Introdução: O débito conjugal é um tema que pode ser tido como um tabu nos dias atuais, de caráter complexo e polêmico, visto que com as transformações ocorridas na sociedade a mulher vem alcançando uma autonomia no seu dia-a-dia, porém esta autonomia ainda não é aceita de uma forma geral.
O presente resumo procurou apontar em quais dispositivos estão embasados os direitos e deveres da mulher esposa/companheira em nosso ordenamento jurídico, bem como as transformações ocorridas. Apesar de homens e mulheres possuírem os mesmos direitos e deveres no casamento e na união estável juridicamente, esta não é a realidade no âmbito doméstico, já que é possível visualizar vestígios do patriarcado nas relações conjugais.
Justifica-se o presente estudo pela forma como a mulher ainda é obrigada a ser submissa aos desejos de seus parceiros e pelo número alarmante de casos de violência doméstica existente. A metodologia constante desse trabalho teve por base pesquisa bibliográfica, utilizando-se de doutrinas, periódicos, artigos e legislação relativos ao tema, bem como informações disponíveis no meio eletrônico.
O débito conjugal encontra suas referências no direito canônico. Observa-se nas Cartas de São Paulo as orientações de que marido e mulher deveriam guardar-se um para o outro e que cada um poderia dispor do corpo do outro quando fosse este o seu desejo. Veja-se:
“O marido cumpra o dever conjugal para com a esposa, e cada mulher faça o mesmo em relação ao seu marido. A mulher não dispõe de seu corpo: mas é o marido que dispõe. E da mesma forma o marido não dispõe de seu corpo: mas é a mulher que dispõe.” (I Coríntios 7,3-4).
A expressão débito conjugal perdurou por séculos na sociedade e atualmente não é reconhecido pelo Código Civil em vigor. O dever de coabitação está indiretamente inserido no artigo 1.566, inciso II. O legislador não prevê a coabitação como um dever ou como um direito dos cônjuges, discriminando somente o dever da “vida em comum no domicílio conjugal”.
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:
I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal;
III - mútua assistência;
IV - sustento, guarda e educação dos filhos;
V - respeito e consideração mútuos.
No mesmo sentido a Lei. 9.278/1996, que mesmo sendo anterior ao Código Civil de 2002, prezou pela igualdade entre homens e mulheres na união estável:
Art. 2° São direitos e deveres iguais dos conviventes:
I - respeito e consideração mútuos;
II - assistência moral e material recíproca;
III - guarda, sustento e educação dos filhos comuns
Observa-se que para os conviventes da união estável o dever de fidelidade e o de vida em comum no mesmo domicílio conjugal não está expresso. Isto se dá pelo fato de que, como já mencionado, não é requisito para a configuração da união estável que os conviventes residam na mesma casa, podendo, portanto, ser esta convivência de forma habitual ou eventual.
Ao interpretar o dever de vida em comum no domicílio conjugal no contexto histórico do código civil de 1916, Carlos Roberto Gonçalves atribui à mulher o dever de pagar o débito conjugal, veja-se:
“O cumprimento desse dever pode variar, conforme as circunstâncias. Assim, admite-se até a residência em locais separados, como é comum hodiernamente. Nele se inclui a obrigação de manter relações sexuais, sendo exigível o pagamento do debitum conjugale. Já se reconheceu que a recusa reiterada da mulher em manter relações sexuais com o marido caracteriza injúria grave, sendo causa de separação litigiosa. A vida em comum desenvolve-se no local do domicílio conjugal. A fixação deste competia ao marido.” (GONÇALVES, 1999, p. 47)
Alguns autores como visto acima atribuíam somente a mulher o dever de coabitação, como também era admitida a situação de inferioridade da mulher perante o marido, sendo esta posta como submissa aos desejos e decisões do marido dentro do ambiente domiciliar. Tal pretensão encontrava guarida na lei 4.121 de 1977, que alterou a redação de alguns artigos do Código Civil.
A referida lei atribuiu ao marido à função de chefiar a sociedade conjugal, assim pode-se entender que o matrimônio não era visto como uma relação afetiva, mas também como um negócio, em que uma das partes, no caso o marido, teria a responsabilidade de gerenciar tudo aquilo que incorporasse a sociedade conjugal, era o chamado poder patriarcal. À mulher só era dada a função de auxiliar do marido, tendo o dever de apenas colaborar com as tarefas que eram incumbidas ao cônjuge. Veja-se:
Artigo 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.
Mais adiante, citada lei limitou o exercício do pátrio poder ao homem, porém não lhe retirou todo o ônus de gerenciar a vida familiar. Observa-se que somente em 1977 com a edição desta lei é que a mulher entrou como “assistente” na vida domiciliar o que se faz crer que anteriormente a ela não era incumbido nenhum direito.
Lafayette estabeleceu o pátrio poder como “o todo que resulta do conjunto dos diversos direitos que a Lei concede ao pai sobre a pessoa e bens do filho e da família”. (PEREIRA, 2004, p. 234).
O artigo 380 estabelecia o pátrio poder ao marido: “Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade”.
Parte da literatura jurídica já admitia que o dever de coabitação, como também o dever da vida em comum no domicílio conjugal pertencia ao homem e a mulher, porém o débito conjugal não estava ausente da configuração de tais institutos.
Maria Helena Diniz reconhece o dever de coabitação como “direito-dever do marido e de sua mulher de realizarem entre si o ato sexual”, sendo que “A coabitação é o estado de pessoas de sexo diferente que vivem juntas na mesma casa, convivendo sexualmente” e afirma que o ato sexual deve obrigatoriamente estar presente na relação conjugal:.
“no dever de coabitação, dois aspectos fundamentais: o imperativo de viverem juntos os consortes e o de prestarem, mutuamente, o débito conjugal (...). Um cônjuge tem o direito sobre o corpo do outro e vice-versa, daí os correspondentes deveres de ambos, de cederem seu corpo ao normal atendimento dessas relações íntimas, não podendo, portanto, inexistir o exercício sexual, sob pena de restar inatendida essa necessidade fisiológica primária, comprometendo seriamente a estabilidade da família. Sendo recíproco o dever de coabitação, ambos são devedores dessa prestação, podendo um exigir do outro seu cumprimento”. (DINIZ, 2002, p. 126-127).
Veja-se que a doutrina atribuiu aos cônjuges o dever de manter relações sexuais, e não somente a um deles. Porém, sabe-se que a mulher é quem está sempre em evidência quando o assunto se trata de violência sexual, tanto no âmbito familiar como fora dele, presumindo-se que a exigência do ato sexual parte na maioria das vezes dos maridos. Carlos Roberto Gonçalves (2013) menciona o fato de que a recusa da mulher a praticar relação sexual pode ser caracterizada como injúria grave, sendo sua recusa somente aceitável se houver justa causa, o que não é aceito atualmente pela doutrina majoritária ou pelo ordenamento jurídico.
Ao atribuir ao homem e a mulher o patamar de igualdade, não mais se justifica interpretar a norma civil da mesma maneira com que era entendida no código civil de 1916. Para cessar tais entendimentos retrógados e patriarcais, a Constituição Federal de 1988 trouxe explicitamente em seu texto o Principio da Igualdade Conjugal. Desta forma, qualquer interpretação que fosse dada aos outros dispositivos estaria equivocada e não corresponderiam as novas concepções da sociedade brasileira. O artigo 226, § 5º reconhece que: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”
Significativas mudanças ocorreram no Brasil após a promulgação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica que foi concluída em Belém do Pará no ano de 1994. Nesse momento reconheceu-se a importância de proteger a mulher não somente no ambiente público, mas também no âmbito privado, já que por possuir poderes sobre a mulher o marido realizava verdadeiras atrocidades com sua esposa.
A Convenção de Belém do Pará comprovou essa afirmativa ao expor o seguinte texto a cerca da violência doméstica: “Fundamenta-se em relações interpessoais de desigualdade e de poder entre mulheres e homens ligados por vínculos consangüíneos, de afetividade, de afinidade ou de amizade. O agressor se vale da condição privilegiada de uma relação de casamento, convívio, confiança, amizade, namoro, intimidade, privacidade que tenha ou tenha tido com a vítima.” (AGENDE, 2004)
Maria Berenice Dias cita o fato de que a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica reconheceu a violência sexual como violência contra a mulher, e completa tal afirmação dizendo que:
“houve certa resistência da doutrina e da jurisprudência em admitir a possibilidade da ocorrência de violência sexual nos vínculos familiares. A tendência sempre foi identificar o exercício da sexualidade como um dos deveres do casamento, a legitimar a insistência do homem, como se estivesse ele a exercer um direito. Aliás, a horrível expressão débito conjugal parece chancelar tal proceder, como se a mulher tivesse o dever de submeter-se ao desejo sexual do par.” ( DIAS, 2010, p. 67).
A sociedade embasada em ensinamentos religiosos e antiquados resiste as mudanças e consequentemente acaba se abstendo dos problemas que afetam seus membros. Atualmente, ainda se vê com frequência as insensatas atitudes de violência contra a mulher. O débito conjugal não deve, e não pode ser entendido como uma dívida de um cônjuge para com o outro, o débito conjugal deve ser visualizado como o dever de existir entre os cônjuges e conviventes o respeito recíproco, o zelo, as atitudes que resultam em proteção e bem-estar familiar e não ser visto como uma desculpa para que sejam realizadas condutas violentas e constrangedoras contra a mulher.
Por todo o exposto, pode se dizer que essa questão já deveria ter sido encerrada, pois não é cabível dentro de uma sociedade humanizada e democrática. Fernando Capez mostra a realidade jurídica da mulher atualmente, que tem direito a inviolabilidade de seu corpo, seja no âmbito familiar ou não:
“Tal posicionamento, na atualidade, não mais prospera. A mulher tem direito à inviolabilidade de seu corpo, de forma que jamais poderão ser empregados meios ilícitos, como a violência ou grave ameaça, para constrangê-la à prática de qualquer ato sexual. Embora a relação sexual constitua dever recíproco entre os cônjuges, os meios empregados para sua obtenção são juridicamente inadmissíveis e moralmente reprováveis.”(CAPEZ, 2012)
Maria Berenice Dias cita dados importantes que fazem parte da realidade mundial quando o assunto é violência doméstica:
“Segundo a Organização Mundial de Saúde- OMS, 30% das mulheres foram forçadas nas primeiras experiências sexuais; 52% são alvo de assédio sexual; e 69% já foram agredidas ou violadas. Conforme relatório da Anistia Internacional, mais de um bilhão de mulheres no mundo (uma em casa três), foram espancadas, forçadas a manterem relações sexuais ou sofreram outro tipo de abuso, quase sempre cometido por amigo ou parente. Isso tudo, sem contar o número de homicídios praticados pelo marido ou companheiro sob a alegação de legítima defesa da honra. E mais: segundo a Sociedade Mundial de Vitimologia (IVW) ligada ao governo da Holanda e à ONU, o Brasil é o país que mais sofre com a violência doméstica: 23% das mulheres brasileiras estão sujeitas a este tipo de violência.” (DIAS, 2010, p. 20)
Diante desses dados assustadores é que se enxerga a necessidade de proteger o ambiente familiar e a mulher dentro da relação conjugal. Os casos de violência sexual cometidos por maridos e companheiros podem ser muito maiores do que os números relatados se forem levado em conta à falta de informação, o medo e o silêncio das vítimas. A violência sexual doméstica acontece de modo silêncio e na maior parte dos casos não aparecem perante a sociedade e as autoridades judiciárias.
Considerações finais: Os tempos atuais não admitem uma figura feminina submissa às vontades do marido, nem calada e silenciada pelas regras machistas imposta no cotidiano. A mulher conquistou seu espaço na sociedade e também no ambiente familiar, o que implicou no poder de decisão sobre seu corpo, trabalho e mente.
O poder patriarcal já foi abolido dos ordenamentos legais e não deve mais ser visto por qualquer pessoa como uma forma de reger a vida familiar. Homens e mulheres receberam os mesmos direitos e deveres, e devem ser tratados de maneira igualitária.
Homens e mulheres unem-se em matrimônio por possuírem os mesmos objetivos e sentimentos afetivos, sendo repugnante dizer que o homem está de qualquer forma “fazendo um favor” a mulher, ou que de alguma forma a mulher tenha que satisfazer seu marido como forma de retribuição pela vida em comum.
Referências Bibliográficas:
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BRASIL. Lei n. 4.121 de 27 de Agosto de 1692. Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4121.htm.>
BRASIL. Lei n. 9.278 de 10 de Maio de 1996. Regula o §3° do Artigo 226 da Constituição Federal. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9278.htm>.
BRASIL. Lei n. 10.406 de 10 de Janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998.
CAPEZ. F. Curso de Direito Penal, volume 3. Parte especial: Dos crimes contra a dignidade sexual a Dos crimes contra a administração pública (arts. 213 a 359-H). 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
DIAS. M.B. Manual de Direito das famílias. 8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
_______. A lei Maria da Penha na justiça. A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
GONÇALVES. C.R. Sinopses Jurídicas. Direito de família. v. 2. São Paulo: Saraiva, 1999.
_______. Direito Civil Brasileiro. 10. ed. V. 6. São Paulo: Saraiva, 2013
PEREIRA. L.R. Direito de Família. Brasília: Fac-similar, 2004.