Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

O jurista e o canto das sereias

Agenda 06/07/2020 às 17:20

O texto trata sobre a produção do Direito no momento atual

                                    O JURISTA E O CANTO DAS SEREIAS

             O livro Odisseia - escrito em forma de poema por Homero -, é um clássico da literatura mundial, perene. No capítulo XII desse épico de fôlego o autor trata da passagem de Ulisses por uma ilha repleta de sereias. Com metáforas, busca demonstrar que há armadilhas e encantos em cada esquina da vida. Também expõe as precauções utilizadas pelo herói para não se deixar seduzir pelas miragens e cantos, a fim de ultrapassar a “barreira” de forma tranquila. Eis um fragmento da obra-prima: Agora, escuta: o que te vou dizer um deus mesmo te fará lembrar. Primeiro, encontrarás as duas Sereias; elas fascinam todos os homens que se aproximam. Se alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das Sereias, adeus regresso! não tornará a ver a esposa e os filhos inocentes sentados alegres a seu lado, porque, com seu canto melodioso, elas o fascinam, sentadas na campina, em meio a montões de ossos de corpos em decomposição, cobertos de peles amarfanhadas. Toda em diante; amassa cera doce de mel e veda os ouvidos de teus tripulantes para que mais ninguém as ouça[1].

             De fato, o poder de sedução dos seres míticos - com seus cantos capazes de enfeitiçar os homens - era tanto que embarcações foram jogadas contra as pedras encarpadas da ilha. Os tripulantes perderam a razão e morreram, diante da melodia mortal e envolvente das sereias.

            Em tempos pós-modernos, com os formidáveis recursos tecnológicos ao alcance da mão, o jurista também pode ceder ao canto das sereias e ser seduzido; pode ser atraído e cair em grandes armadilhas do mundo virtual. Afinal, são infinitas as ferramentas de pesquisa na internet; livros inteiros são acessados por estudantes de Direito e profissionais das mais variadas áreas; há livre acesso (e compartilhamento) das recentes decisões dos tribunais.

           Os códigos e leis esparsas estão nas telas e não mais se vende grande quantidade de livros jurídicos (raras as livrarias especializadas); dicionários são “desprezíveis”, porquanto de somenos importância. Proliferam apresentações de PowerPoint nas salas de aulas, talvez por ser mais fácil a transmissão de conteúdos quiçá difíceis; os alunos, especialmente dos primeiros períodos, ficam, não raro, sem base em disciplinas propedêuticas relevantes (introdução ao estudo do direito e hermenêutica jurídica, por exemplo); não se descuide do linguajar e palavras eminentemente técnicas, que soam estranhas aos acadêmicos.

           A falha na formação acadêmica e humanista de muitos juristas começa quiçá nos bancos de faculdade, onde é mais importante a leitura de textos legais, deixando-se de lado a compreensão efetiva daquilo que se leu; impera a reprodução do conhecimento.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

            Por outro lado, em época de dogmatismo jurídico exacerbado, de apego à filosofia da consciência, da doutrina dos precedentes (Lenio Streck), de uso corrente de decisões estandardizadas de juízos monocráticos e de tribunais, cabe ao jurista, de fato comprometido com seu tempo, se posicionar; não se deve seduzir por cantos estranhos e envolventes.

            Tal como fez Ulisses, o jurista pós-moderno, em tempos de lives e ferramentas técnicas, bem poderia colocar cera doce de mel nos ouvidos, a fim de não ouvir e ler certas idiossincrasias jurídicas que andam por aí; também interessante se amarrar ao mastro do bom senso e do equilíbrio jurídico a fim de, mesmo ouvindo o canto mortal das sereias, rumar para porto seguro, que se traduz no saber, no conhecimento científico.

            Afinal, todo jurista quer acabar na sabedoria científica que é o máximo de liberdade ao real, às coisas, aos fatos, dentro de si. Um subir que é um lento descer em duas profundidades: a do mergulho na realidade e a do domínio de si[2]. Cabe repensar a respeito do atual momento de produção do Direito.


[1] São Paulo: Editora Abril, 2010, p. 192. Clássicos Abril Coleções, vol. 35.

[2] PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1972, p. 8.

Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!