Por considerar que o princípio da insignificância não pode ser aplicado na hipótese de crime que causa prejuízo aos cofres públicos, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o prosseguimento de ação penal que apura estelionato qualificado supostamente cometido por um médico de hospital vinculado à Universidade do Rio Grande do Sul. Segundo a acusação, ele teria registrado seu ponto e se retirado do local sem cumprir a carga horária.
A denúncia, apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), afirma que o delito teria sido praticado pelo médico em conjunto com outros profissionais de saúde do hospital, entre 2014 e 2015.
No pedido de habeas corpus, a defesa do médico alegou que a acusação do MPF – apesar de mencionar o período no qual o crime teria ocorrido –, não apontou objetivamente em que momento haveria a obtenção de vantagem indevida nem descreveu concretamente qual seria o prejuízo causado ao erário.
Ainda segundo a defesa, o próprio hospital, em processo administrativo disciplinar, concluiu não ter havido danos aos cofres públicos, já que o médico teria cumprido a jornada de trabalho em horário diferente daquele registrado no ponto, o que resultaria em ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal, em razão do princípio da fragmentariedade do direito penal.
Em seu voto, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator, também destacou que a jurisprudência do STJ não tem admitido a incidência do princípio da insignificância – inspirado na fragmentariedade do direito penal – no caso de prejuízo aos cofres públicos, por entender que há maior reprovabilidade da conduta criminosa.
"Incabível o pedido de trancamento da ação penal sob o fundamento de inexistência de prejuízo expressivo para a vítima, porquanto, em se tratando de hospital universitário, os pagamentos aos médicos são provenientes de verbas federais", concluiu o ministro ao determinar o prosseguimento da ação.
A decisão se deu no julgamento do HC 548869.
O artigo 171 do Código Penal tipifica o crime de estelionato:
“Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento: Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis.”
Para que o estelionato se configure é mister: a) o emprego pelo agente de artifício ou ardil ou qualquer outro meio fraudulento; b) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; c) obtenção de vantagem patrimonial ilícita pelo agente; d) prejuízo do enganado ou terceira pessoa.
Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido (Súmula n. 17/STJ) (AgRg no REsp 1566224/ES, Rel. Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, Julgado em 06/04/2017, DJE 17/04/2017).
Quando houver estelionato em que a vítima seja o ente público aplica-se o artigo 171, § 3º, do Código Penal.
A devolução à Administração da vantagem percebida ilicitamente, antes do recebimento da denúncia, não extingue a punibilidade do crime de estelionato previdenciário, podendo, eventualmente, caracterizar arrependimento posterior, previsto no art. 16. do CP (EDcl no AgRg no REsp 1540140/RS, Rel. Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, Julgado em 22/11/2016, DJE 05/12/2016).
Diante disso discute-se aqui a aplicação do princípio da insignificância a esse crime de estelionato.
Em tema de aplicação do princípio da insignificância no direito penal, sedimentou-se a orientação jurisprudencial no sentido de que a incidência do princípio da insignificância pressupõe a concomitância de quatro vetores: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Como observou Guilherme de Souza Nucci (Manual de Direito Penal. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora RT, 2006, p.209), tem-se que “O princípio penal da insignificância permite afastar a tipicidade material de condutas que provocam ínfima lesão ao bem jurídico tutelado, fundado na premissa de que “o direito penal, diante de seu caráter subsidiário, funcionando como ultimaratio, no sistema punitivo, não se deve ocupar de bagatelas”.
Tem-se ainda:
O princípio da insignificância é inaplicável ao crime de estelionato quando cometido contra a administração pública, uma vez que a conduta ofende o patrimônio público, a moral administrativa e a fé pública, possuindo elevado grau de reprovabilidade
(RHC 056754/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Julgado em 03/05/2016, DJE 12/05/2016).
Anoto, outrossim:
'PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS.ESTELIONATO MAJORADO.TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE ELEMENTAR DO TIPO. INOCORRÊNCIA. CONFISSÃO DA RECORRENTE. DILAÇÃO PROBATÓRIA INVIÁVEL NA VIA ELEITA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INVIABILIDADE.RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. I - A jurisprudência do excelso Supremo Tribunal Federal, bem como desta eg. Corte, há muito já se firmaram no sentido de que o trancamento da ação penal por meio do habeas corpus é medida excepcional, que somente deve ser adotada quando houver inequívoca comprovação da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito. (Precedentes).II - Não se verifica, da apreciação dos elementos contidos no recurso, a atipicidade da conduta pela ausência da elementar "obtenção de vantagem ilícita", uma vez que, fosse de fato devido o salário-maternidade, como alega a recorrente, não seriam necessários documentos falsos para instruir o pedido de concessão do benefício junto à autarquia previdenciária. III - A denúncia descreve que, tanto no procedimento administrativo do INSS, quanto no inquérito policial, a recorrente confessou que os documentos foram elaborados com o intuito exclusivo de obter, irregularmente, o benefício do salário-maternidade, condição que evidencia a necessidade da manutenção da ação penal, a fim de que se produzam provas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.IV - Não há se falar em incidência do princípio da insignificância na hipótese em que a recorrente, em tese, mediante uso de documento ideologicamente falso, obteve dos cofres públicos o benefício do salário-maternidade, conduta que ofende o patrimônio público, a fé pública e a moral administrativa. (Precedentes). Recurso ordinário desprovido.'
(RHC 55.701/BA, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe 27/05/2015)
Em sendo assim, tem-se que no que concerne ao prejuízo causado pela fraude, no estelionato cometido contra os cofres públicos, não se aplica o princípio da insignificância.