciar o cálculo dosimétrico.

No segundo tópico será abordado o dever de motivação e da explicitação do raciocínio lógico percorrido pelo julgador para a fixação da pena-base, pois uma motivação obscura pode ocasionar dificuldade na interpretação para as partes e ao próprio Tribunal, em caso de reanálise da matéria.

No terceiro tópico serão estudados os critérios ideais propostos pela doutrina para a fixação da pena-base e adotados pelos Tribunais em seus julgados, confrontando com a discricionariedade regrada do julgador na aplicação da pena.

No quarto tópico, será analisada a possibilidade de ocorrência de concurso entre circunstâncias judiciais favoráveis e desfavoráveis e o posicionamento dos Tribunais.

Ao final, no último tópico, será analisada a aplicação de um dos métodos para a fixação da pena-base e provisória e qual possível distorção ocorre com a utilização desses critérios para a fixação da pena definitiva, apontando possíveis soluções encontradas pela doutrina e a jurisprudência.


2. DO PONTO DE PARTIDA PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE

Segundo o raciocínio lógico do art. 68. do Código Penal - CP, a pena-base será fixada atendendo-se ao critério do art. 591 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.

O consagrado método trifásico de aplicação da pena tem por objetivo viabilizar o exercício do direito de defesa, explicando para o réu os parâmetros que conduziram o juiz na determinação da reprimenda2.

Desde logo, percebe-se que o Código Penal não trouxe regras matemáticas e tampouco absolutas quanto a fixação da pena-base. Longe disso, o estatuto repressivo apenas expôs regras simples que orientam a atividade jurisdicional no bojo da dosimetria da pena, conferindo ao julgador uma discricionariedade que, por sua vez, revela-se regrada para o seu cálculo3.

A doutrina mais tradicional, forte nas lições de Nelson Hungria, entendia que, para o cálculo da pena-base, o julgador deveria partir do termo médio que é obtido por meio da aritmética entre a pena mínima e a máxima abstratamente cominada ao tipo penal incriminador4. Com isso, se a maioria das circunstâncias judiciais do art. 59. do CP fossem favoráveis ao réu, a pena-base deveria ser fixada próximo ao mínimo legal. Caso contrário, se a maioria das circunstâncias judiciais fossem desfavoráveis, a pena-base seria fixada próximo à pena máxima em abstrato. Conclusão idêntica também chegou Roberto Lyra5.

Contrariando o pensamento de tais autores, Gilberto Ferreira se opõe ao modelo de fixação da pena-base a partir de um termo médio, pois, segundo o autor, cada vez que houver um equilíbrio entre as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis, a pena-base será sempre aquela que seria escolhida como parâmetro inicial, seja o termo médio, seja a pena mínima6.

Com isso, o referido autor quis demonstrar que a depender do modelo adotado pelo julgador como ponto de partida para a fixação da pena, seja a pena mínima, seja o termo médio, a pena-base seria sempre fixada no quantum incialmente escolhido, caso houvesse um equilíbrio entre as circunstâncias favoráveis e as desfavoráveis. Nesse sentido, o autor conclui que a utilização do termo médio como ponto de partida, conforme a proposta da doutrina tradicional, causaria prejuízo ao réu, posto que a pena-base inevitavelmente seria fixada naquele ponto inicial escolhido pelo julgador, caso ocorresse um equilíbrio entre circunstâncias favoráveis e circunstâncias desfavoráveis ao réu. O mesmo ocorreria caso o julgador adotasse a pena mínima como ponto de partida, porém este último seria, segundo o autor, o modelo mais benéfico ao réu, pois a pena-base não seria afastada do seu mínimo7.

Entretanto, deve-se ponderar que o referido autor utilizou o método de compensação entre quatro circunstâncias favoráveis e quatro circunstâncias desfavoráveis para assim chegar a referida conclusão.

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Sídio Rosa de Mesquita Júnior, negando a possibilidade de um concurso entre as circunstâncias judiciais (favoráveis e desfavoráveis), assevera que o julgador não está compelido a iniciar o cálculo da pena-base pela pena mínima em abstrato e tampouco pelo termo médio. Também não haveria óbice caso o julgador preferir iniciar o cálculo pela pena máxima em abstrato e ir reduzindo-a na medida em as circunstâncias fossem consideradas favoráveis, pois, para o autor, independentemente de onde se inicie o cálculo, obter-se-á o mesmo resultado8.

Ricardo Augusto Schmitt, por outro lado, entende que o critério do termo médio é absolutamente descabido por estar a margem de qualquer fundamento legal. Isso porque a pena-base, segundo o autor, deverá ser fixada a partir da pena mínima abstratamente prevista para o tipo penal incriminador e somente poderá ser exasperada em caso de reconhecimento de circunstância judicial valorada pelo julgador como desfavorável (ou negativa) para o agente9.

Avançando-se nesse dilema doutrinário, a jurisprudência, tanto dos Tribunais Superiores quanto a do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), consolidaram o entendimento no mesmo sentido da doutrina mais moderna. Isto porque, a fixação da pena-base acima do mínimo legal requer fundamentação idônea, não sendo razoável a utilização de parâmetros que impliquem no recrudescimento da pena sem que haja motivação adequada para tanto. Veja-se os seguintes julgados:

[...] 2. A quantidade da pena-base, fixada na primeira fase do critério trifásico (CP, arts. 68. e 59, II), não pode ser aplicada a partir da média dos extremos da pena cominada para, em seguida, considerar as circunstâncias judiciais favoráveis e desfavoráveis ao réu, porque este critério não se harmoniza com o princípio da individualização da pena, por implicar num agravamento prévio (entre o mínimo e a média) sem qualquer fundamentação. O Juiz tem poder discricionário para fixar a pena-base dentro dos limites legais, mas este poder não é arbitrário porque o caput do art. 59. do Código Penal estabelece um rol de oito circunstâncias judiciais que devem orientar a individualização da pena-base, de sorte que quando todos os critérios são favoráveis ao réu, a pena deve ser aplicada no mínimo cominado; entretanto, basta que um deles não seja favorável para que a pena não mais possa ficar no patamar mínimo. Na fixação da pena-base o Juiz deve partir do mínimo cominado, sendo dispensada a fundamentação apenas quando a pena-base é fixada no mínimo legal; quando superior, deve ser fundamentada à luz das circunstâncias judiciais previstas no caput do art. 59. do Código Penal, de exame obrigatório. Precedentes. 3. Habeas-corpus deferido em parte para anular o acórdão impugnado e, em consequência, a sentença da Juíza Presidente do Tribunal do Júri, somente na parte em que fixaram a pena, e determinar que outra sentença seja prolatada nesta parte, devidamente fundamentada, mantida a decisão do Conselho de Sentença.

(STF - HC: 76196 GO, Relator: MAURÍCIO CORRÊA, Data de Julgamento: 29/09/1998, Segunda Turma, Data de Publicação: DJ 15-12-2000 PP-00062 EMENT VOL-02016-03 PP-00448);

HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE ROUBO QUALIFICADO. FIXAÇÃO DA PENA. NULIDADE. ART. 59. DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇÃO CONCRETA. INOBSERVÂNCIA DO CRITÉRIO TRIFÁSICO. REGIME INICIAL FECHADO PARA CUMPRIMENTO DA PENA. IMPROPRIEDADE. PRECEDENTES. 1. Não pode o magistrado sentenciante majorar a pena fundando-se, tão-somente, em referências vagas, sem a indicação de qualquer circunstância concreta que justifique o aumento, e inobservando o critério trifásico, de forma desordenada e em fases aleatórias. Precedentes desta Corte Superior. […]

(HC 96.395/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 11/03/2008, DJe 14/04/2008);

ESTUPRO - VIOLÊNCIA PRESUMIDA - VÍTIMA MENOR DE 14 ANOS - PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL - REDUÇÃO DA PENA - IMPOSSIBILIDADE - CULPABILIDADE - PERSONALIDADE DO AGENTE - CONSEQUÊNCIAS DO CRIME - CORRETA VALORAÇÃO - SENTENÇA MANTIDA. 1) - Correta a sentença que exaspera a pena-base em decorrência de 03 (três) circunstâncias judiciais desfavoráveis ao acusado. (...) 5) - Recurso conhecido e desprovido.

(Acórdão n. 448524, 20030510012433APR, Relator: LUCIANO MOREIRA VASCONCELLOS, Revisor: LEILA ARLANCH, 1ª Turma Criminal, Data de Julgamento: 16/09/2010, Publicado no DJE: 15/10/2010. Pág.: 214). (Grifou-se)

Logo, vê-se que, para a jurisprudência, importa muito por onde é iniciado o cálculo da pena-base, seja porque poderia o julgador chegar a um quantum diverso, a depender do ponto de partida ou do parâmetro adotado, seja porque é necessária motivação idônea para que a pena-base seja afastada da pena mínima legalmente prevista.

Nesse contexto da doutrina mais moderna e da jurisprudência, se todas as circunstâncias judiciais operadoras do art. 59. forem favoráveis ao réu, a pena-base deve ficar no mínimo previsto. Caso contrário, se algumas circunstâncias forem desfavoráveis, deve afastar-se do mínimo. Portanto, o cálculo da pena deve iniciar a partir do limite mínimo e só, excepcionalmente, quando as circunstâncias judiciais revelarem especial gravidade, se justificaria a fixação da pena-base além do mínimo legal10.

Nessa perspectiva, para a doutrina majoritária e também para a jurisprudência, apresenta-se, pois, desacertada a criação de qualquer parâmetro inicial de aplicação da pena, a não ser aquele em que se inicia a partir do mínimo legal, sobretudo quando cotejado no aspecto da estrita legalidade11.


3. DO DEVER DE MOTIVAÇÃO E DA EXPLICITAÇÃO DO RACIOCÍNIO LÓGICO PERCORRIDO PELO JULGADOR PARA A FIXAÇÃO DA PENA-BASE

A atividade jurisdicional, principalmente no que tange a aplicação da pena, deve estar sempre pautada no primado da legalidade. Impõe-se, com isso, que a discricionariedade do magistrado seja sempre fundamentada e motivada, para que seja atendida a dupla finalidade da sanção penal em concomitância ao seu caráter ressocializador12.

Gilberto Ferreira ensina que não basta que o magistrado pronuncie quais as circunstâncias que o levaram a fixar a pena-base. É necessário, ainda, que o magistrado diga qual a exata valoração que cada circunstância judicial valorada incidiu para a exasperação da pena-base, não só para obedecer ao disposto no art. 93, inciso IX, da CF/88, mas, sobretudo, para demonstrar ao réu e também ao Tribunal, em caso de reapreciação da matéria, qual a exata quantidade de pena atribuída a cada circunstância judicial13.

Ocorre que a praxe forense contraria o que se vem buscando através da doutrina, na medida em que há omissão do patamar de aumento atribuído para cada circunstância judicial negativa, ou seja, a quantificação de cada uma delas de forma individualizada14. Toma-se, como exemplo, o seguinte trecho de sentença penal15:

[...] A culpabilidade, aqui entendida pelo grau de reprovabilidade da conduta do agente, é inerente ao tipo. O réu possui três condenações definitivas por fatos anteriores (fls. 28, 30, 32). Utilizo a condenação de fl. 28. para valorar os maus antecedentes; e as demais na fase seguinte. Não há, nos autos, elementos negativos em relação a sua conduta social e personalidade. O motivo do delito é inerente ao tipo. As circunstâncias do crime não apresentaram peculiaridades além daquelas esperadas para o tipo. O crime gerou as consequências ordinárias à espécie delitiva. A circunstância relativa ao comportamento da vítima é neutra e não pode ser computada em seu favor porque se trata do Estado.

Em atenção à disposição contida no art. 42. da Lei nº 11.343/06, observo que a quantidade da droga apreendida (mais de 2kg de maconha) fundamenta a exasperação da pena-base.

Assim sendo, considerando os antecedentes e a circunstância judicial acima desfavoráveis, fixo a pena-base em 7 (sete) anos de reclusão, além de 700 (setecentos) dias-multa. [...] (Grifou-se)

Mesmo que se afirme que o raciocínio lógico percorrido pelo julgador esteja correto e que ao final a pena-base foi devidamente fixada naquele quantitativo, a d. sentença carece de fundamentação em relação ao quantum de aumento dado para cada uma das circunstâncias judiciais valoradas negativamente. Mais grave se torna o fato se observado que a Lei de Drogas (Lei n. 11.343/2006) possui rito próprio e estabelece, no seu art. 42, que na dosimetria da pena a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente preponderam sobre as demais circunstâncias previstas no art. 59. do CP16.

Ora, se o julgador, na hipótese supracitada, valorou os antecedentes e a quantidade da substância apreendida, sendo que esta última prepondera sobre as demais circunstâncias presentes, ou seja, sobre os antecedentes, e ao final a pena-base foi exasperada em dois anos além da pena mínima prevista para o tipo, perfazendo o total de sete anos, qual é a exata fração de aumento dada para cada circunstância valorada?

No entanto, ainda que não haja impedimento legal para tanto, a doutrina mais moderna tende a não permitir que o julgador exponha de maneira concreta o patamar de aumento por ele adotado, tampouco admite que exponha onde seria aplicada esta fração, se sobre a pena mínima ou se sobre o intervalo da pena abstratamente cominada. Schmitt, por exemplo, aponta que na fixação da pena-base o juiz não deve fazer constar no seu julgado o patamar de valoração e a forma de incidência. Isto porque, diversamente do que ocorre na terceira etapa de dosimetria da pena, inexiste nas duas primeiras fases valores fracionários previamente definidos em lei e, portanto, o julgador não poderia fazê-lo constar na fundamentação para fixação da pena-base por ausência de previsão legal nesse sentido. Para Schmitt, a revelação do patamar de valoração eleito e a forma de sua aplicação se dará naturalmente ao destinatário da sanção penal na fixação da pena-base17.

Entretanto, é possível verificar que em determinados casos é impossível avaliar qual o parâmetro adotado pelo julgador, principalmente quando há circunstâncias judiciais preponderantes previstas na legislação extravagante ou, ainda, quando o julgador adota um modelo diferente daqueles em que a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais majoritariamente adotam ou, ainda, nos casos em que o julgador não veja necessidade de aplicar a pena próximo ao patamar tido como ideal.

Nesse contexto, em caso de reapreciação da matéria, tanto as partes quanto os Tribunais não enxergariam o norte escolhido pelo julgador e, inevitavelmente, estes comparariam o resultado encontrado pelo julgador de piso com os parâmetros que são majoritariamente utilizados. Com isso, a decisão anterior poderá sofrer modificações tão somente por não ter sido possível enxergar o parâmetro escolhido pelo Juízo a quo. É o que ocorre, por exemplo, com a sentença penal supra colacionada.

Mesquita Júnior, na mesma linha, sustenta que o juiz deve motivar a consideração de uma circunstância como desfavorável, mas ele não está obrigado a dizer o quantum considerado para cada circunstância valorada negativamente. Para o autor, deve ser evitado que, na sentença, o juiz traga, por exemplo, 1 ano, 6 meses e 12 dias, pois, segundo explica, nesse caso o juiz deixaria transparecer a ideia de um critério matemático, pois transformaria o subjetivo em objetivo e, assim, ocorreria a nulidade de sua decisão18.

Apesar das ponderações de Mesquita Júnior, que a adoção de um critério matemático geraria nulidade da decisão, somada às orientações prestadas por Schmitt, que o juiz não deve fazer constar no seu julgado o patamar de valoração e a forma de incidência, como citado alhures, a jurisprudência, especificamente a dos Tribunais locais e em especial a do eg. TJDFT, não trata a exposição do patamar e a forma de sua incidência pelo julgador como adoção de um critério puramente matemático, menos ainda como causa de nulidade da decisão. Isto fica claro nos acórdãos, seja quando o Tribunal atua em reapreciação da matéria, seja quando o mesmo atua como instância condenatória após recurso do órgão ministerial contra sentença absolutória, senão veja:

PENAL. ROUBO COM CONCURSO DE PESSOAS. PROA SATISFATÓRIA DA MATERIALIDADE E AUTORIA. CORREÇÃO DA DOSIMETRIA DA PENA. DESCONTO PELA NEUTRALIDADE DA CONDUTA SOCIAL. SENTENÇA REFORMADA EM PARTE. 1. Réu condenado por infringir o artigo 157, § 2º, inciso I e II, do Código Penal, depois de, com ajuda de comparsa subtrair os bens de um homem que caminhava na rua, intimidando-o mediante grave ameaça. 2. A folha penal do réu não autoriza a análise negativa da conduta social, na primeira fase da dosimetria da pena, servindo apenas à configuração de maus antecedentes. 3. Não há critério definitivo para a delimitação da pena-base, sempre sujeita à discricionariedade do Juiz, dentro de critérios de razoabilidade e proporcionalidade, reputando-se correto o critério que aumento da pena-base em até um oitavo, incidente sobre a diferença entre a pena mínima e máxima em abstrato por cada moduladora desfavorável. 4. Apelação parcialmente provida.

(Acórdão 1201341, 20161510039210APR, Relator: GEORGE LOPES, Revisor: CRUZ MACEDO, 1ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 5/9/2019, publicado no DJE: 18/9/2019. Pág.: 157-171). (Grifou-se)

Ora, é o próprio Schmitt quem colaciona julgados do c. Supremo Tribunal Federal (STF)19 os quais determinam que “caberá às instâncias ordinárias, mais próximas dos fatos e das provas, estabelecer a pena ideal, enquanto aos Tribunais Superiores, no exame da dosimetria da pena em grau recursal, competirá o controle da legalidade e da constitucionalidade dos critérios empregados, bem como a correção de eventuais discrepâncias, se gritantes ou arbitrárias, nas frações de acréscimos empregadas pelo julgador”20.

Em momento algum os tribunais suscitam que a adoção pelo julgador de critérios para a fixação da pena-base ou mesmo para a fixação da pena provisória provocaria a nulidade da decisão, como citam aqueles que defendem que o julgador não poderia deixar transparecer os critérios por ele adotados na dosimetria. Aliás, os julgados conceituam como critério objetivo-subjetivo a junção da discricionariedade do julgador e a aplicação critérios objetivos, dando a entender que o julgador poderá sim adotar critérios matemáticos, não havendo obstrução ao exercício da sua discricionariedade na avaliação do caso concreto, para tanto. Veja-se:

DIREITO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. MOTIVO TORPE. RECURSO DE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. FEMINICÍDIO. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. QUALIFICADORAS COMPROVADAS. DECISÃO DOS JURADOS MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. NÃO OCORRÊNCIA. ERRO OU INJUSTIÇA NO TOCANTE À APLICAÇÃO DA PENA. DOSIMETRIA. QUANTUM DE EXASPERAÇÃO. CRITÉRIO OBJETIVO-SUBJETIVO DA FIXAÇÃO DA PENA-BASE. ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA. TENTATIVA. FRAÇÃO DE DIMINUIÇÃO. MANUTENÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. (...). 5. Na individualização da pena, observa-se a discricionariedade regrada, sendo amplamente aceito pela jurisprudência o critério de aumento de 1/8 (um oitavo) do intervalo entre a pena mínima e a máxima, para cada circunstância judicial valorada negativamente. 6. Em que pese a ausência de previsão legal do quantum de redução ou aumento de pena decorrente da presença de atenuantes ou agravantes genéricas, a doutrina majoritária e a jurisprudência desta Corte sugerem a fração de 1/6 (um sexto), referente ao patamar fixado na primeira fase. (...). 8. Recurso conhecido e parcialmente provido.

(Acórdão 1197630, 20171410048222APR, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, Revisor: SEBASTIÃO COELHO, 3ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 29/8/2019, publicado no DJE: 2/9/2019. Pág.: 306/313). (Grifou-se)

Se o julgador de primeira instância assim estivesse desautorizado, também estariam os Tribunais de Justiça desautorizados a fazer constá-los nos seus acórdãos, ainda quando atuem reapreciando a matéria após recurso das partes. Seria inconcebível permitir que os Tribunais de Justiça aplicassem a técnica em seus acórdãos, sendo defeso aos Juízes de primeira instância fazê-lo, já que as instâncias ordinárias, segundo o STF, têm o mesmo objetivo, qual seja, o de estabelecer a pena ideal.

Neste diapasão, Schmitt reconhece que o sistema de dosimetria como o brasileiro, fundado na indeterminação relativa, pode apresentar graves disparidades na aplicação das penas para casos similares, violando-se os princípios da igualdade e da razoabilidade. Tais desproporcionalidades podem, todavia, ser reduzidas mediante a adoção de critérios objetivos, não absolutos, porém proporcionais, pois não é dado ao julgador absoluta liberdade na fixação da pena, porquanto sempre estará vinculado aos ditames legais21.

Não se pode perder de vista que entre as oito circunstâncias judiciais a serem avaliadas pelo julgador, umas podem ser consideradas mais aptas a exasperar a pena do que outras, mesmo sendo ambas desfavoráveis ao réu, exigindo-se a aplicação de diferentes patamares para cada uma delas22.

Rogério Greco, em lição sobre tratamento igualitário que o judiciário deve prestar às partes, embora não se posicione se seria um dever que o julgador demonstre na fundamentação o parâmetro por ele adotado, aduz que muito além de uma mera determinação constitucional expressa pelo art. 93, inciso IX, a fundamentação do ato decisório afigura-se como um direito das partes, pois “tanto o réu como o Ministério Público devem entender os motivos pelos quais o juiz fixou a pena-base naquela determinada quantidade”23.

Sobre o autor
Rony Roberto José Martins

Bacharel em Direito pela Universidade do Distrito Federal (UDF) - 2019. Advogado, OAB / DF 65.763, especialista em dosimetria da pena.

Informações sobre o texto

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