Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

PARA ONDE CAMINHA O MULTILATERALISMO NAS AMÉRICAS?

Agenda 02/07/2020 às 19:53

As atuações superpostas das organizações multilaterais locais,as inconsistências nos marcos legais de integração regional e as incongruências ideológicas ameaçam o outrora promissor processo de integração das Américas.

                Primeiramente, deve-se destacar que o multilateralismo regional contemporâneo desenvolve-se no marco das Nações Unidas. O Tratado Interamericano de Assistência Recíproca formalizou em 1947 um sistema de segurança hemisférico e em 1948 a Carta de Bogotá outorgou uma nova institucionalidade à ideia pan-americana na OEA. A centralidade das preocupações políticas e de segurança ficou demonstrada entre 1948 e 1959: os órgãos políticos foram convocados sete vezes em casos de conflitos interestatais, golpes de Estado ou ameaças entre países membros. Os direitos humanos e a democracia aparecem em etapas posteriores da OEA. Ainda que a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem tenha precedido a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o sistema interamericano estabeleceu a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apenas em 1959. A criação de uma Corte Interamericana de Direitos Humanos demoraria outra década. A democracia representativa mencionada na Carta permaneceu no plano retórico até os anos 1990. Mesmo que o âmbito econômico tenha sido o de maior interesse para os latino-americanos na criação de um organismo regional no pós-guerra, a cooperação econômica dos Estados Unidos limitou-se ao fomento do investimento privado e a limitados créditos públicos. A ideia de um banco interamericano só foi aceita pelos Estados Unidos na segunda metade dos anos 50.

            Outro ponto importante, é o fato de que no contexto do pós-11 de setembro de 2001, emergiram importantes diferenças e rupturas na evolução do multilateralismo regional. As  mudanças da política externa norte-americana, especialmente a luta antiterrorismo e a guerra do Iraque, assim como as mudanças políticas na ALC, levaram à formação de grupos com posições não apenas diferentes, mas até hostis a Washington. Se em setembro de 2001 a ALC havia dado respaldo aos Estados Unidos pelos atentados terroristas, durante a guerra do Iraque a posição da maioria dos países não coincidia mais com a dos Estados Unidos e os dois membros não permanentes do Conselho de Segurança – Chile e México – não apoiaram a autorização para o uso da força solicitado em março de 2003. A OEA não conseguiu recuperar a primazia nos assuntos de segurança: no âmbito centro-americano continuou exercendo certo papel e tem desempenhado um rol de coadjuvante no processo de desmobilização na Colômbia, mas, em 2012, os quatro países da Alba que ainda pertenciam ao TIAR – Bolívia, Equador, Nicarágua e Venezuela – anunciaram sua retirada desse tratado. Por outro lado, novas iniciativas na América do Sul têm-se ocupado desses assuntos.

            Ademais, no Mercosul, o órgão formal superior é o seu Conselho, composto pelos ministros das Relações Exteriores e da Fazenda ou Economia, e do qual dependem um Grupo Mercado Comum e a Secretaria Administrativa. A criação de um alto representante geral do Mercosul no começo de 2011 visou reforçar “o papel gerador de propostas de políticas regionais e de gestão comunitária”. A renúncia de seu titular, um ano depois de sua nomeação, evidenciou a dificuldade dos governos para assumir uma perspectiva comunitária, particularmente em matérias orçamentárias. Ainda que o Sica, a Caricom e a CAN tenham estruturas administrativas relativamente complexas, suas Secretarias não têm caráter supranacional, cumprindo funções de apoio a decisões dos respectivos órgãos políticos.        

            Outro ponto importante é o que destaca que a evolução do regionalismo tem gerado sobreposição entre os organismos e as entidades regionais. Existem reuniões ministeriais ou de nível semelhante em várias áreas temáticas que são abordadas paralelamente por oito organismos ou entidades. O que dá origem a dezenas de processos ministeriais ou de alto nível simultâneos. Essa situação é muito ineficiente como instrumento de coordenação de políticas e torna quase impossível seu acompanhamento pela maioria dos Estados que participam, por carecer de recursos humanos e orçamentários necessários para atender tantos processos. Se considerarmos apenas os quatro mecanismos mais abrangentes territorialmente (OEA/Cúpulas das Américas, Celac, Unasul e Cúpula Ibero-Americana), veremos que sete processos ministeriais são realizados pelas quatro referências, dois processos por três referências entre as quatro e que sete o são por duas entidades. Outro tanto se dá se compararmos a Unasul com o Mercosul, em que se repetem dez processos ministeriais e de funcionários de alto nível. A prática de processos sobrepostos, superpostos ou paralelos de interação regional conduziu, no melhor dos casos, a intensas trocas de informação sobre políticas mais do que a sua coordenação e harmonização. Tal situação nos leva a refletir sobre para onde se move o centro de gravidade desses processos. Haveria uma vontade de integração ou trata-se apenas de manter mecanismos de associação política para atenuar e manejar as diferenças nos âmbitos regionais e sub-regionais.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

            É importante também a ideia trabalhada no texto, de que o regionalismo latino-americano tornou-se presidencializado: os chefes de Estado, a partir dos anos 1990, têm desempenhado papel central tanto em termos de impulso como de continuidade do processo, em contraste com as formas de multilateralismo clássico. O aumento exponencial dos encontros presidenciais formais facilitou as vinculações pessoais entre os mandatários, que hoje muitas vezes usam essas ocasiões e a comunicação telefônica direta para tratar de temas bilaterais e multilaterais. De algum modo, a frequência da interação presidencial contribuiu para gerar espaços de consulta no mais alto nível e de fortalecimento de identidades sub-regionais e latino-americanas de maneira muito mais forte que a que se tinha até o fim da Guerra Fria. Esses canais de comunicação fluidos têm aumentado a importância da diplomacia presidencial, produzindo maior flexibilidade, mas também criando novas complexidades na implementação e sequênciade muitas iniciativas.

           Por fim, a título de conclusão, pode-se dizer que o novo milênio abre-se com o fracasso do projeto hemisférico de livre-comércio, e os caminhos da integração voltam a separar-se entre os que perseveram no comércio aberto  e os que buscam formas reguladas – alguns conservando as formas de mercado ampliado parcialmente aberto e outros substituindo-as por acordos interestatais. Paralelamente, desenvolvem-se as formas de cooperação política sobre a base de diferentes eixos. Como resultado, predominam hoje formas de integração econômica débeis e geograficamente mais difusas e um regionalismo que põe acento na identidade política, nos temas de segurança e na integração física, com baixo componente de institucionalização. A participação nos projetos de integração ou cooperação não é excludente, de modo que os países têm múltiplos pertencimentos, criando-se tensões e diminuindo sua eficácia. A retórica substitui o conteúdo, havendo uma brecha entre as declarações acordadas e as ações implementadas. Por traz de cada projeto percebe-se a política externa dos países que têm ou buscam projeção no mundo: originalmente os Estados Unidos na OEA e, no novo milênio, o Brasil no Mercosul e na Unasul e a Venezuela na Alba.

Sobre a autora
Tatiana Lopes

Odontóloga pela Universidade Federal Fluminense. Pós graduada em Políticas Sociais e Gestão Púbica pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Acadêmica do curso de bacharelado em Direito na Universidade Federal Fluminense. Mestranda em Sociologia e Direito PPGSD-UFF

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!