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Enfrentamentos e respostas à violência contra a mulher em tempos de pandemia

Agenda 20/07/2020 às 18:07

A atual pandemia de Covid-19 representa uma piora específica nas condições de vida para as mulheres mais vulneráveis a sofrerem violência doméstica.

Introdução

O mundo atravessa mais uma crise e sofre alarmado pela incidência de uma nova pandemia, cujos devastadores efeitos de curto prazo são divulgados por organizações internacionais, e autoridades sanitárias e políticas dos países. Um dado causa constrangimento e repúdio nesse período em que a nova doença fragiliza a todos, e ao mesmo tempo revela a cruel e dura face de velhos problemas. A atual pandemia de Covid-19, além de impor o medo do contágio e seus efeitos sobre o corpo ou a vida, representa uma piora específica nas condições de vida para as mulheres mais vulneráveis de sofrerem violência doméstica. As condições de isolamento social, requeridas para que a população fique em casa, exacerbou a exposição das vítimas aos maus tratos decorrentes de relacionamentos conjugais abusivos, e trouxe mais dificuldades para o acesso aos meios tradicionais de denúncia e ao aparato policial e jurídico de medidas protetivas contra a violência.  

A violência contra as mulheres envolve dimensões históricas, culturais, sociais, econômicas, políticas e jurídicas. Manifesta-se de vários modos, usando recursos de desprezo, inferiorização, discriminação, crueldade, opressão, dominação e assassinato. É tema de grande importância porque envolve a defesa da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos a ela inerentes. Também é muito presente em estudos científicos de várias áreas com a finalidade de explicar as questões que abrange, e contribuir com projetos e programas de valorização das mulheres, defesa de suas vidas e seus direitos. Estudar e debater a violência contra as mulheres e as reações que provoca, é uma forma de saber como a sociedade tem interpretado e tratado esse tipo de violência, que outrora já foi invisibilizada e tolerada.

A proposta deste estudo é refletir sobre a contemporânea feição tomada pela violência doméstica contra as mulheres em decorrência da pandemia do novo coronavírus, e as medidas emergenciais propostas para enfrentá-la. Tal reflexão está condicionada às seguintes limitações: dados estatísticos ainda insuficientes, ausência de dados oficiais concretos e pequena quantidade de abordagens teóricas e analíticas sobre o problema. Não se pretende esgotar as questões contextuais do problema, nem dar conta de todas as complexidades. Mira-se nas questões mais cruciais do momento, valendo-se de dados e pré-análises por meio de revisão documental e levantamento bibliográfico simples. A pesquisa é exploratória, desenvolvida através do percurso de alertas e recomendações feitas pelas organizações internacionais, de denúncias e ações emergenciais realizadas por instituições dos poderes executivo, legislativo e judiciário do Brasil. A abordagem crítica adotada é a dos direitos humanos no âmbito das vulnerabilidades das mulheres, e como o tema está em um contexto de saúde, também aborda-se como problema de saúde pública pelo amplo conceito da saúde e de suas epistemologias.

Breves considerações sobre a violência doméstica contra a mulher como processo histórico-social

A violência doméstica contra as mulheres é considerada uma das principais formas de violação de direitos à vida, à saúde e à integridade física. Possui uma universalidade negativa, porque em todas as suas formas (psicológica, física, moral, patrimonial, sexual e de tráfico de pessoa) atinge mulheres de diferentes classes sociais, escolaridade, raça/etnia, sexualidade, origens e regiões (BARROS, 2014:134).

Após treze anos da vigência da Lei Maria da Penha e quatro da Lei do Feminicídio, marcos da vitória de pelo menos cinquenta anos de luta de combate à violência contra as mulheres, alguns aspectos sociais, culturais e jurídicos se modificaram para ampliar a defesa e os direitos das mesmas. Entretanto, a violência contra a mulher ainda apresenta altas taxas, pelos dados oficiais recentes em 2018 foram registrados 4.107 homicídios de mulheres (10,5% a menos que em 2017), sendo que 1.206 são feminicídios, ou seja, 29,4% das mulheres assassinadas foram por violência doméstica. Das vítimas de feminicídio 88,8% tiveram como algozes o companheiro ou ex-companheiro, e 65,6% foram mortas dentro da própria residência. Em termos de lesão ou trauma corporal por violência doméstica, foram 263.067 mulheres, estatística 1% maior que a de 2017 (10.172 casos a mais), quando 252.895 mulheres foram agredidas (BRASIL, 2019:108-113).

São dados que representam um grande desafio para a sociedade e para os poderes estatais, porque aproximadamente 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil (IPEA, 2019:35). Revelam a necessidade de medidas punitivas contra a violência doméstica, mas também preventivas, uma vez que os dados desafiam as explicações já conhecidas sobre as causas da violência contra as mulheres.

E nesse cenário de avanços, desafios e necessidade de ações a serem implementadas para diminuir os casos de violência contra as mulheres e de feminicídios, em 11 de março de 2020 surge um fator de agravamento: o novo coronavírus (SARS-CoV-2), agente biológico causador da doença Covid-19, que atingiu altos níveis de contágio em todo o mundo. Em 11 de março de 2020 a nova doença foi caracterizada como pandemia (OPAS, 2020:s.n.p.). Os impactos iniciais da doença, em consequência das medidas de isolamento tomadas para seu controle, indicaram tanto a necessidade de vigilância sanitária preventiva para a população, quanto de uma vigilância social e jurídica protetiva mais específica para as mulheres.

Enfrentar a pandemia da violência contra as mulheres e a pandemia da Covid-19

A violência também agride o direito à saúde, porque a saúde como direito requer condições condignas para a sua promoção, para o bem estar, a qualidade de vida e o desenvolvimento humano. Na Declaração Universal de Direitos Humanos, art. 25, §1º, o direito à saúde constitui-se em um dos direitos humanos. Outrossim, o texto constitucional, art. 196 estabelece que a saúde constitui-se em “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (BRASIL, 1988).

Por esse entendimento de convergência através dos direitos humanos, a violência afeta a saúde tanto porque causa lesões, traumas físicos, traumas emocionais e morte, quanto porque é afetada pela ausência ou deficiência de acesso aos demais direitos fundamentais que a constituem. Por isso inclui o direito à segurança, tendo em vista que é um direito que faz parte da vida condigna, além do que, a violência é um agravo à saúde, e deve ser incluída no contexto de desenvolvimento de ações que possibilitarão dar assistência às vítimas, de forma multidisciplinar e intersetorial.

Destarte, em tempos de pandemia, a violência contra as mulheres é um problema de segurança pública, de justiça e de saúde pública. É um problema social que se alarga em complexidade nesse período, em razão de as mulheres também enfrentarem um elemento condicionante e limitante, que é o isolamento social e suas consequências nas áreas sociais, econômicas, laborais, políticas e jurídicas.

Todas as populações em situação de vulnerabilidade vão experimentar o surto de Covid-19 de forma diferente. Para aproximadamente 48 milhões de mulheres e meninas, os perigos que o novo coronavírus apresenta serão ampliados, porque elas enfrentam situações de conflitos, desigualdades sociais e recursos limitados. Conter o rápido espalhamento da doença é ainda mais assustador em países e comunidades que já enfrentam crises a longo prazo, desastres naturais e outras emergências em saúde, pois com frequência têm alguns dos sistemas de saúde, de assistência e proteção social e de acesso à justiça mais fracos, o que os torna vulneráveis à doença em termos de sua capacidade de detectar e gerenciar os impactos sociais e na saúde da população. Nessa perspectiva, as pandemias são compostas pelas desigualdades e vulnerabilidades de gênero existentes, aumentando os riscos de abuso. Mulheres e meninas podem estar em maior risco de violência por parceiro íntimo e outras formas de violência doméstica, devido ao aumento das tensões domésticas (ONU/ UNFPA, 2020:6).

Desse modo, a violência contra as mulheres aparece como processo oportunista dessas condições de vulnerabilidades e de doença. Os efeitos mais cruéis repercutem sobre as dificuldades para combater e enfrentar a violência doméstica, pois que o isolamento social de prevenção à Covid-19 é obstáculo ao acesso à denúncia e medidas protetivas pelos meios existentes e disponíveis.

O alerta sobre tal processo foi dado pela Organização das Nações Unidas (ONU), como objeto de denúncia ético-política, tendo em vista a manutenção das políticas assertivas de justiça e equidade social e de emancipação das mulheres, e a tomada de providências para implantar soluções emergenciais frente às demandas não cobertas, e às situações peculiares surgidas no contexto da pandemia.

O risco de violência tende a aumentar quando famílias em contextos de violência familiar são colocadas sob tensão, auto-isolamento e quarentena. Os níveis de violência doméstica e exploração sexual aumentam quando as famílias são colocadas sob as crescentes pressões advindas de preocupações com segurança, saúde, dinheiro e condições de vida restritas e confinadas (ONU Mulheres, 2020a).

Pesquisadores já se debruçam sobre o problema em busca de explicações. Em perspectiva histórica, os estudos de Paterman et al. (2020:6-18) indicam que pandemias estão ligadas a uma infinidade de fatores de risco para aumento da violência contra mulheres e crianças. O medo e a incerteza associados às pandemias fornecem um ambiente propício para aumentar ou desencadear diversas formas de violência. Relatam que são escassos e deficitários os estudos sobre o assunto. Todavia, há investigações do surto de Ebola que atingiu a África Ocidental em 2013-2016, o surto de SARS na China em 2002-2003, e a síndrome respiratória do Oriente Médio que emergiu na Arábia Saudita em 2012, que relatam um grande número de estupro, abuso sexual e violência contra mulheres e meninas. Mas esses casos não tiveram os danos colaterais documentados. Outros levantamentos também apontam que os impactos econômicos do surto de Ebola 2013-2016 na África Ocidental colocaram mulheres e crianças em maior risco de exploração e violência sexual (ONU/ UNFPA, 2020:6).

Ao investigarem sobre diferenças de personalidade e Covid-19, Carvalho et al. (2020:6) relatam estudos  realizados em 2009 no Japão sobre H1N1, a síndrome respiratória na Coreia do Sul em 2016 e a atual Covid-19 na China. Estes estudos apontam que, semelhante a outros coronavírus o impacto negativo da Covid-19 e suas consequências são vastos, incluindo resultados negativos na saúde mental, com aumento dos sintomas depressivos e de ansiedade, distúrbios de estresse, insônia, raiva e medo. E que as pandemias provocam rupturas sociais, em razão das medidas de contenção adotadas para retardar a disseminação.

Sobre a atual pandemia, conforme a ONU já existem relatos de aumento da violência doméstica em muitos países. Na Argentina, Canadá, França, Alemanha, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, autoridades governamentais, ativistas dos direitos das mulheres e entidades da sociedade civil denunciaram crescentes queixas de violência doméstica nessa pandemia, e aumento da demanda por abrigos de emergência. Singapura e Chipre registraram um aumento de chamadas em mais de 30% nas linhas de apoio às vítimas. Na Austrália, 40% de trabalhadores e trabalhadoras da linha de frente em uma pesquisa de New South Wales relataram um aumento de pedidos de ajuda, porque a violência doméstica está aumentando em intensidade. No entanto, isso provavelmente é apenas a ponta do iceberg, já que, em média, globalmente, menos de 40% das mulheres que sofrem violência buscam ajuda de qualquer tipo ou denunciam o crime (ONU Mulheres, 2020a).

Em estudos preliminares, Paterman et al. (2020:6-18) revelam que os relatórios do condado de Jianli na China, a delegacia informou ter recebido 162 denúncias de violência por parceiro íntimo em fevereiro (três vezes o número relatado em fevereiro 2019), sendo “90% dos casos relacionadas à epidemia da Covid-19. E nos Estados Unidos, a linha direta “Violência Doméstica Nacional” emitiu uma declaração no início de março de 2020 sobre a campanha "Manter-se seguro" durante a pandemia, denunciando situações grotescas como evidência de como os agressores usavam o vírus como uma tática assustadora para ameaçar ou isolar vítimas, impedindo-as de fazer um plano de segurança, praticar autocuidado e procurar ajuda.

Nessa conjuntura, à medida que a pandemia aprofunda a crise econômica, o estresse social juntamente com as medidas de restrição da mobilidade e o isolamento social, aumenta a violência de gênero exponencialmente. Muitas mulheres estão sendo forçadas a ficar em casa com seus agressores, ao mesmo tempo em que serviços para apoiar sua proteção e segurança contra a violência doméstica estão sendo interrompidos ou tornaram-se de algum modo inacessíveis. O risco é agravado pelo fato de haver menos intervenções policiais; fechamento de tribunais e acesso limitado à justiça; fechamento de abrigos e de serviços para as vítimas e acesso reduzido aos serviços de saúde reprodutiva (ONU, 2020a).

Para as Nações Unidas, embora seja muito cedo para obter dados abrangentes, já existem muitos profundamente preocupantes que relatam o aumento da violência contra as mulheres em todo o mundo, com elevações em muitos casos de mais de 25% nos países com sistemas de relatórios em vigor. Em alguns países os casos relatados duplicaram. Esses números também provavelmente refletirão apenas os piores casos. Sem acesso a espaços privados, muitas mulheres lutam para fazer uma ligação ou procurar ajuda on-line. Concomitantemente, o fator acessibilidade aos serviços de suporte apresenta problemas. Serviços judiciais, policiais e de saúde que são os socorristas para as mulheres estão sobrecarregados, mudaram de prioridades ou estão incapacitados de ajudar. Grupos de apoio da sociedade civil são afetados pelo bloqueio do isolamento social ou pela realocação de recursos. Alguns abrigos de proteção às mulheres estão cheios; outros foram redirecionados como centros de saúde (ONU, 2020a).

A ONU chamou a atenção para tais consequências em relação à Covid-19, na declaração de ética sobre essa doença, e atesta que medidas como isolamento e quarentena impactam fortemente as pessoas vulneráveis, por isto atenção específica deve ser dada à violência intrafamiliar e às pessoas que vivem em situações econômicas precárias, especialmente nos países em desenvolvimento. Deve-se adotar estratégias de apoio e para evitar o agravamento de suas condições, e devem ser tomadas medidas adicionais para lidar com o estresse psicológico desencadeado pela ansiedade pandêmica e o impacto do confinamento. Indivíduos vulneráveis tornam-se ainda mais vulneráveis em tempos de pandemia. É particularmente importante observar a vulnerabilidade relacionada à pobreza, discriminação, gênero etc. (UNESCO, 2020:s.n.p.) (tradução livre). As vulnerabilidades sociais e programáticas das mulheres são dadas pelos diferenciais de oportunidades e de atenção delimitados pelas desigualdades sociais e de gênero.

Nesse período de pandemia, além da violência doméstica, há relatos de que aumenta também a exposição à violência sexual, e o risco de mulheres e meninas serem captadas pelas redes de exploração de prostituição, tráfico de mulheres etc. A ciberviolência também se tornou um recurso rotineiro da internet e, à medida que as restrições de movimentação aumentaram, o uso de jogos on line e de salas de bate-papo e outros recursos da internet também aumentaram. Essa é uma área de vigilância para proteger principalmente as meninas. É necessário ajudá-las a intensificar seu próprio trabalho de resistência nessa área, e a liderarem com soluções de mídia social. Na China, a hashtag #AntiDomesticViolenceDuringEpidemic ajudou a expor a violência como um risco durante o isolamento e vinculada a recursos on line (ONU Mulheres, 2020a).

Além disso, os cuidados e o apoio às vítimas de violência com base no gênero (gerenciamento clínico de estupro, saúde mental e apoio psicossocial) podem ser interrompidos na resposta de cuidados de saúde, quando os prestadores de serviços de saúde estão sobrecarregados e preocupados em lidar com casos da Covid-19 (ONU/UNFPA, 2020:6).

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Embora seja um cenário vivido nessa pandemia, esses fatos não são novos e nem inerentes a tal período. São problemas que atravessam os tempos, modificando apenas os instrumentos e as estratégias utilizadas para tais fins. Todas essas expressões muitas vezes são toleradas, silenciadas, desculpadas pela dependência das mulheres em relação aos homens ou por explicações psicologizantes inaceitáveis, tais como: os homens são incapazes de controlar seus instintos, os estupradores são doentes mentais, as mulheres gostam de homens agressivos (Minayo, 2006).  

A sociedade não pode mais tolerar ou aceitar desculpas para atos que violam os direitos das mulheres, que destroem suas capacidades, suas oportunidades, suas liberdades e suas vidas. A violência doméstica já é uma pandemia em todas as sociedades, sem exceção. Todos os dias, em média, 137 mulheres são mortas por um membro de sua própria família. É uma violência exacerbada mesmo em tempos normais, é inaceitável a alta taxa de uma em cada três mulheres no mundo sofre violência doméstica, e 38% de todos os assassinatos de mulheres são cometidos por seus parceiros (ONU Mulheres, 2020b).

Antes da existência da Covid-19, a violência doméstica já era uma das maiores violações dos direitos humanos. Nos 12 meses anteriores, 243 milhões de mulheres e meninas (de 15 a 49 anos) em todo o mundo foram submetidas à violência sexual ou física por um parceiro íntimo. À medida que a pandemia continua, é provável que esse número cresça com múltiplos impactos no bem-estar das mulheres, em sua saúde sexual e reprodutiva, em sua saúde mental e em sua capacidade de participar e liderar a recuperação de nossas sociedades e economia (ONU Mulheres, 2020b).

A violência contra as mulheres já era uma pandemia assustadora e onerosa em todas as sociedades, estimada em 1,5 trilhão de dólares. A ONU projeta que esse valor aumente à medida que os casos crescem, e continue após a Covid-19, criando um impacto econômico em cascata na economia global. Se a pandemia sombria da violência contra as mulheres não for tratada, também aumentará o impacto econômico do novo coronavírus (ONU Mulheres, 2020b). Segundo as pesquisadoras (Paterman et al.,2020:6-18), enquanto a pandemia global da violência contra mulheres e crianças é silenciosa, as pandemias devido a novas doenças estão ganhando mais atenção.

Por certo, os direitos humanos não podem ser violados por causa de uma pandemia, ou tendo esta como desculpa. Todos os direitos devem ser respeitados por todos (Estado e sociedade civil), pela sua importância a ser considerada individual e coletivamente, e de cada direito e do conjunto que formam.

A reação das organizações internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres mostra a necessidade de capacidades para contornar e ressignificar padrões culturais opressivos e ofensivos. A conclamação foi feita em nível mundial, para que cada país considere as necessidades e recursos locais para tomar as medidas de combate e enfrentamento à violência doméstica durante a pandemia. Sob essa ótica, é importante destacar os possíveis contornos e a dinâmica do problema no Brasil.

A violência contra as mulheres em tempos da pandemia de Covid-19 no Brasil

Em 13 de março, o Ministério da Saúde (MS) e as secretarias estaduais de saúde de todo o país anunciaram recomendações para evitar a propagação da doença. O MS reconheceu que a transmissão comunitária estava ocorrendo em todo o país (MS, 2020). Essas medidas foram determinadas com base em evidências científicas e análises de informações estratégicas em saúde divulgadas pela Organização Mundial da Saúde, porque ainda não há vacina contra esse novo vírus; e a profilaxia medicamentosa está em estágio insuficiente de desenvolvimento, com frágeis comprovações (Croda et al., 2020:6).

Durante esse período a mídia em todas as plataformas já noticiava aumento do número de casos de violência contra a mulher, baseada em informes dos disques denúncias e das delegacias de proteção à mulher. Também grupos feministas, grupos de mulheres e coletivos de mulheres empenharam-se em dar o alerta e mobilizaram-se.

Por enquanto os dados numéricos divulgados são gerais, provisórios e apenas incluem denúncias apresentadas em coletas simples. O Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) divulgou que no período inicial da pandemia (17 a 25 de março), houve um aumento de 8,47 % no número de ligações para o canal “Ligue 190”, que recebe denúncias de violência contra a mulher. Nesse mesmo período o canal registrou um aumento de 17,97% nas denúncias registradas (MMFDH, 2020a). Estima-se que o número de denúncias de violência doméstica tenha aumentado em até 50%, ao longo do primeiro mês da pandemia (Fiocruz, 2020:s.n.p.).

Uma das explicações para o agravamento da violência doméstica durante a pandemia no Brasil, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é que as mulheres pertencem a um dos grupos mais vulneráveis aos efeitos da crise ocasionada pela doença, em função da violência estrutural que o país atravessa e que se expressa na desigualdade social, deixando-as muito mais expostas ao adoecimento e à violência (Fiocruz, 2020). Esta violência tem, então, uma construção social com implicações multidimensionais sob a forma de injustiças para as mulheres, tomando-se a explicação de que: desigualdade social se refere a situações que implicam diferenças que são injustas, porque estão associadas a características sociais que sistematicamente colocam alguns grupos populacionais em desvantagem com relação à oportunidade de ser e se manter em condições dignas (Barata, 2009:12). Para as mulheres, as desigualdades sociais desencadeiam condições de iniquidades, que estão sendo aprofundadas por esse período de pandemia, desnudando antigas situações e condicionantes políticos, culturais e sociais impostos em relação ao gênero.

Muitos estados também divulgaram dados sobre o aumento da violência contra a mulher em consequência das medidas tomadas devido à pandemia. No Rio de Janeiro, as denúncias aumentaram 50% após o início do isolamento social. No Paraná, em Curitiba as delegacias de plantão informaram aumento no número de casos no primeiro fim de semana de confinamento. Uma casa abrigo na Baixada Santista (São Paulo), notificou que o movimento triplicou em apenas um dia. No estado do Ceará, entre o dia 23 a 30 de março, o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Fortaleza recebeu o pedido de 65 medidas protetivas de urgência (CFOAB, 2020:s.n.p.). Levantamento do Ministério Público do Estado de São Paulo, entre fevereiro e março de 2020, verificou aumento de 29,4% das medidas protetivas de urgências, e de 51,4% dos autos de prisão em flagrante (MPSP, 2020).

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) produziu nota técnica a pedido do Banco Mundial, para verificar a variação nos níveis de violência doméstica nos primeiros dias das medidas de isolamento social. O estudo obteve dados oficiais coletados junto as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social e Tribunais de Justiça relativos à violência doméstica em seis Estados (Acre, São Paulo, Mato Grosso, Rio Grande do Sul, Pará e Rio Grande do Norte), que se dispuseram a fornecer os dados de forma mais ágil e desburocratizada. O período de coleta foi de março até a segunda semana de abril do corrente ano, e foram comparados com o mesmo período de 2019. Os principais achados descrevem que há indícios de a quarentena ter impactado a violência doméstica contra as mulheres. Os registros de boletim de ocorrência que dependem da presença física das vítimas apresentaram redução. No Pará, houve uma redução de 49,1% no total de ocorrências; no Ceará a queda foi de 29,1%; no Acre de 28,6%; em São Paulo de 8,9%; e no Rio Grande do Sul de 9,4%.  Isto significa que as mulheres em situação de violência estavam com dificuldade de acessar os equipamentos públicos para registro das denúncias (FBSP, 2020:2-5).

Esses dados demonstram o movimento dualista do efeito da pandemia em relação às denúncias. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), enquanto o Disque 180, central de atendimento do governo federal para casos de violência doméstica, registrou aumento no número de ligações e de denúncias de violência, nas duas primeiras semanas do confinamento, em muitas cidades houve uma redução no número de denúncias. Com base em suas práticas, juristas explicam que a quarentena estaria dificultando o acesso da mulher à Justiça, porque o medo da pandemia por si só enfraquece a capacidade da pessoa, e aliado à dificuldade para fazer a denúncia exacerba o medo de fazer a queixa. Essa composição qualifica o medo da mulher porque o medo de adoecer e o de sair de casa, somam-se ao medo natural de romper com o ciclo da violência (CNJ, 2020a:s.n.p.).

De outra perspectiva, o movimento dualista do efeito da pandemia em relação às denúncias, pode também ser reflexo da disponibilidade do canal 180 funcionar 24 horas todos os dias. O que pode não ter ocorrido com os canais estaduais, que de alguma forma podem ter modificado o atendimento, e por isso diminuiu o número de chamadas para denúncia.

Sob uma abordagem crítica da violência contra as mulheres como fenômeno sociocultural, pode-se explicar pelo fato de que mulheres que estão ou estiveram em situações de violência desenvolvem sentimentos contraditórios relativos a tais experiências: vergonha, humilhação ou culpa pela violência, temem por sua segurança ou a de seus filhos, pensam que não possuem controle sobre suas vidas e, ao mesmo tempo, esperam que o agressor mude ou querem proteger o parceiro, por razões econômicas ou afetivas (Schraiber  et al, 2009:1024).

Nesse sentido, pesquisa realizada pelo DataSenado e Observatório da Mulher contra a Violência, mostram que mesmo após o advento e difusão da Lei Maria da Penha, as mulheres ainda não se sentem seguras em denunciar seus agressores: devido ao medo de vingança (68%), devido à dependência financeira (27%), preocupação com a criação dos filhos (25%), não existir punição (22%), sentimento de vergonha (17%) e acreditar que seria a última vez (16%). (IDS, 2019:27). A hierarquia ainda presente na cultura brasileira de subordinação da mulher ao homem traz desequilíbrios emocionais, familiares, econômicos e incentiva a violência doméstica.

Os dados apresentados pela pesquisa da FBSP indicam ainda que, a redução dos registros de boletim de ocorrência parece impactar na quantidade de medidas protetivas de urgência concedidas. Mas essa redução também é explicada porque muitos fóruns e tribunais restringiram ou suspenderam o atendimento. O número de concessões dessas medidas apresentou queda durante o mês de março, sendo mais expressiva nos estados do Pará (32,9%) e Acre (67,7%) (FBSP, 2020:6). Portanto, é outro indício de que a quarentena e o isolamento dificultaram o acesso direto à proteção policial, e a todo o sistema de justiça e de enfrentamento à violência doméstica.

O CNJ considerou que os serviços de proteção contra a violência doméstica são serviços de emergência para a Justiça, porque as mulheres que vivem relações abusivas precisam saber que não estão desprotegidas, não estão à mercê dos seus agressores, saber que todo o Sistema de Justiça brasileiro continua trabalhando. É fundamental que as vítimas procurem os serviços de acolhimento e proteção, como delegacias, defensorias, ministério público e o Judiciário (CNJ, 2020a:s.n.p.).

São muitas as causas apontadas para explicar o reflexo negativo da pandemia e seus efeitos sobre a violência contra a mulher. Além destas e dos fatores relacionais, sociais e culturais destacados pela ONU, a Fiocruz considera que também é possível que haja fatores individuais relacionados ao aumento no consumo de álcool e outras drogas no ambiente familiar, podendo elevar a probabilidade de ocorrer violência; e, que deve-se considerar que as diferenças sociais como cor da pele, classe social, orientação sexual, identidade de gênero e idade, deixam algumas mulheres mais suscetíveis à violência (Fiocruz, 2020). As causas apontadas demonstram a complexidade de fatores que envolvem esse tipo de violência e que dificultam o rompimento do seu ciclo. Tal ato tem como marca relações violentas ou abusivas, algumas fundamentadas apenas na dependência financeira da mulher para a continuação de tais horrores sem a devida reação legal das vítimas.

Em relação ao feminicídio, embora não seja possível afirmar que o incremento desta violência letal se deva apenas às mudanças impostas pela quarentena, que vulnerabiliza ainda mais mulheres que vivem em situação de violência doméstica, por certo esta é uma hipótese forte a ser considerada. Os resultados mostram os seguintes aumentos: Acre (100%), Mato Grosso (400%), Rio Grande do Norte (300%) e São Paulo (46,2%) (FBSP, 2020:8).

Esses dados demonstram que, a presença significativa de atos de violência contra a mulher revela que alguns dos princípios da honra masculina violada, da posse do homem sobre a mulher permanecem, que o social continua se construindo sobre e reproduzindo aspectos de uma construção ainda legítima de dominação masculina (Barros, 2014:136-137). E que, em crises ou ameaças de ruptura dessa dominação, comportamentos de reconquista do poder e da autoridade perdidos ou simplesmente de prevenção dessa perda serão não só possíveis, no universo simbólico da masculinidade hegemônica, mas necessários (Schraiber  et al, 2009:1024).

É estarrecedor que ainda ecoem como válidas a pergunta elaborada e as respostas encontradas por Eva Blay, em sua pesquisa realizada em 1995, sobre homicídio de mulheres para verificar como este crime era tratado. Ao reportar-se à década de 1970, sobre o movimento de defesa da vida das mulheres, a pesquisadora indagou: após trinta anos de feminismo, que impôs o ‘quem ama não mata’ e de mudanças na posição socioeconômica e nos valores relativos à relação homem x mulher, como explicar que crimes de gênero continuem a ocorrer? Encontrou as seguintes explicações: a persistente cultura de subordinação da mulher ao homem, considerada uma inalienável e eterna propriedade; uma recorrente dramatização romântica do amor passional; a facilidade com que os procedimentos judiciais permitem a soltura e liberdade dos réus; a pouca importância que as instituições do Estado dão à denúncia e ao julgamento dos crimes contra as mulheres e meninas (BLAY, 2003:92-96). Vinte e cinco anos após a pesquisa realizada por Blay, as mulheres brasileiras possuem a proteção da Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Contudo, essa contradição questionada pela autora ainda perdura.

O estudo da FBSP considerou outra base de informações para o estudo. Analisou relatos de brigas de casais e violência doméstica na rede social Twitter, entre fevereiro e abril deste ano. A apuração revelou o aumento de 431% nos relatos de brigas de casal com indícios de violência doméstica, quatro vezes mais em comparação ao mesmo período de 2019; 53% dos relatos foram publicados apenas no mês de abril; e, as mulheres foram as responsáveis por 67% dos relatos identificados, demonstrando maior sensibilidade para o problema. Os resultados corroboram a tese de que há incremento da violência doméstica nesse período de quarentena, ainda que este crescimento não esteja sendo captado pelos registros oficiais de denúncias (FBSP, 2020:11-13).

A justificativa para o uso de informação das redes sociais está no fato de as mulheres em situação de violência encontram dificuldades para fazer denúncias por conta própria. Mas o isolamento também faz com que mais pessoas estejam em casa durante todo o dia, aumentando a probabilidade de que discussões, brigas e agressões possam ser ouvidas ou vistas por vizinhos. Daí a possibilidade de que eles denunciem possíveis crimes se torna fundamental para assegurar às vítimas as medidas de proteção necessárias (FBSP, 2020:11).

Esse tipo de ação não é mais considerado intromissão ou invasão de privacidade, tornou-se necessário que em briga de marido e mulher se meta a colher. O importante é fazer com que as denúncias cheguem até o sistema de Justiça. É preciso que os casos sejam reportados, seja por um vizinho, um amigo, um parente ou por ela mesma. Isso precisa vir à tona. Qualquer pessoa pode fazer a denúncia, quem estiver presenciando, ouvindo ou que tenha conhecimento do fato (CNJ, 2020a:s.n.p.).

Sobre o fato de as mulheres serem as responsáveis pela maioria dos relatos identificados na rede social Twitter, corrobora com os dados da pesquisa do DataSenado, que identificou: a maioria das brasileiras (61%) afirmaram que denunciariam atos de agressão contra mulheres em qualquer situação; outras 32% disseram que denunciariam dependendo do caso; e apenas 6% não denunciariam. Para as 32% que apresentariam denúncia a depender da situação, 36% se preocupam com sua segurança pessoal, 34% com a gravidade da situação e 30% com a anuência da vítima (IDS, 2019:23).

Uma questão a ser colocada sobre as dificuldades para as mulheres fazerem a denúncia nesse período de quarentena é que, o impedimento de acesso à denúncia e às medidas protetivas pode não estar relacionado apenas aos meios físicos e de telefonia tradicionais das delegacias e polícia militar. Importante lembrar que a desigualdade social no Brasil faz com que muitas mulheres não tenham acesso à telefonia móvel, à internet e suas redes sociais. Por isso podem não ter acesso a outras alternativas. Portanto, é preciso também pensar em condicionantes econômicos e/ou educacionais, pois pode ser a falta de recursos financeiros para adquirir aparelhos de telefonia móvel e web, bem como ser a falta de alfabetização, inclusive de informação para usar as novas tecnologias, e assim terem mais formas de acesso à proteção contra violência doméstica.

Portanto, é através das desigualdades que o aumento do número de violência doméstica nesse período da pandemia demonstra que o sentimento de superioridade machista ainda emerge nos homens da sociedade após Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, após Lei Maria da Penha e após Lei do Feminicídio. Revela que o comportamento das relações desiguais de poder, aprendido e praticado há séculos, ainda resiste às mudanças sociais e institucionais.

As medidas adotadas pelo Brasil para conter a violência doméstica contra as mulheres no período da pandemia

Considera-se que a pandemia da Covid-19 mudou a dinâmica e o funcionamento das sociedades em todo o mundo, de uma maneira inimaginável em tempos atrás. Os desafios são gigantescos, principalmente no que diz respeito à tensão que eles representam. O mundo respondeu a este cenário de crise global com uma solidariedade generalizada sem precedentes (OLIVEIRA E PINTO, 2000).

Nessa perspectiva, para as mulheres, a atual pandemia e crise socioeconômica agravaram a situação e as condições há muito tempo desafiadoras, principalmente para as mais vulneráveis à violência doméstica. Todavia, a sociedade reagiu a esse problema através de denúncias, sugestões e medidas emergenciais realizadas por órgãos internacionais, mídias, organizações de defesa das mulheres e agentes dos poderes executivo, legislativo e judiciário.

A ONU elaborou recomendações aos países, como resposta imediata aos problemas apresentados pela situação de pandemia (Quadro 1). A entidade alerta sobre a importância de as respostas nacionais incluírem comunicações específicas ao público, de que a justiça e o estado de direito não estão suspensos durante períodos de isolamento. Enfatiza que estratégias de prevenção da violência baseada em gênero precisam ser incorporadas aos planos operacionais da justiça e dos setores de segurança durante a crise. Cada país deve procurar identificar os problemas locais, para que a resposta de apoio às mulheres seja comprovadamente eficaz no combate à violência doméstica durante a pandemia (ONU, 2020).

Quadro 1 – Medidas emergências de combate à violência doméstica durante a pandemia de Covid-19 segundo as organizações e instituições idealizadoras

Organização das Nações Unidas

Ministério da Mulher Família e Direitos Humanos

Conselho Nacional do Ministério Público

  • Integrar esforços e serviços de prevenção para responder à violência contra as mulheres em todos os planos de resposta à Covid-19;
  • Designar os abrigos para vítimas de violência doméstica como serviços essenciais, e alocar recursos para estes e para os grupos da sociedade civil que estão na linha de frente da resposta;
  • Expandir a capacidade dos abrigos para vítimas de violência, ao redistribuir outros espaços, como hotéis vazios ou instituições de educação, para acomodá-las durante o isolamento, e considerar as necessidades de integrar a acessibilidade para todas;
  • Designar espaços seguros para mulheres, onde elas possam denunciar abusos sem alertar os autores, por exemplo, em supermercados ou farmácias;
  • Disponibilizar serviços de denúncia online; e,
  • Intensificar campanhas de defesa da mulher, e de sensibilização para o combate à violência doméstica, incluindo atingir o público de homens que estão em casa em isolamento.

  • Manter os serviços da rede de atendimento;
  • Realizar campanhas de sensibilização para vizinhos e comunidade em geral denunciarem a violência doméstica;
  • Implementar comitês de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres no contexto da Covid-19 em Estados, Distrito Federal e Municípios;
  • Divulgar os serviços da rede de atendimento à mulher em situação de violência, com a atualização dos serviços e horários especiais de funcionamento;
  • Aumentar a capacidade da rede de atendimento realizar atendimento on-line;
  • Disponibilizar material informativo em farmácias, estabelecimentos de saúde, supermercados e sítios eletrônicos, sobre a violência e a rede de atendimento;
  • Divulgar o Ligue 180 como canal de denúncia e orientação para mulheres em situação de violência;
  • Disponibilizar pelo whatsapp e outros aplicativos orientações sobre leis, direitos e serviços, para meninas e mulheres, e para a comunidade;
  • Divulgar o atendimento emergencial da Polícia Militar pelo 190 e de aplicativos da segurança pública específicos para o atendimento de situação de violência; e,
  • Incentivar o preenchimento de formulários de avaliação de risco on-line, e encaminhar aos e-mails das Delegacias de Polícias de suas áreas de atuação.
  • Solicitar aos municípios da comarca, e ampliar nas redes sociais dos respectivos Ministérios Públicos, a divulgação dos canais não presenciais de notificação/registro de possíveis crimes e violências (Aplicativo app 190, Ligue 190, Central 180, Disque 100 e o Disque Denúncia 181);
  • Nas audiências de custódia em caso de flagrante, se o preso tenha histórico de violência doméstica contra a mulher, avaliar a conveniência de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva;
  • Se houver concessão da liberdade provisória, avaliar a associação ao monitoramento eletrônico e a medidas protetivas de urgência para aumentar a segurança da mulher, evitando o agravamento das agressões (feminicídio);
  • Em caso de descumprimento de medida protetiva de urgência, se o acusado demonstrou desrespeito e ausência de temor pelas decisões judiciais, avaliar a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva;
  • Se opitar pela concessão da liberdade provisória, avaliar a conveniência da associação do monitoramento eletrônico e medidas protetivas de urgência para aumentar a segurança da mulher, evitando o agravamento das agressões (feminicídio); e
  • Avaliar a possibilidade de as medidas protetivas, os novos pedidos e as em vigor, serem mantidas enquanto durar a situação de pandemia.

Fonte: elaborado pela autora com dados da pesquisa documental.

O Brasil tomou medidas através de várias instituições. O Ministério da Mulher Família e Direitos Humanos, alinhado com as orientações da ONU apresentou recomendações em relação às ações de enfrentamento à violência contra mulheres e meninas no contexto da pandemia de Covid-19 (Quadro 1) (MMFDH, 2020). Também lançou a cartilha, na qual concentrou e condensou informações sobre todas as instituições de apoio e cuidados às mulheres vítimas de violência. Uma cartilha exclusiva sobre violência contra a mulher está em elaboração, prevista para lançamento no mês de maio.  

Diante do cenário de dificuldades para as mulheres vítimas de violência doméstica durante o isolamento, medidas emergenciais foram apresentadas por outras instituições, sob a forma de planos de contingência em várias áreas. São respostas possíveis às necessidades atuais instauradas pela pandemia de Covid-19. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) apresentou nota técnica com sugestões de medidas preventivas aos Estados, um plano de contingência de prevenção e repressão aos casos de violência doméstica contra a mulher (Quadro 1) (CNMP, 2020:1-5).

O CNJ criou um grupo de trabalho para: realizar estudos e apresentar diagnósticos para aperfeiçoar marcos legais sobre o tema; sugerir medidas que garantam maior celeridade e prioridade no atendimento das vítimas de violência doméstica no Poder Judiciário; e,  propor políticas públicas judiciárias para modernizar e dar maior efetividade no atendimento das vítimas. Até a data de finalização deste artigo, o referido grupo apenas realizou reuniões sem divulgação de resumos. O relatório final está previsto para o mês de junho (CNJ, 2020b).

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também fez as suas manifestações em defesa da Constituição, dos direitos humanos, do Estado de Direito e da justiça social. Enviou ofício ao CNJ e ao Ministério da Mulher (CFOAB, 2020b), com sugestões de medidas para combater a violência doméstica durante a pandemia (Quadro 2).

Quadro 2 – Medidas emergências e projetos de lei para o combate à violência doméstica durante a pandemia de Covid-19 segundo as instituições idealizadoras

Ordem dos Advogados do Brasil

Fundação Oswaldo Cruz

Câmara dos Deputados Federais

Ao Ministério daMulher:

  • Prorrogação automática das medidas de proteção de urgência existentes;
  • Deferimento de medidas de proteção de urgência com prazo indeterminado;
  • Execução de campanhas com cartazes informativos de canais de apoio em toda oportunidade de contato, como farmácias, bancos e supermercados, além das redes sociais; e,
  • Monitoramento dos casos, com a divulgação periódica dos dados de ocorrências e medidas protetivas concedidas, objetivando a eficácia, transparência e notificação.

Ao Conselho Nacional de Justiça:

  • Realizar campanha de abrangência nacional com o alerta sobre o aumento da violência doméstica e familiar, e a divulgação de canais para a vítima realizar denúncia e procurar o auxílio devido;
  • Recomendar aos Estados implementem e/ou fortaleçam campanhas de combate à violência com cartazes informativos de canais de apoio em toda oportunidade de contato, como farmácias, bancos e supermercados, além das redes sociais;
  • Recomendar às Polícias Civis Estaduais a implantação das Delegacias Digitais, e outras formas de facilitação de denúncia aos órgãos institucionais (WhatsApp e aplicativos), e a implantação de delegacias móveis para registros de ocorrências e pedidos de medidas protetivas das vítimas.

  • Diversificar os canais de denúncia e sua divulgação por meio de estratégias de comunicação em locais públicos e de grande circulação como farmácias, supermercados ou demais serviços autorizados a funcionar durante a pandemia;
  • Implementar protocolos de verificação de denúncias por vizinhos e ou familiares, para que mulheres não sejam colocadas em maior risco;
  • Criar campanhas que encorajem a sociedade a denunciar casos de violência;
  • Garantir respostas rápidas das autoridades para a proteção da mulher, como a retirada do lar do autor de agressão ou a busca de locais de abrigamento seguro durante período de isolamento;
  • Os profissionais que atuam  nas políticas públicas, promovam o cuidado psicossocial e ofereçam orientações:  que a mulher converse com alguém de sua confiança sobre as ameaças e/ou agressões que tenha sofrido,  que a mulher verifique se há locais seguros perto da sua casa, onde possa ficar até conseguir ajuda, e no caso de ter crianças em casa, definir um código (por exemplo: uma palavra) informando-as que deverão buscar socorro e/ou sair de casa.
  • PL 1267/20: toda informação sobre violência contra a mulher, exibida em todas as plataformas de comunicação, incluirá uma menção expressa ao Disque 180.
  • PL 1291/20: municípios devem disponibilizar formas remotas gratuitas de denúncias (telefônica ou portal eletrônico ou aplicativos de celular). Estender as medidas protetivas em vigor até 31/12/2020.
  • PL 1319/20): as penas aplicáveis aos crimes de violência doméstica sejam dobradas enquanto durar o estado de pandemia.
  • PL 1368/20: aplicativo para denúncias de agressão doméstica, e um plantão telefônico local para receber denúncias. Um convênio para que o Disque 180 repasse as denúncias urgentes à delegacia especializada e conselho tutelar.
  • PL 1444/20: a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios assegurem recursos extraordinários emergenciais para garantir o funcionamento das casas-abrigo e dos Centros de Atendimento Integral e Multidisciplinares.
  • PL 1458/20: concessão, até 31 de dezembro de 2020, de auxílio emergencial de R$ 600 mensais à mulher de baixa renda em situação de violência doméstica e familiar.
  • PL 1552/2020: acolhida para as mulheres vítimas de violência doméstica e seus filhos(as) por de 15 dias em equipamento seguro e apropriado e, depois, em abrigamento final. Inexistindo vaga em abrigo sigiloso, o Poder Público usará pousadas e hotéis, resguardado o sigilo e segurança.

Fonte: elaborado pela autora com dados da pesquisa documental.

A Fiocruz lançou uma cartilha com o objetivo de oferecer subsídio aos profissionais da rede de proteção e cuidado às pessoas em situação de violência doméstica e familiar, bem como aos gestores e a todos os envolvidos nas respostas à Covid-19 (Quadro 2). Algumas orientações incluem aspectos de engajamento conjunto para ações que dependem de políticas intersetoriais e da mobilização da sociedade, para denunciar a violência contra a mulher (Fiocruz, 2020).

Representantes da bancada feminina e outros componentes da Câmara dos Deputados Federais, propuseram uma série de projetos com a finalidade de tentar conter o aumento do número de casos de violência doméstica durante o período da pandemia (Quadro 2). Os projetos têm propostas que incluem divulgação de informações, auxílio financeiro e ampliação das formas de abrigo para as vítimas de violência doméstica, e aumento de penalidades para os agressores. Até a data de finalização deste artigo, apenas o projeto n. 1291/2020 foi transformado em norma jurídica, os demais estão em tramitação na Câmara Federal (Brasil/Câmara dos Deputados, 2020).

Sobre estes projetos de lei, o Consórcio Lei Maria da Penha pelo Enfrentamento a todas as Formas de Violência de Gênero contra as Mulheres fez uma avaliação dos mesmos. De modo geral, considera que trazem dispositivos condizentes ao desafio de enfrentar a violência contra as mulheres nesse momento atípico, apesar do reduzido tempo decorrido para se avaliar adequadamente as formas pelas quais as múltiplas e interseccionais formas de violência contra as mulheres estão se configurando. Entretanto, como um dos pontos negativos destaca o fato dos projetos não consideram as desigualdades sociais agravadas pela intersecção de gênero e raça. Apresentou considerações aos parlamentares para a melhorar a articulação entre as dimensões de prevenção, assistência e coibição à violência doméstica. Dentre as quais, atuação dos espaços institucionais da Câmara e do Senado especializados na defesa dos direitos das mulheres para monitorar se as medidas adotadas para contenção da pandemia estão beneficiando as mulheres, e se os demais poderes estão priorizando a execução das medidas necessárias e urgentes para proteger e acolher as mulheres nesse período (CEPIA, 2020:1-9).

A mobilização social também se fez presente através dos grupos de movimentos feministas, movimentos de mulheres e ativistas. São grupos que por iniciativa própria, por voluntariado e doações, realizam diversas ações solidárias para que as mulheres de grupos mais vulneráveis, e de lugares onde muitas vezes os poderes e ajuda pública não alcançam por diversos motivos. Todavia, vidas não podem ser deixadas para traz. Nesse período de pandemia, grupos sociais empenham-se para levar às comunidades carentes, informações sobre violência doméstica e orientações para a proteção de mulheres e meninas.

As propostas e as medidas emergenciais tomadas contra a violência doméstica representam a visibilização da produção normativa em prol dessa causa, principalmente a Lei Maria da Penha, a Lei do Disque Denuncia e a Lei do Feminicídio. Demonstram seus efeitos reais já produzidos por suas aplicações, e as possibilidades de suas ampliações para reforçar a luta e a resistência das mulheres contra essa violência nesse momento de pandemia.

É possível dizer que repudiar a violência é sinal de desenvolvimento humano, porque é reconhecimento dos princípios democráticos de liberdades e direitos humanos. A percepção negativa e condenatória das várias formas de violência constitui um passo muito positivo alcançado pela humanidade em seu desenvolvimento. Isto porque atribuir a um ato de exploração, de dominação, de agressão física, emocional ou moral o caráter negativo de violência significa um status superior da consciência social a respeito dos direitos dos indivíduos e de coletividades. Tal compreensão acompanha o progresso do espírito democrático. Pois, a partir do momento em que cada pessoa se considera e é considerada 'cidadã', a sociedade reconhece seu direito à liberdade e à felicidade, e a violência passa a ser um fenômeno relacionado ao emprego ilegítimo da força física, moral ou política, contra a vontade do outro” (MINAYO, 2006).

A pandemia pode reverter conquistas políticas, sociais, laborais e legais-jurídicas implementadas em políticas públicas de equiparação de direitos, e em prol de leis ou normas protetoras dos direitos e liberdades das mulheres. Avanços ameaçados pelo novo agente biológico nocivo à saúde, mas não diretamente, porque contra a vida digna das mulheres os agentes perigosos continuam os mesmos: sexismo, machismo e exclusão social.

A atual pandemia do novo coronavírus é mais do que uma emergência mundial de saúde para as mulheres. Em decorrência dos efeitos que já apresenta nas dimensões social, política e econômica, pode-se entendê-la como uma crise sistêmica de desenvolvimento humano, que agrava as condições de saúde, vida e dignidade das mulheres.

Por tais aspectos, a violência contra as mulheres é uma questão complexa, uma vez que articula os domínios social, cultural e jurídico. Deve também considerar a insuficiência de conhecimentos e setores isolados para dar conta de sua apreensão e transformação. A colaboração interdisciplinar e intersetorial deve assim dirigir-se a esforços para que, as ações que se proponham como intervenção sejam afirmações éticas dos direitos humanos das mulheres, além de compromissos políticos de maior equidade de gênero e social (SCHRAIBER ET AL., 2009:1025). 

A reação das organizações internacionais, das instituições nacionais e da sociedade civil, mostra a possibilidade da capacidade de contornar e ressignificar padrões culturais opressivos e ofensivos contrários aos direitos humanos das mulheres. Embora existam leis específicas contra a violência doméstica, a nova situação mostra que há necessidade de maior suporte e apoio para incrementar as políticas públicas existentes e implantar novas com redesenho das medidas assistenciais, e também das medidas educativas para mudança da base estrutural da cultura de definição de papéis e comportamentos sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda é cedo para tecer conclusões sobre o problema da pandemia de Covid-19 e violência doméstica. Entretanto, algumas reflexões e apontamentos podem ser feitos nesse curto prazo da ocorrência da pandemia para explicações iniciais de suas causas; e obter informações sobre as possíveis soluções apresentadas e as respostas destas frente às emergências e novos desafios ou situações instaladas pela pandemia. A pandemia do novo coronavírus e seus efeitos também são uma novidade para a área do Direito, como ciência e como prática, apresenta novos desafios e novas pautas a curto e longo prazos.  

A princípio, é possível dizer que, além da importância da implantação de novas políticas públicas de emancipação e empoderamento, e de melhorar as existentes, há também a necessidade de discutir gênero na sociedade. Discutir a sua importância para que se possa compreender as desigualdades sociais e os fatores culturais que acabam se refletindo em violência contra as mulheres. É necessário desconstruir com medidas educativas os padrões e comportamentos sociais que perpetuam estereótipos de discriminação, inferiorização e opressão das mulheres.

Ademais, a atual pandemia traz muitos ensinamentos revestidos de solidariedade e proteção para minimização dos impactos sobre as mulheres mais vulneráveis social e institucionalmente em relação à violência doméstica, dando-lhes condições mínimas de liberdades e enfrentamento individual através da estrutura disponível e possível nesse período.

A reação das organizações internacionais, da sociedade civil e das autoridades brasileiras potencializaram outros modos de fazer chegar e efetivar as proteções às mulheres, ressignificando as possibilidades de combate e enfrentamento à violência doméstica. Bem como da ideia de liberdade, que embora temporariamente limitada por necessidades sanitárias, não pode sucumbir às condições limitantes da opressão sexista e do machismo, que ora aproveitam-se das vulnerabilidades já postas socialmente e das temporariamente impostas pela doença pandêmica.

Os relatos apresentados trazem possíveis causas que contribuíram para o aumento da violência doméstica nesse momento de pandemia. Contudo, apenas estudos mais elaborados e com base em dados coletados com mais especificidades poderão esclarecer de modo mais evidente o problema, e responder as questões que suscita. Requer análises mais detalhadas, que respondam para além das causas comumente conhecidas; que questione o porquê da atitude de se continuar a violentar mulheres mesmo tendo-se as leis punitivas; que violência se esconde nesse processo e aproveita-se de crises e agravamentos de vulnerabilidades para se apresentar; e que a partir disso aponte sugestões que estejam além da obrigação negativa/punitiva, mas focadas em condições de emancipação e empoderamamento das autonomias econômicas e sociais das mulheres, levadas a sério como soluções sob a forma de programas e ações efetivas pelo Estado Democrático de Direito.

 Para compreender de forma mais ampla e multidimensional o impacto da pandemia da COVID-19 em relação à violência doméstica contra as mulheres, será necessário localizar a discussão no conjunto dos problemas que relacionam direito, estado, cultura, relações sociais, situações e condicionantes de vida das mulheres. Por tais aspectos, este estudo constitui-se em um levantamento exploratório e introdutório.

Referências

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Sobre a autora
Maria Eliane Alves de Sousa

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (Salvador/Bahia/Brasil). Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (RJ). Advogada.

Informações sobre o texto

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Doutoranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (Salvador/Bahia/Brasil). Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (RJ). Advogada. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0365-9989.

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