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Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo

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Agenda 25/05/2006 às 00:00

Afasta-se o Direito Processual brasileiro do modelo acusatório, de influência iluminista, na medida em que o reexame necessário dilata, indefinidamente, a persecução criminal.

Sumário: Apresentação; 1. Introdução; 2. Breve escorço histórico, 2.1. Direito lusitano medieval. as Ordenações do Reino, 2.2. O instituto na atual legislação infraconstitucional brasileira; 3. Do instuto do reexame necessário ou "recurso de ofício" em matéria penal, 3.1. Considerações preliminares, 3.1.1. Do sistema acusatório, 3.1.2. Da ação penal e do processo penal, 3.1.3. Dos recursos, 3.1.3.1. Relação das condições recursais com as condições da ação, 3.1.3.2. Do reexame necessário ou recurso de ofício; 4. Cotejo do instituto em face da ordem constitucional instaurada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, 4.1. Doutrina, 4.1.1. Do instituto do reexame necessário em face dos direitos e garantias fundamentais e dos princípios informadores da República Federativa do Brasil, 4.1.2. Das posições da doutrina processual penal acerca da recepção do reexame necessário pela Constituição Federal de 1988, 4.1.3. Do instituto do reexame necessário em face do novo status constitucional do Ministério Público, 4.2. Jurisprudência, 5. Cotejo do instituto em face da ordem jurídica internacional, 5.1. Da vigência dos instrumentos internacionais em matéria de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, 5.2. Da hierarquia dos instrumentos internacionais em matéria de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro, 5.2.1. Reflexos da EC nº 45/04 na hierarquia dos instrumentos internacionais de direitos humanos, 5.3. Análise de instrumentos internacionais em espécie, 5.3.1. Sistema Global. Organização das Nações Unidas. ONU, 5.3.1.1. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 5.3.1.2. Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 5.3.2. Sistema Regional Interamericano. Organização dos Estados Americanos, 5.3.2.1. Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 5.3.2.2. Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de São José da Costa Rica, 6. Conclusão, Referências Bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O objeto central deste trabalho é a análise da validade e vigência das normas infraconstitucionais que estabelecem o reexame necessário, também denominado remessa necessária, duplo grau de jurisdição obrigatório ou, impropriamente, recurso ex officio, em face da ordem constitucional vigente e as normas constantes de instrumentos internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.

Através da análise da doutrina e jurisprudência acerca do tema, busca o presente trabalho demonstrar a problematização sobre a sua constitucionalidade, já conteste em ambas as searas jurídicas.

Inicia o presente estudo com uma rápida digressão acerca do histórico e origens do instituto, culminando por demonstrar a atual feição que lhe é conferida pela legislação pátria contemporânea.

Em seguida, a partir do estudo técnico dos elementos e institutos processuais, constitucionais e internacionais relacionados com o tema, utilizando-se, incidentalmente, do direito comparado, busca identificar a natureza jurídica do instituto em análise para, ao final, de acordo com as regras da hermenêutica jurídica e, seguindo como baliza uma interpretação sistemática da ordem jurídica vigente, propor uma conclusão acerca de sua validade e vigência no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo.


1. INTRODUÇÃO

O Direito Penal, assim como o Direito Processual Penal, sempre estiveram ao centro de alguns dos pontos mais controvertidos da ciência jurídica, bem como dos embates judiciais e das discussões doutrinárias mais acirradas, certamente em virtude de serem os ramos do direito a tutelarem os valores mais caros ao ordenamento jurídico como um todo, valores tais como a vida, a liberdade, a integridade física, dentre tantos outros.

Todo o Direito insere-se numa dialética, que lhe é inerente, gerada, certamente, por sua própria natureza de instrumento de pacificação social, tendo como pressuposto o conflito de interesses que lhe é subjacente.1

Ao Direito, concebido como instrumento, técnica ou método de pacificação e controle social cabe compor os conflitos intersubjetivos de interesses, sejam de qual natureza forem, bem como os choques e conflitos de direitos concorrentes entre si.

No Direito Penal e no Processo Penal, como dito, sem prejuízo da inegável importância e relevância dos demais ramos do Direito, aparece de forma mais proeminente ainda o referido conflito de interesses, a nosso ver, em razão da magnitude dos bens jurídicos em atrito.

A Dialética-base em tais ramos do Direito é aquela do jus libertatis do imputado, direito fundamental consagrado em todos os ordenamentos modernos, de inspiração iluminista, assim como no Jus Gentium, em confronto com o jus puniendi estatal, a qual, evidentemente, não poderia ser pouco conflituosa.

Afirmamos isso porque, a despeito das teorias que já vigeram acerca de neutralidade axiológica do direito e de seus operadores, de molde kelseniano, hoje é evidente tratarem-se de verdadeiras falácias tais concepções, sendo claras as afetações de ordem social, cultural, psicológica, e, notadamente, ideológica, dentre inúmeras outras, sobre as posições adotadas pelos operadores do direito, notadamente seus aplicadores (leia-se Poder Judiciário).

Deste modo, no processo histórico de afirmação dos direitos e garantias fundamentais no campo do Direito Penal e do Direito Processual Penal, vê-se com nitidez momentos e pontos de prevalência ora de posições tidas como vanguardistas ou liberais, ora de posições conservadoras ou mesmo reacionárias, ditadas, como visto, inclusive por questões de ordem ideológica, tanto na seara judicial quanto na legislativa.

Na dialética a que se refere, encontra-se, como dito, de um lado o direito individual à liberdade, à propriedade, ao devido processo legal, dentre inúmeros outros, conquistados arduamente ao longo do processo histórico2. De outro lado, o direito-dever estatal de punir, com vistas aos relevantes interesses de segurança e tranqüilidade social, quer individual, quer coletiva.

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Tal problema-base tem colocado sempre à frente dos legisladores e dos operadores do Direito em geral, uma questão aparentemente irrespondível, qual seja: de que maneira conciliar tais interesses, tão relevantes em si e, ao mesmo tempo, sob certos aspectos, excludentes um do outro.

Ou, colocando-se a questão de uma outra forma, até que ponto se pode exercer o jus puniendi de maneira eficaz sem violar os direitos e garantias fundamentais? E até que ponto estes são oponíveis ao exercício daquele? É sabido que as soluções têm variado, de Estado para Estado, de tempos em tempos e de regime para regime, conforme afetações de diversas ordens, já referidas.

Tendo-se em mente a natureza do Direito Penal e do Direito Processual Penal como instrumentos ou tecnologias de pacificação ou controle social, o que lhes dota de evidente caráter político e ideológico, assim como observando-se a história, pode-se vislumbrar como o Direito repressivo tem sido usado e de que forma tem variado, de país para país, de um momento histórico para outro, sob diversas influências.

É sabido que o Direito Penal sofreu, ao longo da história, grande evolução e aperfeiçoamento, em muitos aspectos, a despeito de episódicos retrocessos3.

Assim passou-se, notadamente após a influência do Iluminismo e seus pensadores, a um Direito Penal moderno, um Direito Penal do fato, em substituição ao antigo direito penal do autor, dentre outros inúmeros avanços de todos conhecidos, e cuja narração seria sempre incompleta e, no bojo do presente estudo, enfadonha.

O mesmo pode-se afirmar do Processo Penal. O Processo Penal tem sido concebido pela doutrina como o instrumento de aplicação do direito repressivo por excelência.

Também ele, sob as influências relatadas, ao longo do processo histórico, evoluiu de institutos absolutamente autoritários e mesmo desumanos (basta recordar, v.g., as ordálias medievais), para conceitos e princípios norteadores de tal avanço e importância como aqueles que hoje são seus corolários, e.g. a isonomia, o estado de inocência (ou da não-culpabilidade, como preferem alguns), o devido processo legal, a ampla defesa, o direito ao silêncio, dentre inúmeros outros, cuja enumeração, no momento, é também desnecessária.

Neste ponto entende-se cabível um pequeno parêntese, no que tange ao caráter e às finalidades do direito processual, ontologicamente considerado.

São de uso corrente e generalizado as afirmações sobre a tão propalada natureza "instrumental" do direito processual, seja em matéria penal ou qualquer outra.

Discorda-se, no entanto, com a concepção que, na maioria das vezes, manifestam a doutrina e a jurisprudência acerca da referida instrumentalidade, defendendo-se ser imprescindível concebê-la de um ponto de vista um pouco diferente daquele corrente.

Tem-se repetido, quase que mecanicamente, que o direito processual é instrumental por ser um direito, por assim dizer, destinado à aplicação do direito material, sem maiores preocupações de fundo.

Dificilmente encontram-se avaliações mais profundas. Isto é inexato e traduz prejuízo de compreensão da natureza do direito processual, em prejuízo de valores tidos como os mais altos do ordenamento.

Senão vejamos: o direito processual é instrumental, indiscutivelmente, assim como o direito material o é, se o observamos daquele prisma já mencionado, no caso do direito repressivo, como instrumento ou tecnologia de controle ou pacificação social.

A doutrina em geral, no entanto, ao definir o direito adjetivo como instrumental passa uma falsa imagem de que é menos importante que o direito substantivo, quase dá a entender que lhe é acessório, uma espécie de direito de "segundo escalão", repetindo irrefletidamente que serve ao direito material, por destinar-se à sua aplicação, sem um aprofundamento adequado em tal análise.

Discorda-se, no presente trabalho, com veemência, desta concepção acerca da instrumentalidade do processo.

Defende-se a utilização da expressão instrumentalidade do processo, primordialmente, para a efetivação dos direitos fundamentais, haja vista sua natureza de garantia fundamental, inscrita no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Assim, a finalidade do processo, pela tese ora propugnada, é a consecução de direitos fundamentais da dimensão daqueles da liberdade e propriedade. Somente num segundo momento se pode vislumbrar instrumentalidade do direito adjetivo em relação ao substantivo que lhe corresponde. Em primeiro plano veicula o direito processual direitos constitucionalmente assegurados.

É preciso chamar a atenção dos operadores do direito para o fato de que o direito processual não visa exclusivamente à aplicação do direito material respectivo. O direito processual é verdadeiro depositário de finalidades próprias, específicas e, diga-se de passagem, de dignidade constitucional.

É neste sentido, aliás, a advertência feita pelo eminente VICENTE GRECO FILHO, em seu Manual de Processo Penal:

Grande número de doutrinadores de processo penal tem esquecido a função processual de garantia dos acusados. Não quanto às faculdades de defesa, que são amplamente tratadas, mas quanto à própria obrigatoriedade do processo que se interpõe entre a pretensão punitiva e o direito de liberdade. Talvez tal esquecimento decorra da consagração tão profunda de tal princípio, que dispensa seu reexame ou reafirmação. Contudo, periodicamente, convém seja feita uma petição de princípios que recomponha os conceitos e determine a reapreciação de suas conseqüências4

Observando-se o próprio surgimento do processo como ramo autônomo do direito, verifica-se que surgiu sob influência e como corolário de preceitos de direitos fundamentais já insertos em documentos bastante antigos, como a Magna Carta do Século XIII, outorgada por João Sem-Terra, e inúmeros outros instrumentos normativos de magnitude semelhante.

Surgiu como veículo de valores jurídicos de primeira grandeza, consagrados atualmente por todas as Constituições modernas e democráticas e por inúmeros instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos, tais como os já mencionados direito à isonomia, ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, e inúmeros outros, com vistas a frear a prepotência e o arbítrio estatal em face do cidadão.

Deve-se observar que o direito processual, ao estabelecer as "regras do jogo", ao ditar às partes, antecipadamente, as regras de paridade de armas, distribuição do ônus da prova e tantas outras de igual importância, é meio indispensável para a realização do direito material, que sem ele restaria letra morta, em uma espécie de síndrome de ineficácia, de modo semelhante ao que ocorre com o direito constitucional, em inúmeros de seus dispositivos dependentes de complementação normativa infraconstitucional.5

Dito de outro modo, o processo encerra em si mesmo, e como sua finalidade precípua, por sua própria natureza, e antes mesmo de visar à mera aplicação do direito material que lhe é afim, a garantia e a realização, in concreto, de direitos e garantias fundamentais, cláusulas pétreas do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, por força do artigo 60, § 4º, da Constituição Federal, o que espanca, vez por todas, o tão propalado caráter meramente instrumental do direito processual, em relação do direito material correspectivo, como mero apêndice ou acessório deste.

Nesta concepção, processo é, precipuamente, veículo de comandos de ordem constitucional, de direitos fundamentais, é uma das garantias fundamentais por excelência.

Para finalizar esta rápida incursão no que respeita à concepção e à natureza do direito processual, convém observar que tal interpretação insere-se, ainda, em um contexto de constitucionalização do direito processual, razão pela qual se faz necessário atentar, com maior rigor, ao fenômeno da recepção de determinados institutos jurídico-processuais preexistentes à atual ordem constitucional.

Tal parêntese foi feito à guisa de introdução geral do ponto de partida para a abordagem do tema proposto, eis que esta concepção se prende umbilicalmente ao trato do mesmo.

Continuando o raciocínio, após a incursão no tema instrumentalidade, na esteira da evolução do Direito Processual Penal, verifica-se que este passou por uma "liberalização", perdendo a feição inquisitória e assumindo uma feição nitidamente acusatória, especialmente após o advento da atual ordem constitucional.

No Brasil, marcante é o advento da Constituição Federal de 1988, que inseriu, no rol de direitos e garantias fundamentais, inúmeros dispositivos atinentes ao processo, em geral, e ao processo penal, em particular, representando grande avanço no sentido da modernização nestes ramos do direito pátrio, tendo adotado nitidamente o processo penal de estrutura acusatória, o que é pacífico na doutrina.

É evidente que após a entrada em vigor da nova ordem constitucional, se faz necessária a interpretação de compatibilidade de toda a legislação infraconstitucional anteriormente vigente com aquela, impondo-se ao operador do direito a negativa de vigência de textos infraconstitucionais incompatíveis com os valores e norma preconizados pela Carta Constitucional superveniente, o que consubstancia o fenômeno da não-recepção.

Neste sentido, busca o presente trabalho fazer o cotejo do instituto do reexame necessário em matéria penal, comumente conhecido como "recurso de ofício", "remessa necessária" ou "duplo grau de jurisdição obrigatório", com a ordem constitucional instaurada em 1988, buscando averiguar a recepção ou não do mesmo pela nova Carta Magna.

Além de tal análise, far-se-á ainda o cotejo de compatibilidade do instituto em estudo com as normas de Direito Internacional vigentes, lançando mão ainda de elementos de Direito Comparado, tudo na tentativa de repropor a discussão acerca do tema.


2. BREVE ESCORÇO HISTÓRICO

À guisa de introdução far-se-á uma perfunctória incursão no histórico do instituto, buscando suas origens no Direito europeu medieval e sua vigência no Brasil. Tal estudo demonstra-se revelador quanto à natureza do instituto em suas origens e suas feições atuais, de maneira bastante surpreendente, conforme ver-se-á.

2.1. Direito lusitano medieval: as Ordenações do Reino

O instituto jurídico sub examine tem suas origens no direito medieval lusitano, conforme nos ensina o ilustre doutrinador FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO:

O recurso necessário deita raízes no antigo Direito lusitano. Para jugular a onipotência desenfreada dos Juízes, numa época em que os recursos ainda não estavam bem disciplinados, talvez mesmo por influência do processo inquisitivo, "perigoso instrumento de perseguição a inocentes", que campeava pela Europa continental, surgiu em Portugal o recurso ex officio. Em determinadas hipóteses, o Juiz, ao proferir o decreto condenatório era obrigado a apelar "polla justiça". E caso o Juiz se descurasse dessa obrigação, podia sofrer penalidades que chegavam até a perda do cargo. Tal recurso era previsto nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, e como elas vigoravam aqui, tivemos, também, mesmo ao tempo do Brasil reinol, o recurso ex officio. Por volta do ano de 1831, entre nós, foi ele estendido a certas causas cíveis, notadamente quando a decisão era contrária à Fazenda Nacional"6 (sem destaques no original).

No mesmo sentido, assevera o eminente JOSÉ FREDERICO MARQUES, citando ALFREDO BUZAID:

Segundo demonstrou ALFREDO BUZAID, o recurso de-ofício é de origem puramente lusitana. É ele, antes, um quase-recurso, pois o reexame, na jurisdição superior, se efetua ex vi legis. Há, aí, uma "ordem de devolução imposta pela lei" e não, remédio recursal: só se compreende este, quando o interessado declara a sua inconformidade com a decisão e pede ao juízo ad quem a reforma total ou parcial da sentença que lhe trouxe gravame e prejuízo.7

Portanto, conforme as lições extraídas da doutrina, as origens do instituto em exame encontram-se no Direito Lusitano Medieval, mas precisamente nas denominadas Ordenações do Reino, que vigeram inclusive no Brasil.

As referidas ordenações consubstanciavam-se em compilações das normas de direito material e processual, outorgadas pelos Reis de Portugal, que tiveram vigência em nosso país até a edição das primeiras normas supervenientes à Independência.

Primeiramente vigeram no Brasil-colônia as Ordenações Afonsinas, assim denominadas por terem sido promulgadas por Dom Afonso V, Rei de Portugal, em 1480.

Em 1520, Dom Manuel I promulgou as denominadas Ordenações Manuelinas, em substituição às Afonsinas até então vigentes.

Por fim, em 1603, foram promulgadas as Ordenações Filipinas, sob os auspícios de Dom Felipe III.

Todas as ordenações consagraram o instituto em análise. Este prestava-se a propiciar um controle da atividade jurisdicional de primeiro grau pela segunda instância, mas é de se destacar que em sua origem medieval, o reexame necessário possuía natureza inteiramente diversa, diametralmente oposta, àquela que possui contemporaneamente em nosso ordenamento.

Pois, conforme o ensinamento do insigne FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, transcrito acima, era o referido "recurso" imposto nas hipóteses de decreto condenatório, em situação inversa à atual, haja vista prever nossa legislação seu cabimento quase que exclusivamente na hipótese de proferimento de decisão que seja, de um modo ou de outro, favorável ao réu, conforme ver-se-á no momento oportuno8.

Esclarecedora, portanto, tal incursão no aspecto histórico do duplo grau obrigatório, sobretudo porque demonstra, de forma surpreendente, que o direito lusitano medieval, neste ponto, possuía uma feição mais liberal e branda do que o atual direito positivo brasileiro.

2.2. O instituto na atual legislação infraconstitucional brasileira

Atualmente o instituto do reexame necessário, em matéria penal, encontra previsão, na legislação infraconstitucional brasileira, em dois diplomas legais, basicamente: no Código de Processo Penal, o Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, e na lei dos crimes contra a economia popular, Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951.

O eminente FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO elenca as hipóteses de reexame necessário no Processo Penal brasileiro:

O Processo Penal o admite nas seguintes hipóteses: 1) Das decisões de primeiro grau que concederem habeas corpus (art. 574, I). 2) Quando o Juiz absolver o réu sumariamente, nos termos do art. 411. (art. 574, II). 3. ) Da decisão que concede a reabilitação (art. 746). Quanto a esta hipótese, há discussão sobre a sua extinção ou não. Sem embargo, quer-nos parecer não ter sido ele abolido. A propósito, RT, 608/345 e 620/281, 712/475; JTACrimSp, Lex, 86/181, 86/182. 4) Da decisão que acolhe pedido de arquivamento de inquérito sobre crime contra a economia popular, da que absolve o réu nesses mesmos crimes, da que acolhe pedido de arquivamento de inquérito sobre crime contra a saúde pública ou que, nesse mesmo crime, profira sentença absolutória (art. 7º da Lei n. 1.521/51).9

O mesmo jurista nos lembra que, quanto aos crimes atinentes a entorpecentes, embora originariamente tipificados no art. 281. do Código Penal Brasileiro, incrustado no Título VIII, Capítulo III do codex material penal, que trata dos Crimes contra a saúde pública, passaram referidos os crimes de tráfico e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica a ser disciplinados pela Lei n. 6.368, de 21-101976 e, mais recentemente, pela Lei n. 10.409, de 11.01.2002, (esta última no que se refere a seus aspectos processuais, ao menos).

Portanto, não cogitando, nenhuma das duas leis, do instituto do reexame necessário, nenhuma aplicação pode ter o art. 7º da Lei n. 1.521/51, revogado no particular, no entendimento do referido douto. 10 11

Estas, portanto, as hipóteses em que o atual ordenamento infraconstitucional brasileiro prevê o reexame necessário em matéria penal, exigindo a submissão da decisão à análise do segundo grau de jurisdição, cominando a sanção da nulidade para os casos de omissão da referida providência (art. 564, inciso III, alínea "n", do Código de Processo Penal). 12

Conforme já afirmado anteriormente, de se observar que quase todas as decisões cuja eficácia encontra-se submetida à reapreciação pela superior instância em matéria penal são favoráveis ao réu, de modo que o instituto, da maneira como se encontra disciplinado em nosso ordenamento infraconstitucional possui uma nítida feição pro societate e, por conseqüência, contra reo.

As considerações acerca da natureza jurídica e demais aspectos de ordem técnico-processual, assim como uma análise mais detida das hipóteses de cabimento, serão feitas no capítulo seguinte.

Sobre o autor
Luis Fernando Sgarbossa

Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Professor do Mestrado em Direito da UFMS. Professor da Graduação em Direito da UFMS/CPTL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SGARBOSSA, Luis Fernando. Do reexame necessário em matéria penal no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1058, 25 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8410. Acesso em: 5 nov. 2024.

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