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As relações exteriores do Estado brasileiro:

um enfoque histórico e jus-sociológico

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Agenda 30/04/2006 às 00:00

I.Delimitação do tema e hipótese do trabalho

            I.1-Considerações prévias

            Numa época em que o Brasil, enquanto Estado e enquanto Nação, se esforça para aumentar a sua participação política e econômica no sistema internacional, o estudo das relações exteriores do Estado Brasileiro adquire uma importância cada vez maior.

            O Brasil, conforme as palavras precisas do professor Fernando Diégues, "... não fora criado para ser uma nação, não era essa, nem poderia esperar que fosse, a intenção de seus descobridores." (1)

            Assim sendo, não é surpreendente que o processo político que culminou com a Independência do Brasil em 1822 carecesse de uma efetiva participação popular, na medida em que o aludido processo foi conduzido pelas elites governantes que gravitavam em torno do então Príncipe D.Pedro I em obediência, única e exclusivamente, à lógica política e aos interesses sócio-econômicos das elites nacionais, regionais e locais daquela época.

            Some-se ao fenômeno acima descrito um fenômeno histórico de extrema importância, qual seja o fato de que é inerente às nossas elites a visão patrimonialista no trato da res publica, incluindo aí a condução dos negócios externos.

            A principal conseqüência disto, no âmbito das relações internacionais pós-Independência, foi uma condução dúbia dos negócios internacionais por parte do Estado Brasileiro, condução essa que se deveu, em grande parte, a falta de um projeto político e sócio-econômico abrangente e coerente de longo prazo calcado numa identidade nacional que era inexistente no momento da Independência em 1822 e que permaneceu ambivalente e difuso, na melhor das hipóteses, nos 180 anos subseqüentes.

            Em outras palavras, a ausência de um projeto de Nação devidamente consolidado e articulado no momento da Independência, determinou que as relações externas brasileiras fossem conduzidas desvinculadas de um projeto de construção e consolidação da Nação Brasileira, obedecendo, via de regra, aos interesses conjunturais dos sucessivos governantes, interesses estes, no mais das vezes, vinculados ou determinados aos fatores exógenos à realidade política, social e econômica do Brasil.

            I.2-Hipótese de trabalho e metodologia empregada

            Em função do exposto no sub-tópico anterior, importa destacar que a hipótese de trabalho da presente obra é deveras simples: a condução dos negócios externos em nosso país foi, nos últimos dois séculos, levada a cabo em conformidade não em função de um projeto nacional claro e preciso, de acordo com os interesses nacionais, mais em função exclusivamente dos "humores" transitórios ou passageiros e dos interesses particulares dos nossos governantes e elites ao longo dos últimos 180 anos, interesses estes ditados, não raro, por fatos e circunstâncias externas.

            Neste diapasão, importa destacar que o papel proeminente na condução das relações internacionais do Brasil sempre coube ao Chefe do Poder Executivo da esfera central, isto é, da União Federal. O Parlamento Nacional, tanto no Império, quanto na República, sempre desempenharam um papel secundário.

            Importa destacar, desde logo, para evitar qualquer risco de equívoco, que irei empregar a expressão "relações internacionais" não no sentido da disciplina científica usualmente conhecida por tal expressão e sim como sinônimo dos negócios exteriores cotidianos (tanto econômicos e sócio-culturais, quanto políticos) de um Estado ou da política externa nacional.

            Por fim, neste item, destaco que o método a ser utilizado neste trabalho, em que pese reconhecer as suas limitações metodológicas, é o método histórico descritivo-cronológico.


II.Prólogo conceitual: À guisa de parâmetros teóricos-metodológicos

            Estado e Nação, tanto em termos da Ciência Política e da moderna Ciência das Relações Internacionais, quanto em termos da Sociologia Política contemporânea, são categorias conceituais diferenciadas e autônomas, apesar de conexas e interdependentes. De fato, ambos os institutos são categorias analíticas fundamentais nas supramencionadas Ciências Sociais.

            Antes de seguirmos adiante, impende destacar que filio-me à corrente jurídica e sociológica que defende a visão segundo a qual o Estado, em que pese ser um ente político que tem uma autonomia jurídica em termos estritamente formais, é um fenômeno social que não existe por si mesmo e para si e, portanto, só possui valor para o cidadão e para a Sociedade enquanto garantidor dos direitos e garantias fundamentais do cidadão e um agente do desenvolvimento social eqüitativo. Como conseqüência lógica de tal visão, forçoso é de se aceitar que o Estado é detentor de uma personalidade jurídica que se desdobra em personalidade jurídica de direito público (relativa aos assim denominados aos atos de império) e personalidade de direto privado (referente aos atos de gestão).

            O Estado é a expressão político-jurídica da Nação materializada em 3 (três) níveis hierárquicos ou subsistemas de estrutura, a saber:

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            1)estrutura ou nível político do ordenamento jurídico à o arcabouço legal - constitucional e infraconstitucional - e extra-legal que delimita a separação e distribuição do poder político, social e econômico. Em outras palavras, a estrutura organizacional política-administrativa básica da Nação;

            2)estrutura formal stricto sensu do sistema jurídico à mecanismos jurídicos e meta-jurídicos efetivos de preservação das liberdades cívico-políticas fundamentais e garantias sócio-econômicas previstas no ordenamento jurídico;

            3)estrutura material do sistema jurídico à os preceitos jurídicas e meta-jurídicas (tanto aqueles preceitos positivados no ordenamento jurídico, quanto aqueles preceitos consuetudinários ou éticos) que delimitam e dão sustentação política e legal a efetiva participação popular nas decisões políticas e econômicas da Administração Pública, tanto a nível nacional, quanto a nível regional e local.

            Sob esta perspectiva, as funções estatais, neste alvorecer do Terceiro Milênio, dizem respeito não só a estrutura organizacional política stricto sensu da Administração Pública e os seus conseqüentes jurídicos-políticos (defesa, promoção do bem estar geral, etc.) como também e, sobretudo, a macro-coordenação política de todos os interesses do complexo social, isto é, da Sociedade.

            A Nação, por sua vez, é mais que o mero conjunto de pessoas dotadas de determinadas características comuns (idioma; crenças políticas, sociais e culturais mais ou menos comuns; etc.) e que habitam um determinado território. Na verdade, os laços culturais e determinados valores sócio-étnicos são os elementos definidores mais visíveis da Nação, mas não são os principais elementos de definição do que seja Nação.

            O que define a Nação, em última análise, é o grau de coesão existente entre os indivíduos integrantes da Nação, coesão esta que deriva da percepção que esses indivíduos tem de si enquanto componentes de um grupo étnico de pessoas relativamente homogêneo no tocante a determinados valores claramente discerníveis, não só para os membros do grupo, como também em relação a outros indivíduos de distintos grupos étnicos.

            Outra categoria essencial no âmbito do Direito, das Relações Internacionais e da Ciência Política é a Soberania.

            A Soberania pode ser definida a partir de um duplo aspecto ou, como querem os juristas mais tradicionais e/ou os especialistas em Relações Internacionais da escola clássica, a partir de dois requisitos:

            1)político a autonomia política quanto à tomada das decisões de governo. Em outras palavras, o exercício autônomo e exclusivo do poder político em um dado território livre de ingerências de outros Estados;

            2)jurídico stricto sensu a independência política, administrativa e sócio-econômica estritamente formal do Estado frente aos demais Estados existentes.

            Sob o ponto de vista da Ciência do Direito e conforme as sábias palavras do mestre Miguel Reale, a soberania "... é senão o poder originário de declarar, em última instância, a positividade do Direito". (2)

            Outrossim, em termos estritamente históricos, pode ocorrer que um Estado detenha Soberania plena no aspecto jurídico, mas seja politicamente dependente de um outro Estado quanto ao aspecto político. In casu, os Protetorados são exemplos clássicos da situação descrita.

            Feitos os esclarecimentos supra, importa ressaltar que, à luz da História, as Relações Internacionais contemporâneas são caracterizadas, em essência, pela atuação preponderante dos Estados. De fato, ainda que, no decorrer do século XX, tenham surgido outros agentes ou atores no cenário internacional (em especial os organismos estatais e para-estatais e as empresas privadas multinacionais), ainda é o Estado o principal agente do Sistema Internacional.

            É um fato inconteste que os Estados que são membros do sistema internacional atuam conforme os seus interesses.

            Nestes termos, um aspecto importante que merece ser destacado, ainda que a vôo de pássaro, é acerca das alianças de Estados, sejam alianças formais, isto é, aquelas alianças materializadas através de tratados e/ou convenções, sejam alianças informais, isto é, alianças não formalizadas mediante tratados e/ou convenções internacionais.

            De uma perspectiva da História Internacional, das Relações Internacionais e da Ciência Política contemporâneas, as alianças e demais modalidades de coalizões internacionais são criadas e mantidas em função dos interesses racionais das partes integrantes da coalizão em cada determinada conjuntura histórica. Desta maneira, os padrões gerais de continuidade e mudança das alianças internacionais dependem mais dos interesses dos Estados e menos da dinâmica de continuidades e mudanças ambientais estruturais ao longo do tempo (continuidades e mudanças econômicas, sociais, culturais, etc.).


III.Panorama histórico geral

            III.1-Breve sinopse histórica

            A História do Brasil pós-1822, tradicionalmente, se divide em Período Imperial ou simplesmente Império (1822-1889) e Época Republicana, de 1889 aos nossos dias. Apesar das inegáveis restrições analíticas e metodológicas inequívocas, esta é a periodização que adotaremos aqui.

            Ainda que não comungue com a interpretação histórica marxista (tanto na sua vertente clássica, quanto nas suas correntes teórico-doutrinárias mais heterodoxas), reconheço que a nossa Independência foi feita em função dos interesses das elites agrárias existentes no início do século XIX, interesses esses que se estavam em sintonia com os interesses mercantis e financeiros da Inglaterra.

            Por outro lado, e na esteira do magistério do historiador e cientista político Ezekiel Stanley Ramirez, importa destacar que "a monarquia brasileira no século XIX não era senão uma forma retardada da velha monarquia européia, com raízes na longínqua Idade Média." (3)

            O Primeiro Reinado (1822-1831) representou o período de consolidação política e jurídico-institucional do Estado Brasileiro nascente.

            Já o Período Regencial (1831-1840) se caracterizou por ser um período de transição política e sócio-econômica, no decorrer da qual as elites da época procuraram se articular, tanto em termos regionais e locais, como em termos nacionais. Na verdade, a abdicação de D. Pedro I em 1831, em decorrência de uma séria crise política e social, forçou as elites brasileiras da época a buscar uma recomposição política e sócio-econômica mediante transações e concessões mútuas.

            O Segundo Reinado (1840-1889) marcou o apogeu e o ocaso do regime imperial, tanto a nível político, quanto a nível social e econômico.

            Em termos sociais e econômicos, o Brasil Imperial foi um país essencialmente agrário alicerçado na mão-de-obra escrava de origem africana. O grau de urbanização foi ínfimo em todo o período imperial e as tentativas de industrialização, além de esporádicas, não tiveram resultados expressivos. Entendo que a Abolição da Escravidão em 1888, além de contribuir para a derrocada política do regime monárquico no ano seguinte, foi a maior alteração social e jurídico-institucional da época imperial.

            A Proclamação da República em 15.11.1889 representou uma mera mudança de regime político e, nesta medida, não significou uma alteração radical nas estruturas sociais e econômicas do Brasil.

            A República Velha (1889-1930) poucas alterações trouxe no panorama social e econômico do país. Tentativas tímidas de industrialização foram feitas, em especial na Região Sudeste do Brasil (sobretudo nos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo), região que era, e ainda é nos dias atuais, o pólo dinâmico da Economia e da Sociedade Brasileira.

            Durante a República Velha, "a política externa continuou a ser ... como o fora durante o Império, o domínio da elite, incontestado pela opinião pública. Não nos surpreende verificar que. Até a queda da Monarquia em 1889, a maioria dos Ministros do Exterior e um número considerável de diplomatas provinham das províncias produtoras de açúcar do Nordeste, área que dominou a política imperial. Durante a Primeira República, quando o poder político se transferiu para os Estados cafeicultores do Centro-Sul, a maioria dos Ministros do Exterior e diplomatas passou a vir dessa área." (4)

            A Revolução de 1930 foi um divisor de águas na Política, na Economia, na História e nas Relações Externas do Brasil. A partir deste fato histórico o Brasil ingressou numa nova etapa quanto às relações sociais, econômicas e políticas.

            Com a subida de Getúlio D. Vargas ao poder inicia-se um processo de industrialização abrangente, processo este que irá se consolidar e se diversificar ao longo das décadas de 1950 e 1960 do século XX. Esta industrialização foi feita com base em subsídios estatais e maciços investimentos externos, estes últimos notadamente a partir da segunda metade dos anos 60.

            Com o final da 2ª. Guerra Mundial em 1945, bem como o acirramento da Guerra Fria em meados da década de 1940 e início da década de 1950, as relações com os EUA entraram numa nova era, tanto em termos políticos e militares, quanto em termos econômicos. Investimentos norte-americanos aumentaram continuamente, ao ponto de, no final da década de 1950, os EUA ocuparem o primeiro lugar no ranking dos países investidores no Brasil. Os vínculos políticos e militares também se estreitam, em especial a partir da década de 1950.

            Em 1964 o Presidente J. Goulart é deposto e inaugura-se o assim denominado ciclo militar que irá perdurar até 1985, quando assume a Presidência o atual Senador José Sarney.

            Durante o período militar (1964-1985) a preeminência política, econômica e militar norte-americana foi absoluta em termos das relações internacionais brasileiras. As nossas elites, sobretudo a elite industrial localizada na Região Sudeste, vincularam-se explicitamente ao projeto político de combate ao comunismo internacional e de desenvolvimento industrial acelerado, projeto esse que guardava estreita correlação ideológica com os ideais políticos e sócio-econômicos da Escola Superior de Guerra (ESG), instituição militar brasileira criada no imediato pós-Segunda Guerra Mundial por influência direta dos EUA e que teve como referencial o War College norte-americano, instituição vinculada ao Departamento de Defesa dos EUA.

            O fim do ciclo militar em 1985 não apresentou nenhuma ruptura profunda do modelo de política externa brasileira.

            Por outro lado, a redemocratização política do Brasil se consolidou ao longo da década de 1990, ainda que precariamente, e apesar da séria crise econômica e financeira que ainda aflige o nosso país nos dias de hoje.

            III.2-Algumas considerações sociológicas e históricas acerca do Estado Brasileiro

            Quando se estuda com mais profundidade a História do Brasil Independente, o primeiro aspecto que salta os olhos é o processo de articulação e acomodação política e social dos diversos segmentos das elites governantes brasileiras ou, como querem alguns historiadores e cientistas políticos, a capacidade de reação e transação, especialmente em face das demandas sócio-econômicas e políticas dos segmentos populares nos momentos mais violentos de nossa História pós-1822. Ressalte-se, por oportuno, que a visão historiográfica semi-oficial do brasileiro cordial, cantada e decantada em verso e prosa, é um mito sem qualquer fundamento sociológico e histórico contundente, na medida em que a nossa História pós-1822 está repleta de revoltas sangrentas, distúrbios populares cruentos e outros episódios semelhantes.

            Um outro aspecto do Estado Brasileiro que merece destaque é o "gerenciamento patrimonialista" do Estado por parte dos nossos governantes, tanto a nível nacional, quanto a nível regional e local. A condução da nossa política externa não escapou, e ainda não escapa, a tal "gerenciamento patrimonialista" do Estado.

            De fato, conforme a feliz e sábia lição do emérito Raymundo Faoro, as nossas elites governantes, no trato da coisa pública, fazem-na a partir de um enfoque privado, ou seja, não há uma distinção nítida, clara, do que seja o interesse público stricto sensu e o interesse particular da elite governante de plantão.

            Nestes termos, uma análise histórica, ainda que superficial, das nossas Constituições, a começar da Constituição Imperial de 1824, revela claramente que todas as nossas Cartas Políticas, sem exceção, trazem bem poucas normas sobre a condução das relações externas do Brasil, e mesmo aquelas escassas normas constitucionais que tratam das relações externas revelam, sobretudo, a primazia conferida ao Poder Executivo Federal, leia-se, Chefe do Poder Executivo (Imperador ou Presidente da República) na formulação e implementação dos princípios básicos da nossa política externa sem maiores consultas ao Poder Legislativo Nacional.

            Finalizo este tópico destacando que, apesar da Constituição de 1988 - a assim denominada Constituição Cidadã - ter trazido novações interessantes e importantes, sobretudo quanto às garantias e direitos constitucionais dos cidadãos, tanto a nível individual, quanto a nível coletivo, tais inovações não quebram, em absoluto, o monopólio das nossas elites no tocante à condução, em termos práticos, das relações externas do nosso país.

Sobre o autor
Ricardo Luiz Alves

licenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (CIESA), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Ricardo Luiz. As relações exteriores do Estado brasileiro:: um enfoque histórico e jus-sociológico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1033, 30 abr. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8322. Acesso em: 23 dez. 2024.

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