A CENSURA À PUBLICAÇÃO DE OBRA
Rogério Tadeu Romano
Como se lê do Metrópoles, em 20 de janeiro de 2020, em texto de Elmano Silva, mesmo antes do fim da ditadura, em 1985, a pregação hitlerista era coibida no Brasil.
É o que mostra uma lista de obras censuradas no governo militar enviada em 1976 pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) à Universidade de Brasília (UnB). Inédito, o documento inclui Mein Kampf (Minha luta), de Hitler, na “Relação de livros nacionais e estrangeiros proibidos por portaria do senhor ministro da Justiça”.
Mein Kampf é o título do livro de dois volumes de autoria de Adolf Hitler, no qual ele expressou suas ideias antissemitas, anticomunistas, antimarxistas, racialistas e nacionalistas de extrema-direita, então adotadas pelo Partido Nazista.
Hitler escreveu o livro na prisão, depois da frustrada tentativa de golpe de estado em Munique, no episódio “Putsch da cervejaria”, em 8 de novembro de 1923. Ele foi condenado a cinco anos, mas teve a pena reduzida para nove meses.
No dia 25 de abril de 2012 o jornal O Globo noticiou que a Alemanha voltaria a publicar em 2016, sete décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial e a morte de Adolf Hitler, o livro "Mein Kampf" ("Minha luta"), que contém parte das memórias e as linhas gerais do pensamento do ditador nazista. A ideia era divulgar uma edição comentada da obra, inclusive com uma versão simplificada para ser usada nas escolas. Apesar de defender ideias antissemitas, muitas das quais serviram de inspiração para o Holocausto, "Mein Kampf" não era proibido na Alemanha, como foi dito naquela reportagem.
A Constituição de 1988, democrática e cidadã, permite que seja dada à sociedade o conhecimento dessa obra, que é considerada a “bíblia da extrema-direita”.
Conforme Anna Virginia Balloussier (4 de Dezembro de 2015, 'Bíblia de Hitler' cai em domínio público, e livrarias estudam a venda) os direitos do livro, que pertenciam a Adolf Hitler, foram entregues ao Estado da Baviera, por ordem do próprio Hitler. O Estado da Baviera recusou-se a republicar e permitir republicações do livro, por isso o mesmo não se encontrava mais à venda, porém tais direitos caíram em domínio público no dia 31 de Dezembro de 2015, podendo ser editado e traduzido por outras editoras.
Sabe-se que é um livro que foi escrito em 1925 e tem passagens racistas e antissemitas.
O racismo gera a discriminação e o preconceito segregacionista. Por sua vez, o fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo é de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Trata-se de concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social.
Como disse Alan E. Steinweis(Armas e holocausto, o texto de Ben Carson, para o New York Times), a origem do nazismo se encontra no legado autoritário do Império Alemão, na incapacidade de lidar com a derrota na Primeira Guerra Mundial e o fracasso na obtenção de um compromisso político durante a República de Weimar. Quando se trata de explicar o Holocausto, os alemães questionam o lugar que o antissemitismo e a xenofobia ocupavam na sociedade e os fatores psicológicos e culturais que levaram cidadãos comuns a aceitar, ou participar de atrocidades inomináveis.
Para tanto, ficaram as ideias de Wagner: antissemitismo, culto ao legado nórdico e o mito do sangue puro. Tudo isso era uma mentira, que determinou num verdadeiro estado de loucura popular. Crimes bárbaros foram cometidos de genocídio que fizeram a Alemanha até hoje pedir desculpas à humanidade pelos males que trouxe.
A publicação dessa obra chegou a ser proibida no Brasil.
Como é notório, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro proibiu a comercialização, exposição e divulgação de Minha Luta, de Adolf Hitler, em todo o Estado, conforme decisão do juiz Alberto Salomão Junior, da 33ª Vara Criminal do Rio de Janeiro.
Data vênia, a decisão afronta ao princípio impositivo democrático exposto no artigo 1º da Constituição Federal.
Como dito no Portal da Veja, em 3 de fevereiro de 2016, “O Brasil é um país de pouco apego à liberdade de expressão. Até alguns meses atrás, era necessária uma autorização para você poder publicar uma biografia de algum personagem público”, afirma o advogado Cláudio Lins de Vasconcelos, diretor-relator da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), lembrando a mordaça às biografias derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Não se pode lutar contra o “autoritarismo da obra de Hitler” com mais autoritarismo.
Na democracia há a permanente realidade dialógica. No totalitarismo rompe-se o diálogo, aniquilam-se as liberdades. Desconhecem-se direitos.
Pensemos em barreiras legais à ação daqueles que advogam contra os princípios e as instituições democráticas. Nesse sentido, Karl Loewenstein propôs, em 1937, a controvertida doutrina da “democracia militante”, incorporada pela Lei Fundamental em 1949 e aplicada pela Corte Constitucional alemã nas décadas seguintes. Foi o caso do combate a organizações terroristas de esquerdas que atuaram na década de 1970 na Alemanha.
Por essa doutrina, é possível investigar e mesmo restringir direitos de grupos que ameaçam a democracia, como agora ocorre com os radicais na Alemanha.
Isso pode-se chamar de democracia militante.
Dir-se-ia que as democracias constitucionais já estabeleceram mecanismos voltados a conter ataques aos seus pilares fundamentais. Mas, a democracia, como forma de convivência, tem sempre a sua volta o espectro de pensamentos contra ela voltados.
Para tanto, há, como no Brasil, com sua Constituição-cidadã de 1988, a fixação de cláusulas pétreas que defendem a sua integridade contra qualquer possibilidade de alteração. Isso é um indicativo a Corte Constitucional, suprema guardiã da Carta Democrática, para a sua atuação.
Ora, não há censura prévia no Brasil.
Disse o ministro Celso de Mello:
“Uma República fundada no princípio da liberdade e estruturada sob o signo da ideia democrática não pode admitir, sob pena de ser infiel à sua própria razão de ser, que os curadores do poder subvertam valores essenciais como aquele que consagra a liberdade de manifestação do pensamento”.
Num Estado democrático de direito, cuja Constituição libertária proíbe a censura, não se pode falar em proibição de divulgação de obra, voltando-se aos tempos de um Estado Autocrático.
Uma justificativa célebre para essa primazia dada à liberdade de expressão, que engloba até mesmo discursos de ódio e preconceito, vem do constitucionalista americano Ronald Dworkin, segundo o qual permitir que as ideias circulem sem entraves é um elemento fundamental da democracia “porque o Estado deve tratar todos os cidadãos adultos como agentes morais responsáveis, sendo esse um traço essencial ou constitutivo de uma sociedade política justa”.
É preciso que a sociedade tenha conhecimentos dos malefícios trazidos à humanidade pela obra de Adolf Hitler de modo a entender que tais ideias não se amoldam a um mundo voltado à democracia, como melhor forma de convivência social, e tire sobre ela as próprias conclusões necessárias.
Não se pode, afinal, negar a história, mesmo que de triste memória.