Resumo: Temos um pensamento enraizado que ainda mantém o negro em uma condição muito inferior ao que de fato ele ocupa. Surgem então, preconceitos e manifestações negativas de que o negro é incapaz ou mesmo não merecedor de ocupar seu lugar no nicho social, econômico e onde mais quer que ele possa desejar. Este artigo discute ações afirmativas como mecanismos que conduzem à inclusão social. Aborda-se, pois, as origens destas políticas específicas, como forma de legitimação de uma agenda governamental focada em combater os efeitos da discriminação racial que segregou a população negra. Portanto, este estudo pretende apontar os temas das providências reparatórias, e, conhecendo sua trajetória, destacar seu crescimento após a constituição de 1988. Conclui-se, afinal que o desenvolvimento destas discriminações positivas vem contribuindo positivamente para a construção de novas visões, ressaltando as diferenças de cada um e apresentando a qualidades das diversidades como uma forma inclusiva e fundamental para que a redução das desigualdades. Esta se concretizará, de fato, através de uma distribuição socioeconômica mais equânime e uma educação que viabilize o protagonismo da população negra dentro de seu contexto histórico-cultural.
Palavras-chave: Ações Afirmativas; Racismo; Protagonismo do Negro; Inclusão Social; Discriminação Positiva.
Introdução
É indissociável falar da servidão e da opressão racial sem reportar-se ao Império Português e seu entrelace na construção da história do Brasil escravocrata, erguido através do sangue e suor do povo africano. Sempre esteve muito nítida a profunda desigualdade racial entre negros e brancos em praticamente todas os âmbitos da sociedade brasileira. E isto é o rebento de mais de quinhentos anos de opressão e/ou da discriminação contra a população negra.
Diga-se, de passagem, que a discriminação contra o negro não é exclusividade da elite dominantes, mas da sociedade brasileira como um todo, que é temerosa em admitir o preconceito, pois reconhecer o racismo, significa imputar-se na fração de culpa dentro desta marginalização. No conjunto, todos os brancos se beneficiaram, de alguma maneira, na exploração da escravatura e da coisificação das gentes de cor. Assim, o preconceito rácico e seus impactos nefastos, construíram dois exemplares de cidadania neste territórios: a negra e a branca, que em seu grosso, resulta também em ricos e pobres.
Quando buscamos esse reconhecimento por meio de informes e pesquisas, basta que sejam analisados os índices de desenvolvimento humano (IDH ) categorizando por raça, e, evidentemente, vamos constatar que essa divergência é vigente e copiosamente grotesca. Em um sentido, temos um Brasil branco que não é discriminado racialmente, e do outro lado da via, desequilibra o Brasil negro, discriminado e segregado, que acumula desvantagens em praticamente todas as esferas do poder político e socioeconômico, notadamente, na educação e no mercado de trabalho. Tudo isto, como sequela de um racismo histórico.
Joaquim Barbosa (2001), ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e único negro que já compôs a Suprema Corte, relatou que foi a emanação das dificuldades culturais das sociedades ocidentais, que levaram à carência da criação de combates à discriminação com políticas públicas visando equilibrar a balança social entre brancos e negros, e que advém, historicamente, da adoção do clássico modelo do Estado Liberal de Direito, cuja alternativa ideológica colocou o direito de liberdade em escalão preponderante sobre os direitos de igualdade e de fraternidade.
Segundo o Ministro, por este motivo, desenvolveu-se a ideia de uma paridade formal, uma concepção de que se uma norma positiva prescreve a igualdade de todos perante a lei e isto basta para se fazer justiça. É como se a mera letra de uma lei tivesse o condão de engendrar a uniformidade de direitos sem que fosse necessário o fomento de ações governamentais.
Neste diapasão, Barbosa (2001), admoesta que este modelo de igualdade formal, não reflexiona as singularidades existentes entre os indivíduos, pois se constrói sobre a máxima de que a lei é prescrita para todos e deve então, incorrer nos casos concretos, de modo neutro. Contudo, este sistema acentua as disparidades já existentes, pelo fato de que não se respeitam as diferenças e não se aplicam de forma a considerá-las (GOMES, 2001, p. 86).
Ao tratarmos a questão de ações afirmativas, estamos caminhando justamente para a necessidade de políticas públicas voltadas para a valorização do negro e de medidas capazes de colocá-lo dentro deste patamar de igualdade com os demais membros da sociedade. Objetiva-se, sanar as diferenças sofridas durante séculos de discriminação, e que ainda hoje permanecem, direta e indiretamente, na estigmatização, porque nesta segregação tem-se o maior bloqueio para que o Brasil seja uma nação, efetivamente, democrática.
O intuito deste artigo é apresentar ao leitor os caminhos inclusivos através das políticas públicas de discriminações positivas e destacar a sua importância como medidas específicas voltadas à correção das disparidade sociais, diante da insuficiência das ações universais em produzir resultados que integre as populações negras nos espaços, até então, restritos à elite dominante, notadamente branca.
Ações afirmativas, pois, são providências políticas locais e temporárias, de inclusão social em mercê de pessoas pertencentes a grupos historicamente marginalizados pela exclusão socioeconômica e cultural. Trata-se de medidas que visam promover a igualdade substancial e que têm como alvo combater discriminações étnico-raciais, religiosas, de gênero, de credo etc., fomentando a participação de minorias no processo político.
No momento que são criadas ações afirmativas, dá-se aos negros o papel de protagonistas dos seus respectivos desenvolvimentos, como pessoas que são, de direito e fato, a fim de terem os mesmos regalos da sociedade civil como um todo, bem como aplaudir seus espaços de poder e atuações na construção de uma coletividade mais justa, onde as pessoas conquistam seus ambientes indiferentes à raça, etnia , condição social, credo, gênero ou orientação sexual, que possuem. Ao contrário, a expectativa é de que todos encontrem terreno de desenvolverem suas habilidades e de promoverem o próprio crescimento, sem que para isso, um ser humano desumanize o seu igual, escravizando a liberdade dos outros.
Além disso, este artigo pretende, por meio de uma explanação geral, apresentar o exórdio das ações afirmativas no Brasil e no mundo, quando a ideia de redefinição da políticas públicas, voltadas para uma especificidade, com o propósito de malear as diferenças causou inúmeros impactos sociais e históricos em diversas nações.
Não obstante o Brasil seja um país discriminador não declarado, que ao mesmo tempo em que amofina o dito racista, inda pratica ações preconceituosas que nos remetem a lembrar da paradigmática conclusão de Florestan Fernandes (2007) sobre os tratos raciais no país, quando epiloga que dentre nós, surgiu uma espécie de preconceito reativo , que se resume ao “preconceito contra o preconceito ou o preconceito de ter preconceito” (FERNANDES, 2007, p. 21).
Então, por meio da história das ações afirmativas será possível conhecer um pouco mais da busca pelo combate às desigualdades de direitos. Que os negros são discriminados é fato. Mas existe uma grave resistência entre os brasileiros em reconhecer a discriminação que se pratica contra esse grupo racial e que as disparidades socioeconômicas são os reflexo de uma segregação.
Desigualdades raciais
A experiência de bicontinentalismo étnico e cultural começada há séculos em Portugal tomou nova dimensão no Brasil: três raças e três culturas se fundem em condições que, de modo geral, são socialmente democráticos (FREYRE, 1957, p. 66).
Embora Freyre (1957) identificasse o preconceito e a desigualdade social no país desde os primórdios da colonização, sua conhecida obra, “Casa Grande e Senzala”, foi estigmatizada com o fardo de proliferar o Mito de Democracia Racial , amenizando os efeitos da escravização. A respeito, Nascimento (2016, n.p.) acusa que “a farsa de Freyre” reveste o racismo numa espécie de malsinado sofisma “gilbertofreyreanos”, para quem as mestiçagens “etnoculturais” não significa aos olhos dos brasileiros, “nenhum repúdio à predominância dos valores culturais europeus na formação brasileira”.
Fernandes (2013) também, confere que apesar de Freyre pincelar o “cadinho das raças” como uma singularidade positiva na harmonia racial brasileira e modelo de sociabilidade para o mundo, o que a obra “Casa Grande e Senzala” impactou, constitui-se num reforço velado de uma segregação sutil e dissimulada que precisa ser extinta para que se crie um novo padrão de relação racial realmente igualitário e democrático entre negros e brancos.
Das literaturas apontadas, extrai-se que o padrão tradicional brasileiro de relação social, taxada, hipocritamente, de harmoniosa, encoberta a condição do negro como aquele que, democraticamente, teve as mesmas oportunidades que os demais, mas não se esforçou necessariamente. No entanto, o que sabemos é que o preconceito se manteve, e, atualmente, é concebido pelo discurso de que no Brasil não existe preconceito, mas existe é “o preconceito contra aquele que é preconceituoso”.
Destarte, embora se insistam que no Brasil não exista barreiras raciais, mas sociais e econômicas (ignorando que os obstáculos raciais são espécies de obstáculos sociais), os censos não escondem que a segregação socioeconômico atinge de maneira execrável a população de cor, dando ensejo a prática racista das mais pervertidas porque constrange ao negro ter vergonha de ser discriminado e denunciar o segregacionismo, na luta pelo seu respeito.
A incapacidade do brasileiro de se reconhecer racista e de admitir esse viés contraditório em relação ao preconceito, onde a maioria, embora admitindo que no Brasil exista preconceito, ninguém se admite preconceituoso, é um dos maiores obstáculos para uma alteração deste quadro de marginalização; que se incorpora numa desleal e debochada “harmonia entre as raças”.
Esta dissimulação de relações raciais harmoniosas esconde um descompromisso das classes dominantes com a reparação das mazelas do racismo e, na verdade, não passa de mais uma camada do preconceito que paira neste país, onde, para a maioria, se o negro é pobre, é pobre porque é preguiçoso e porque não se esforça. E se não somos racistas, não se justifica ações políticas de discriminações inversas, quando não se argumentam que a escravidão faz parte de uma história a ser superada pelo mero transcorrer do tempo.
Mas não é dando “tempo ao tempo”, que as inferências da escravidão se dissolvem. Ao contrário, a condição do negro se entravou como previu Fernandes (2013), ao salientar que a questão racial possui caráter estruturado e o seu enfrentamento requer correção dos arrimos de distribuição de rendas, de prestígio e poder sob pena de uma transição indefinida numa abolição incompleta.
As Ações afirmativas ao redor do mundo
As ações afirmativas têm-se aplicadas em diversos países como resposta às pressões de movimentos sociais em prol da melhoria e da elevação da qualidade de vida e de condições de mobilidade social de grupos historicamente desprivilegiados (Cahn 2002, Robinson 2001). Pautadas sempre nos procedimentos da discriminação positiva, esse tipo de política pública entra em cena quando a legislação de orientação universalista, se revela impotente para resolver problemas derivados da persistência de padrões sociais de exclusão, e de discriminação ao longo do tempo (JACCOUD, 2009, p. 56).
As origens das Ações Afirmativas, remontam ao Movimento Europeu Cooperativista (Souza, 2017), que se propugnava por uma mudança das formas de reproduções sociais e materiais no seio da recém-nascida sociedade capitalista. A partir de então, uma série de experimentos foram realizados em diversos lugares orientados pelas ideias cooperativistas do socialismo utópico ao socialismo científico.
Naquele contexto, as condições de trabalho precárias da época, obrigavam os trabalhadores a adotarem estratégias de reivindicação de melhoria salarial e de condições de trabalho, além de tentarem substituir os patrões no mercado, por meio das cooperativas.
Para combater o tratamento diferenciado dado aos trabalhadores sindicalizados, em 1935, temos a primeira notícia das Ações Afirmativas, consoante John Skrentny , a ideia básica vem do centenário conceito inglês da “equidade ”, ou da administração da justiça de acordo com o que era justo numa situação particular, por oposição a aplicação estrita de normas legais, o que pode ter consequências cruéis (SKRENTNY, 1996, p.6).
De acordo com Souza (2007), podemos apontar como início de ações afirmativas de caráter preventivo e reparatório aos comportamentos de viés discriminatórios, através do instituto conhecido na Europa como discriminação positiva, ou ação positiva, com foco de evitar a discriminação dos trabalhadores sindicalizados. Este foi o estopim para que mais ações fossem movidas contra a discriminação, e a partir de então, observamos as primeiras iniciativas contra a discriminação arraigada nas estruturas sociais, convencionada como Racismo Institucional .
Para Jesus (2008) as expressões “ação afirmativa” ou “discriminação positiva” designam experiências que não se restringiram aos EUA: países da Europa Ocidental, Índia, Malásia, África do Sul, Argentina, Cuba, Nigéria, Austrália e Canadá são algumas das nações que as adotaram, planejando, elaborando e desenvolvendo orientações nesse sentido.
Assumindo formas variadas, seu público-alvo varia conforme situações conjunturais, abrangendo minorias étnicas, mulheres e outros grupos minoritários. São implementados programas governamentais e, ou privados. A esfera judicial também é passível de operar neste âmbito, seja na forma de leis e decisões jurídicas, seja na atuação de agências de fomento e regulamentação (JESUS, 2008, p. 10).
Em dimensões mundiais, as ações de políticas específicas tiveram suas primeiras manifestações nos Estados Unidos em 1935, para impedir que nas relações de trabalho, os empregadores exercessem qualquer forma de repressão contra os membros de sindicatos ou de seus líderes, haja vista que os direitos dos empregados e suas condições de trabalho eram as piores possíveis.
De acordo com Vilas Boas (2003):
Em 1935, surgiu pela primeira vez o termo "ação afirmativa" - affirmative action - nos Estados Unidos no Ato Nacional de Relações de Trabalho, onde foi determinada a proibição ao empregador de exercer qualquer forma de repressão contra um membro de sindicato ou de seus líderes. O objetivo era fazer cessar a discriminação utilizando-se da ação afirmativa para recolocar as suas vítimas naquela posição que teriam alcançado se não houvessem sido discriminadas (VILAS BOAS, 2003, p. 34).
De acordo com Maciel (2009), essas ações causaram um grande impacto social e ideológico nos Estados Unidos, em uma sociedade norte-americana profundamente marcada pelas desigualdades sociais, culturais e econômicas entre brancos e negros, naquele território, com profuso atrito de ambos os polos e com grave embate na ordem pública em todas as esferas, sociais, econômicas, políticas e religiosas. A autora aponta três grandes ações responsáveis por surtir todo esse impacto:
A escravidão esteve presente na história dos Estados Unidos no período colonial e também após a independência da Inglaterra em 1776. A própria Constituição norte-americana acolhia o instituto da escravidão, tendo sido este extinto com a Guerra de Secessão, no século XIX, e por meio de Emendas à Constituição, especificamente as de número XIII, XIV e XV, todas estas voltadas à proteção dos negros (RODRIGUES, 2005, p. 11).
Devido a essa grande discrepância igualitária entre brancos e negros, em meados de 1960 surge à primeira ação afirmativa racial, buscando a igualdade de direitos civis entre estes as raças, através da Ordem Executiva de nº 10.965, proclamada pelo então presidente John Kennedy, sendo pela primeira vez utilizado o termo ação afirmativa no direito norte-americano.
Porém, essa ação se consolidou apenas em 1965, com o Presidente Lyndon Johnson , quando através da Ordem Executiva nº11. 246. de 1965, para a celebração de contratos com a administração pública só seria possível se a empresa, a ser contratada, atuasse em prol da diversidade e da integração de minorias historicamente discriminadas e excluídas socialmente (RODRIGUES, 2005, p.9). É famosa mundialmente a frase em que este presidente defende as políticas afirmativas:
Você não pega uma pessoa que durante anos foi impedida por estar presa e a liberta, trazendo-a para o começo da linha de uma corrida e então diz: você está livre para competir com todos os outros e, ainda acredita que você foi completamente justo. Isto não é o bastante para abrir as portas da oportunidade. Todos os nossos cidadãos têm que ter capacidades para atravessar aquelas portas. Este é o próximo e o mais profundo estágio da batalha pelos direitos civis. Nós não procuramos somente liberdade, mas oportunidades. Nós não procuramos somente por equidade legal, mas por capacidade humana, não somente igualdade como uma teoria e um direito, mas igualdade como um fato e igualdade como um resultado (GOMES, 2001, p.57).
Outrossim, também nos Estados Unidos, surgiram ações afirmativas relacionadas à lei de cotas para a entrada de negros nas universidades como uma forma de combater a discriminação naquele pais que, por tradição, o público das universidades era unicamente branco, não se admitindo alunos de cor, nas universidades.
As ações afirmativas no Brasil
No Brasil, o olhar para a políticas específicas aconteceu, inicialmente, de forma deturpada. A título de exemplo, a “Lei do Boi” (Lei n.º 5.465/1968) que vigorou até 1985, garantia preferencialmente 50% das vagas de escolas agrícolas e veterinárias, dos ensinos médio e superior dos institutos públicos, àqueles que moravam na zona rural. Para tanto, bastava que morassem em terras rurais, fossem ou não, proprietário das glebas.
No entanto, o governo não buscou a divulgação ampla de quem seriam os beneficiários das vagas reservadas através da legislação que previa vagas das escolas agrícolas e veterinárias, de modo que as camada da população carente pudessem acessar aquele benefício, e a medida foi duramente criticada porque, na prática, beneficiava mesmo, os filhos dos fazendeiros.
Destarte, as políticas públicas adotadas pelos governos noutros tempos, a começar pela própria escravidão, era voltadas unicamente para a elite branca, aumentando o enorme reservatório de favorecimentos dos grupos privilegiados em detrimento das parcelas carentes compostas em sua maioria pela população negra, e num discurso de igualdade de direitos, que foi construído dentro de exclusões. De acordo com Fernandes (2008):
Ninguém atentou para o fato de que o teste verdadeiro de uma filosofia racial democrática repousaria no modo de lidar com os problemas suscitados pela destituição do escravo, pela desagregação das formas de trabalho livre vinculadas ao regime servil e, principalmente, pela assistência sistemática a ser dispensada à população de cor em geral (FERNANDES, 2008, p.311).
Apenas na década de 90, é que um presidente da República admitiu, publicamente, que o Brasil é uma nação racista. Fernando Henrique Cardoso (FHC; 1997), disse que a discriminação aqui, parece se consolidar como alguma coisa que se repete e que se reproduz, mas, como adverte o ex-presidente, o país não pode afundar na hipocrisia negando que é racista, e minimizar o quanto o legado das relações escravistas gerou entre nós, o racismo presente nas relações cotidianas.
Nesta ocasião, o então presidente FHC, alertou que os brasileiros insistem numa postura equivocada, com a repetição de discriminações. Asseverou mais que o racismo velado reproduz-se na inaceitabilidade da existência do preconceito, e em não reconhecermos o quanto preconceituosos somos. E que é necessário mecanismos de contra-ataque e processos que possam levar a uma transformação, no sentido de uma relação mais democrática, entre as raças, entre os grupos sociais e entre as classes. (CARDOSO, 1997, p.14).
A declaração do ex-presidente foi um fato político marcante porque, além de impactar na discursão intelectual do tema, e fragilizar o discutível Mito da Democracia Racial com seu racismo camuflado; exortou que os brasileiros tomassem uma atitude proativa no combate da discriminação, e mais, ressaltou a importância da adoção de mecanismos políticos que impulsionassem a transformação da sociedade brasileira, de modo que o país seja inserido numa relação racialmente mais democrática.
Mas, sem dúvidas, um dos mais importantes marcos na elaboração de políticas antirracistas, foi a “Carta de Durban” , quando o governo finalmente reconheceu, no plano internacional, a prática do racismo como forte oponente ao direito de igualdade no Brasil, e comprometeu-se em adotar medidas de discriminação positiva voltadas à erradicação das desigualdades entranhadas em atributos de raça, de etnia e de cor.
Nesta influência, no governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi instituído o Estatuto da Igualdade Racial através da Lei n.º 12.288 de 20 de julho de 2010, com a missão pioneira de não só combater a discriminação racial num campo proibitório e numa perspectiva unicamente penal, mas também com impulso à promoção de ações concretas, consoante prescreve o artigo primeiro da norma estatutária:
Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
O Estatuto Racial, reconhecendo que o Estado não pode permanecer apartidário diante das desigualdades sociais, foi efusivo ao enfatizar que a igualdade a ser garantida à população negra, é a equivalência de espaços dentro das comunidades, com “igualdade de oportunidades”. Abriu-se caminho para a adoção de uma diretriz político-jurídica focada na inclusão das vítimas da discriminação racial, e no fortalecimento da identidade nacional brasileira.
Surgiu então, grandes avanços nas discursões acerca das discriminações vivenciadas pela população negra, como a ampliação dos campos intelectivos e articulações de providências antirracistas, com inovações normativas de destaque, como Lei n.º 10.639/2003 que incluiu a aprendizagem da história e da cultura afro-brasileira na grade curricular do ensino médio e fundamental, para o fim de ampliar reflexões acerca da formação dos povos brasileiros, com reconhecença das diferenças e da importância de que todos se vejam representados sob um enfoque positivo.
A lei que obriga o ensino da cultura e história afro-brasileira assevera-se num movimento de superação da autonegação identitária dos povos negros, porque numa nação multirracial, a aprendizagem da história do Brasil é inaugurada com a chegada dos portugueses em solo brasileiro, desprezando que aqui, já haviam os indígenas e camuflando os colonizadores como os agentes de destaque na construção da identidade brasileira que até hoje, menospreza a participação dos africanos.
Numa cultura particularmente rica na sua multietnicidade, porém empobrecida na medida em os negros não sentem o pertencimento de suas ancestralidades nas história oficiais, ficando invisíveis nas suas representatividades e até de sua atuação contra a escravização, quando não embranquecidos , para se ajustarem ao neocolonialismo , a Lei de inclusão da cultura e história afro-brasileira na grade curricular, tem o propósito de agregação das raças, através de uma mudança da cultura discriminatória de segregacionismo.
A inclusão que se busca, é que a disponibilização de acessos abarque a efetiva participação do negro, sobretudo, como protagonista de sua própria inclusão. E quando se fala no ensino público para estudar história dos brancos, isso fica nítido, porque apenas se insere o negro em um determinado espaço, mas na verdade não o agrega, ele está ali, mas não faz parte.
Justamente focados nestas demandas de se verem respeitados em suas representatividades, é que a sociedade negra brasileira tem se movimentado, para que se vejam de fato, na história de sua nação, não apenas como parte massacrada dela; mas agora reconhecidos em seus merecidos papéis de precursores da construção de toda uma nação, no caso do Brasil, de todo uma identidade concebida como agente, mundialmente ligado a cultura peculiar de suas negritudes .
Para Nagan (2002), esses elementos nos informam que, finalmente, começa a existir um ambiente propício para a discussão e superação das desigualdades no Brasil, mediante reivindicações de inclusão dentro de uma perspectiva de direito ao desenvolvimento e a reparação.
E foi neste ambiente por resultados concretos no campo da oportunidade de direitos, que a Lei Estadual nº. 4.151/2003 do Rio de Janeiro foi pioneira ao estabelecer cotas para negros, pardos e alunos de escolas públicas nas universidades públicas daquele Estado. Nesta corrida por ações afirmativas concretas, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (FERES; DAFLON, 2015, p. 97), foram instituições que se destacaram pelo pioneirismo no combate das discriminações, com a adoção das cotas para negros nas universidades públicas.
Finalmente, no governo Dilma Rousseff, foi sancionada a chamada Lei de Cotas, Lei n.º 12.711/2012 que expandiu esse sistema de reservas sociais e raciais a todas as instituições de ensino público federal. Diga-se que de todas as políticas inclusivas implantadas até então, nenhuma havia suscitado mais polêmica em todas os setores, do que as reservas de vagas para negros da universidades e escolas públicas.
Mas as polêmicas trouxeram ao debate das mídias, a questões racial que ganhou com a visibilidade, mais fôlego e forte aderência no campo intelectual. E com os debates, houve fortalecimento das demandas sociais que se foram incorporadas ao mundo jurídico. Mais leis foram adicionadas aos depósitos normativos direcionados a eliminar as desigualdades existentes com relação a raça.
Acrescentando mais visibilidade as demandas das causas negras, o artigo 1° da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014, abre agora, cotas reservadas em concursos públicos dentro da administração federal.
Art. 1o Ficam reservadas aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, na forma desta Lei.
§ 1º A reserva de vagas será aplicada sempre que o número de vagas oferecidas no concurso público for igual ou superior a 3 (três).
§ 2º Na hipótese de quantitativo fracionado para o número de vagas reservadas a candidatos negros, esse será aumentado para o primeiro número inteiro subsequente, em caso de fração igual ou maior que 0,5 (cinco décimos), ou diminuído para número inteiro imediatamente inferior, em caso de fração menor que 0,5 (cinco décimos).
§ 3º A reserva de vagas a candidatos negros constará expressamente dos editais dos concursos públicos, que deverão especificar o total de vagas correspondentes à reserva para cada cargo ou emprego público oferecido.
Dados do IBGE (2015) compravam que em 2004, 16,7% dos alunos pretos ou pardos conseguiram ingressar em uma faculdade. Este percentual praticamente triplicou em 2015, atingindo um total de 45,5%, numa clara demonstração de que as cotas produzem efeitos positivos na diminuição das desigualdades.
Santos (2015) faz uma reflexão acerca do sistema de cotas, ressaltando que os debates sobre este assunto estão mais presentes entre os chamados universalistas e comunitaristas, os quais priorizam a justificativa sobre os direitos individuais, também estão presentes entre cientistas políticos, os quais acreditam que “os direitos básicos de grupos constituídos que precisam ser considerados” (SANTOS, 2015, p. 2).
Inaugurou-se, com excessivo atraso, a Era Moderna das Ações Afirmativas no Brasil, que sob a égide da Constituição Federal de 1998, que no seu artigo terceiro , declara, expressamente, dentre seus objetivos fundamentais, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais. Cabendo ao governo brasileiro, por força de imposição constitucional, a promoção de medidas que alcancem o bem coletivo como um todo, sem preconceitos de raça, ou qualquer outra discriminação, com a finalidade de construir uma nação justa e solidária, sem a qual, não se alcança o desenvolvimento nacional.
Em vista disso, as ações afirmativas, por sua natureza de políticas específicas voltadas para grupos desprestigiados, encontram reflexão na atmosfera constitucional, com a exigência da Carta Política, de que o Estado adote medidas concretas, tendentes a reduzir as injustiças sociais, promovendo o bem de todos sem preconceito de credo, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras aspectos de discriminações.
E neste caminho, foram crescentes as ações de políticas públicas destinadas a promover a cultura negra e reafirmar as ações discriminatórias positivas, com o intuito de haver o respeito à negritude, com grande demanda na afirmação da cultura afro, e da contribuição desta para o país, buscando a compreensão de que, independente da raça de cada indivíduo, as pessoas são iguais, com os mesmos direitos, e logo, a honras são devidas as todas as raças na construção da identidade nacional.
Podemos mensurar inúmeras situações onde essas ações foram pertinentes para o intuito de promover essa discriminação positiva. Como por exemplo, a confissão oficial do Governo da existência de graves assimetrias no acesso a direitos baseada em raça por ocasião da Conferência de Durban, assim como a edição do Decreto n.° 4.228/2002, da Portaria 1.156/2001, os quais estabelecem um Programa Nacional de Ações Afirmativas no âmbito da Administração Pública Federal, além de oferecer incentivos para o ingresso no Supremo Tribunal Federal e no Instituto Rio Branco (SOUZA, 2007, p. 5).
As ações afirmativas articulam-se para romper com o preconceito e dar voz e vez para classes castigadas pelo preconceito, a fim de diminuir o atraso no desenvolvimento dessas pessoas por questões externas à suas vontades. Sem a pretensão, e possibilidade de elencar todas as possíveis categorias de Ações Afirmativas, com efeito, existem algumas que se sobressaem como modalidades de operacionalização em suas destinações:
1. A implantação de sistemas de cotas em processos de seleção para vagas no mercado de trabalho e no sistema de educação, notadamente no ensino superior;
2. A implantação de sistemas de bônus e preferências em licitações e concorrências para prestações de serviços, venda e aquisição de produtos em geral;
3. A oferta de isenções, incentivos, benefícios fiscais a empreendedores levando-se em consideração a dimensão afirmativa do tratamento dos pleiteantes;
4. A adoção de métodos de estabelecimento de preferências negativas e positivas, exemplificativamente, critério de preferência na execução de dívidas ativas fiscais (primeiro caso, negativo), estabelecimento de preferências creditícias em operações comerciais e/ou falimentares (segundo caso, positivo);
5. Programas de inclusão de estagiários, trainees e profissionais no quadro profissional de instituições (universidades, empresas, ONG’s). (BORGES, 2016, p. 1).
A ideia de que a ação afirmativa ameaça a identidade nacional é devido a suposta tradição nacional de mestiçagem, como um valor que integra as pessoas e harmoniza as diferenças, produzindo uma sociedade sem conflito racial, discriminação ou racismo (Zahur, 2007; Benjamin, 2007; Pinto de Góes, 2007; Vainfas, 2007). Essa ideologia disseminou-se no senso comum do brasileiro, como se tornou um discurso quase que oficial, sobre a identidade nacional do país, em oposição às interpretações anteriores que explicavam o atraso do país como resultado da miscigenação (SKIDMORE, 1976, p.91 apud. MOSMA, 2017, p. 14).
A análise das principais ações afirmativas instituídas no Brasil, em prol da igualdade real da população afrodescendente, demonstra que apesar do avanço que elas trouxeram, ainda não foi possível superar o preconceito social latente e, por isso, existe um longo caminho a ser percorrido até o alcance da equidade.
É comum ouvir brasileiros afirmando que não têm preconceitos com relação a esses grupos, mas criticam, contundentemente, as cotas para afrodescendentes nas universidades. Além disso, o uso ainda comum de expressões como: “negro de alma branca”, “negro por fora” e “nem parece negro”, prova o quanto de preconceito ainda existe no Brasil (FERNANDES, 2007, p.123).
Santos (2015) cita o exemplo do que acontece na UERJ. Destaca que, por ser uma das instituições mais procuradas por estudantes com alto poder aquisitivo e que, em sua maioria, vêm de escolas particulares, acaba gerando grandes conflitos entre estes alunos e aqueles que ingressam na universidade através dos sistemas de cotas
Observa-se que mesmo diante de um direito previamente estabelecido em lei, os alunos que ingressam através de sistema de cotas em universidades acabam sofrendo algum tipo de preconceito. Santos (2015) considera que esta realidade demonstra o quanto ainda estamos presos ao passado em termos de rivalidade entre classes sociais e raças.
Na verdade, o sistema de cotas é uma forma de o governo compensar os erros cometidos contra estas etnias no passado. Hoje em dia, graças a estas leis, os alunos negros e de famílias pobres estão ingressando em universidades, em cursos como medicina, engenharia , direito e outros, o que antes desta lei era algo, praticamente, impossível devido a situação de desigualdade e de desvantagens da classe menos favorecida.
Carvalho (2016) destaca que entre os anos de 2010 e 2012 foram intentadas diversas demandas judiciais contra atos administrativos da Universidade Federal do Maranhão, com ações que vão contra os princípios e diretrizes estabelecidos a partir da implementação da política de cotas raciais na instituição.
No entrecruzamento do campo jurídico e acadêmico, pudemos constatar as causas e efeitos da judicialização das cotas sociorraciais da UFMA. As causas, apresentadas ao longo do texto, podem ser divididas em dois blocos: as explícitas e as implícitas. Expressamente, as demandas judiciais foram intentadas por duas razões: a ausência de critérios claros, nos editais, sobre como a CVM (Comissão de Validação de Matrículas) analisa os pedidos de ingresso na instituição, na modalidade escola pública/negro; e a inexistência de justificativa da banca de verificação nos pareceres de inaptidão (CARVALHO, 2016, p. 33).
Nesta acepção, é preciso levar em consideração a importância de definir melhor os critérios, por parte da Comissão de Validação das Matrículas, no sentido de analisar de forma eficiente, os pedidos de ingresso nas instituições universitárias na modalidade escola pública/negro, conforme declara Carvalho (CARVALHO, 2005, p. 21).
Guarnieri e Silva (2017) fazem uma análise de uma década de produção científica sobre cotas universitárias. Destacam que “a UERJ foi precursora desse processo, implementando em 2003 o primeiro Programa de Cotas brasileiro”. Citam um acontecimento importante ocorrido em 2010, que serviu como mola propulsora para discussões acerca da constitucionalidade do sistema de cotas (CARVALHO, 2005, p. 12).
Novamente, Guarnieri e Silva (2017) salientam que tinham os que criticavam a constitucionalização do sistema de cotas, os quais tinham como justificativa, “a inexistência biológica das raças; caráter ilegítimo das ações de “reparação” aos anos causados pela escravidão em tempo presente sob o risco de acirrar o racismo no Brasil”
Haviam aqueles que eram favoráveis nesta discussão, eram aqueles que acreditavam que as “ações afirmativas atuariam como alternativa para a busca de igualdade através da promoção de condições equânimes entre brancos e negros” (GUANIERI, SILVA, 2017, p. 185).
O Juiz federal, William Douglas, conhecido pela crítica em torno do sistema de cotas explica os motivos que o levaram a mudar de posição, passando a defender, ativamente, a implementação das políticas de ações afirmativas que beneficia o ingresso dos negros nas universidades:
Os pobres sempre foram tratados à margem. O caso é urgente: vamos enfrentar o problema no ensino fundamental, médio, cotas, universidade, distribuição de renda, tributação mais justa e assim por diante. Não podemos adiar nada, nem aguardar nem um pouco.
Fui vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários “dias na cadeia”. Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as cotas fazem todo sentido. Se você é contra as cotas para negros, eu o respeito. Mas peço uma reflexão nessa semana: na escola, no bairro, no restaurante, nos lugares que frequenta, repare quantos negros existem ao seu lado, em condições de igualdade (não vale porteiro, motorista, servente ou coisa parecida) (DOUGLAS, 2013, p.3).
Diante disto, observa-se que é preciso reconhecer que as desigualdades advindas de um contexto histórico, como da própria situação dos negros no Brasil, devem ser combatidas através da intervenção do poder judiciário nas políticas públicas brasileiras, bem como em todas as esferas do poder federativo.
Necessita-se da criação de um ambiente favorável às ações afirmativas nas quais se privilegiem o uso destas ações positivas, potencializando o comprometimento coletivo como uma forma de disseminar a ideia de que, cada vez mais pessoas adotem medidas que contribuam para esse avanço quebrando o comportamento demagógico de quem defende que o país não é preconceituoso; e discrimina não somente o negro, mas uma grande variável de ditos diferentes (GUANIERI, SILVA, 2017).
Para Guarnieri e Silva (2017), deve-se observar e trabalhar para que a construção paralela de políticas de maior alcance seja uma prática emulada continuamente, dentro de uma perspetiva da ampliação do acesso a direitos orientada pela consciência dos objetivos, embora necessários e possíveis, limitados por definição das ações positivas.
Assim, é fundamental que seja crescente o desenvolvimento de ações positivas nas políticas públicas, para que as pessoas, ao conviverem com as diversidade, compreendam que a discriminação é o maior entrave para a construção de uma sociedade justa. Portanto, é importante a adesão dos movimentos de luta neste pleito, como o caminho mais sensato para se criar meios de inclusão e combate ao preconceito.