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A era do mal-entendido

Agenda 23/07/2020 às 00:26

O texto aborda o tema da liberdade individual e a liberdade moderna. Igualmente cogita da dimensão filosófica do feminismo e da sociedade da informação.

Benjamin Constant esclarecia que, in litteris: “A liberdade individual é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a garantia e é, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar, como os de antigamente a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a consequência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe ser arrebatada”. (In: Da Liberdade dos Antigos comparada à dos Modernos. In: Revista Filosofia Política, n.2, p. 1-7, 1985).

 

Foi um texto intitulado “What’s Critical about Critical Theory”?” The Case of Habermas and Gender”, de autoria de Nancy Fraser que nos conduziu a debate sobre a luta por reconhecimento.

 

Nancy Fraser é uma opositora à Teoria Crítica de Habermas e as Doutrinas Redistributivas procurando resolver os problemas surgidos principalmente pela falta de diálogo.


Refletir sobre o reconhecimento e Justiça tendo por preferencial a Teoria da Justiça de Rawls e buscando a adequada articulação com a Teoria Crítica de Habermas[1].

 

O termo “reconhecimento e justiça” em seu sentido originário das teorias vêm a permitir a construção da justificativa sobre o motivo do emprego do conceito. Mas, antes será necessária breve incursão ao multiculturalismo de Kymlicka e, também ao comunitarismo de Walzer tomando as análises sobre a comunidade, grupo, etnia, cultura e hierarquia.

 

Em verdade Benjamin Constant nos apresentou formas diferenciadas de organizações sociais, políticas e econômicas em momentos históricos distintos, na narrativa deste exibiu cenários de mudanças nas formas de governo, nos modelos de Estado e dos sistemas de governo, mas o ser humano ainda não descobriu como governar que não seja através da imposição enfática da força.

 

O sentido de liberdade, direito, norma, controle e normatização sofrem modificações, mas o exercício do poder sobre os povos em sua forma é inalterado.

 

No fundo, Nancy Fraser em sua crítica aborda questões contemporâneas atuais que iniciaram ainda no período de 1960 a 1990 do século XX, o que reafirma que todo pensador é fruto de seu tempo e, não foi diferente em 1971 quando surgia a Teoria da Justiça de Rawls[2].

 

Rawls e Habermas[3] elaboraram críticas pontuais sobre a ordem, ao direito, a liberdade, mas principalmente da busca da paz e de uma boa vida, que seja através do diálogo, da reestruturação da sociedade, da reformulação sobre o que não mais funciona adequadamente aos interesses de determinada época.

 

Demonstrou Constant[4] que as contingências marcam crucialmente uma certa sociedade, principalmente quando ocorre modificação de sua estrutura; de sorte que o que é hoje politicamente correto, poderia ser considerado outrora como uma ameaça.

 

Para analisarmos melhor, basta verificarmos os direitos da mulher e dos homens que não eram os mesmos que conhecidos por nossos antepassados, mesmo que os homens gozassem de alguma liberdade ou supremacia, sempre sob restrições.

 

Aliás, a importante reivindicação dos direitos nos movimentos sociais, as reivindicações aceitas, o que nos faz concluir que o direito concedido é um direito garantido. E, precisamos ter mecanismos que impeçam o retrocesso.

 

No entanto, há sempre novos debates e segundo o texto de Thiebaut encontramos distinções feitas por Constant no que se refere à comunidade, a associação e a sociedade no liberalismo.

 

Também há a diferença de República e Democracia demonstrando três pontos relevantes à investigação, a saber: o plebeísmo, o civismo e o pluralismo. Aliás, Cícero Araújo também elucidou sobre o novo contratualismo em Rawls[5].

 

Verifica-se que a ênfase de Rawls nas questões da justiça e não nas de legitimidade, nos indica claramente que o contratualismo inaugurado por ele, trouxe nova agente de questões para a tradição do contratualismo como um todo.

 

Desde a noção de justiça de Platão a Rawls com a introdução ao contratualismo em Hobbes, Rousseau, passando por Kant, Locke e Hume um novo contratualismo pautado no liberalismo política enfatiza a relevância do diálogo no processo politico com semelhança com a Teoria Crítica de Habermas[6] no que se refere à comunicação, participação exceto os princípios e ética.

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A forma do diálogo liberal e seus princípios como racionalidade, coerência e neutralidade reforça a necessidade de se construir consensos razoáveis. E, mesmo uma disputa retórica do poder entre pessoas, calcada no melhor argumento, em Habermas onde os princípios morais ao entendimento estão sob consenso.

 

Nancy Fraser argumenta que a justiça é conceito complexo e que deve ser compreendido sob três dimensões separadas, apesar de interrelacionadas, a saber: a distribuição de recursos produtivos e de renda; o reconhecimento das contribuições de variados e diferentes grupos sociais e, por fim, a representação na linguagem e em todo o domínio simbólico.

 

Enfim, evitando-se uma concepção sumarizada dos conceitos de justiça e participação democrática, a filósofa argumenta também que os teóricos sociais deveriam resumir os elementos da Teoria Crítica e do Pós-estruturalismo, superando assim, a falsa antítese entre os dois, para se ganhar um vasto conhecimento dos problemas sociais e políticos sobre o qual ambos trabalharam[7].

 

Percebe-se que não significa afirmar que Fraser defenda vaga fusão de duas vertentes de pensamento, o que se propõe é uma aproximação neo-pragmatistas, onde cada escola de pensamento separe rigorosamente os conceitos úteis dos que lhe sejam menos úteis (ou até mesmo prejudiciais) tendo em vista a análise progressista das instituições e dos movimentos sociais.

 

Positivamente, Fraser está plenamente inserida na tradição das teorias progressistas, ao mesmo tempo em que modifica essa tradição com elementos de teorias recentes, tais como do feminismo, da teoria crítica e do pós-estruturalismo.

 

Um feminismo que deve libertar todas as mulheres e que acaba por ser anticapitalista. E, infelizmente na luta por igualdade, nem todos os feminismos são iguais.  Lembremos que a greve anual no Dia Internacional da Mulher[8] mostrou que o liberalismo promovido por pessoas como Hillary Clinton está bem distante de ser o único tipo de política feminista.

 

E, poucas escritoras têm sido tão didáticas quanto a esse ponto como Nancy Fraser, como sua enfática crítica àqueles feminismos que buscam apenas colocar as mulheres nas salas de reuniões e nos parlamentos. Enfim, sua obra enfoca que o feminismo deve ser focado nas necessidades da maioria social.

 

E, não se trata de limitar o feminismo às questões do local de trabalho, mas ao revés, é por de trás de uma agenda comum, unir interesses materiais dos trabalhadores com as frentes de luta como antirracismo e a libertação LGBT e a luta contra a violência masculina.

 

Afinal, um feminismo liberal e pró-capitalista pode, na melhor das hipóteses, empoderar pequeno e privilegiado grupo de mulheres profissionais-gerenciais, enquanto deixa vasta maioria vulnerável e submetida aos abusos de toda ordem.

 

Um feminismo autenticamente libertador aborda questões de gênero e sexualidade e, tais questões não existem num vácuo, podem ser deduzidas da matriz social mais ampla, onde estão inseridas, o que também inclui outras fissuras de perceptível injustiça social.

 

Portanto, as feministas devem ampliar a agenda para além do convencional de "questões de mulheres" para incluir todo espectro de questões que afetam as mulheres e também as outras pessoas. Enfim, o feminismo contemporâneo deve ampliar sua agenda, sob pena de apenas inaugurar mais uma era do mal-entendido.

Referências:

BERTEN, André. Por que Habermas não é e não pode ser contratualista. Disponível em: http://ensaiosfilosoficos.com.br/Artigos/Artigo1/Andre_Berten.pdf  Acesso em 20.7.2020.

CONSTANT, B. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista Filosofia Política, n.2, p. 1-7, 1985.

CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos Discurso pronunciado no Athénée Royal de Paris, 1819. Tradução de Loura Silveira.

Traduzido da edição dos textos escolhidos de Benjamin Constant, organizada por Marcel Gauchet, intitulada De la Liberté cliez les Modernes. (Le Livre de Poche, Collection Pluriel. Paris, 1980.)

FREITAG, Bárbara. Habermas e a Teoria da Modernidade. Disponível em: : https://portalseer.ufba.br/index.php/crh/article/download/18781/12151 . Acesso 20.7.2020

REIS, Gustavo Saboia de Andrade. A Era do Mal entendido para uma Reflexão sobre o reconhecimento e Justiça Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Itaca/article/download/588/540  Acesso em 20.07 2020.

 


[1] Habermas considera também que a ficção do Estado de natureza implica uma confusão entre bens e direitos. Com efeito, Rawls introduz, na sua concepção do indivíduo racional, a ideia que, para realizar seus fins, o indivíduo deve dispor de meios adequados. É o conjunto desses meios polivalentes que ele chama de "bens primários", meios necessários para realizar qualquer tipo de fins.

Na posição original, as partes podem descrever os direitos como uma categoria de bens entre outros. Essa atitude é tipicamente contratualista. Não se pode esquecer que para Hobbes, por exemplo, os conceitos "morais" (como os conceitos jurídicos:dever, lei, etc.) não têm significação nenhuma no estado de natureza. Da mesma maneira, Rousseau pode defender a ideia que é o contrato social que transforma uma liberdade nativa em liberdade moral.

[2] A explicação de Rawls sobre a natureza humana é realista, o que significa que não é aplicável a santos, nem a pecadores, mas “para o que os humanos são, na melhor das hipóteses, capazes de fazer, dada a sua natureza, em condições normais da vida social.”

 Os seres humanos são sujeitos racionais e morais, são conscientes do seu valor e contam com propósitos de vida dos mais variados e estão dispostas a perseguirem suas concepções do bem. Ele pressupõe que os indivíduos, no poder de sua razão e na condição de iguais, em algum momento tomarão a iniciativa de escolherem juntos os direitos e deveres fundamentais que definem as relações sociais.

O efeito do contrato é produzir uma sociedade razoavelmente “bem-ordenada”, em que todos os membros sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça e que as instituições visam atender esses princípios em vigor. Embora, admite-se que raramente existem sociedades bem-ordenadas, o caráter público da organização sugere que as pessoas compreendem a necessidade e estão dispostas a contribuir para o arranjo de uma vida cooperativa.

[3] Lembrar os motivos evidentes que levam Habermas a recusar os modelos contratualistas (I). Depois, analisarei os argumentos que defendem, no entanto, um uso do modelo da situação ideal de fala, mostrando que se trata de uma historicização do modelo contratualista (II). Enfim, vou sugerir que essa estratégia tem um

custo muito alto porque se apoia sobre uma filosofia da história que, embora não hegeliana, fica, contudo, metafísica (certamente, no sentido rawlsiano de "abrangente") (III)lembrar os motivos evidentes que levam Habermas a recusar os modelos contratualistas (I). Depois, analisarei os argumentos que defendem, no entanto, um uso do modelo da situação ideal de fala, mostrando que se trata de uma historicização do modelo contratualista (II). Enfim, vou sugerir que essa estratégia tem um custo muito alto porque se apoia sobre uma filosofia da história que, embora não hegeliana, fica, contudo, metafísica (certamente, no sentido rawlsiano de "abrangente") (III).

[4] A liberdade individual, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a sua garantia e é, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar, como os de antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a consequência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe ser arrebatada. Benjamin Constant.

[5] Enquanto o contratualismo de Locke estabeleceu duas leis da razão natural. O seu caráter humanista ultrapassou o individualismo da primeira lei da autopreservação e do direito natural à propriedade. A segunda lei da razão, após a garantia da primeira, é cuidar tanto quanto possível da humanidade.

As críticas às concepções Locke não consideraram a escassez de recursos de sua época. O contratualismo de John Rawls se aproxima muito do de Locke, apesar de que suas principais influências sejam Rousseau e Kant. Rawls estabeleceu uma ordem lexical entre os dois princípios da justiça. O direito às liberdades fundamentais e, em seguida, uma vez assegurado o primeiro direito, a distribuição maximizadora aos menos favorecidos. O princípio adequado e, o bom para os outros ecoa na teoria de Rawls.

[6] A Teoria Crítica tem a sua inspiração inicial no modelo crítico proposto por Karl Marx, o qual procurou mostrar as incongruências e déficits das formas utópicas de socialismo, bem como as análises meramente descritivas da chamada economia política clássica. Mediante o diagnóstico e   a   crítica   do   presente, ele   pretendia   apresentar   prognósticos   e   propostas   terapêuticas propiciadoras da emancipação da dominação do capital, e não propostas idealistas de sociedade e compreensões funcionalistas do capitalismo  que  apenas  colaborariam  para  a  manutenção  do status quo capitalista.

[7] Significativo das diferenças de abordagem do modelo do contrato social é o debate entre Habermas e Rawls. Apesar das afirmações de proximidade, essas diferenças são muito profundas. Não é porque há algumas convergências possíveis entre a ideia de overlapping consensus e a de esfera pública em Habermas, por exemplo, que se deve tentar uma equivalência entre os dois conceitos. Aliás isto é exatamente um ponto de desacordo. Rawls diz que a sua teoria da justiça "generaliza e leva a um nível mais alto de abstração a concepção tradicional do contrato social", isto é "a concepção bem conhecida do contrato social tal qual se encontra, entre outros, em Locke, Rousseau e Kant;

[8] Em 8 de março de 2017 O Dia Internacional da Mulher será marcado por protestos e paralisações em pelo menos 30 países. As mulheres querem chamar a atenção para temas como racismo, aborto e violência contra elas.  A ideia do protesto veio do movimento de mulheres argentinas Ni Una Menos. Em 19 de outubro do ano passado, elas foram às ruas e paralisaram as atividades para protestar contra os 200 assassinatos anuais no país em decorrência de violência de gênero. No Brasil, a principal pauta das manifestações é a proposta de reforma da Previdência apresentada pelo governo federal. A avaliação é de que as mulheres serão as mais prejudicadas com a mudança.

Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

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