Introdução
Historicamente, a luta da mulher por seus direitos é mais conhecida por uma narrativa homogênea e ocidentalizada da busca por liberdades e igualdade de gênero. Todavia, atualmente outras narrativas epistemológicas e de visão de mundo têm incorporado novas pautas, que trazem visibilidade à mulher como um grupo repleto de diversidades, e novas lutas são agregadas.
Nesse sentido, cabe destacar a luta das mulheres negras por seus direitos, uma vez que essa visão homogênea trouxe-lhes invisibilidade e não as alcançou em liberdades e igualdades intragênero. A abordagem homogênea não olha para as necessidades e especificidades das negras. As suas condições de vulnerabilidades não estão restritas às condições de gênero, biológicas, sociais e econômicas, mas também da forma e alcance das legislações e das políticas públicas.
As lutas por seus direitos têm um amplo conjunto de objetivos, tanto no que diz respeito à igualdade de gênero quanto avanços no sentido de contrapor-se: ao racismo e às múltiplas discriminações; à exclusão social, laboral e política; às variadas formas de violências; e às práticas de controle do corpo e da sexualidade. As mulheres negras assumem o papel de sujeito ativo nas demandas por direitos humanos, incorporando reforços em direção à promoção da igualdade entre as pessoas.
Organizações internacionais alertam que as mulheres negras estão mais vulnerabilizadas nesse período de pandemia de Covid-19, tanto de serem mais infectadas pela doença e quanto de sofrerem mais os agravamentos das crises econômicas e sociais que desencadeia, estão mais sujeitas às ameaças de redução ou de perdas de direitos já conquistados, além de outras violações. No dia 25 de julho comemora-se o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Oportunidade para discussão e reflexão sobre as desigualdades enfrentadas pelas mulheres negras e a situação dos seus direitos no Brasil, sob a perspectiva dos direitos humanos.
Sobre a condição de subalternidade das mulheres negras
As mulheres negras estão na base da pirâmide social, afetadas social e economicamente em diversos setores: acesso aos serviços de saúde, educação, moradia, trabalho, espaços de poder, justiça etc. Nas grandes áreas urbanas, ou nas comunidades tradicionais (quilombolas e ribeirinhas, por exemplo), as intersecções de gênero e raça impactam diretamente as vidas destas mulheres, muitas vezes interrompidas por altos índices de morte materna, doenças e casos de violência doméstica (UNFPA, 2020). Esse lugar de precariedades e subalternidade tem explicações históricas no período escravocrata colonial, e perpetua-se como seu legado através das desigualdades sistêmicas, do sexismo, do machismo, do racismo e discriminação que se manifestam em âmbitos da sociedade e do Estado.
Consoante explica Wania Sant’Anna (2006:41) “num momento de ampla mobilização do movimento de mulheres, num momento em que o movimento feminista se encontrava com o movimento de mulheres negras e soube, em 1994, compreender que era não só ter solidariedade na luta contra a discriminação racial empreendida pelo movimento de mulheres negras, mas também ter a preocupação conceitual e política”. Portanto, as mulheres negras precisam ocupar espaços sociais e políticos em equidade e justiça social, para que não sejam apenas espaços de resistência contra a discriminação e o racismo por si só. Mas espaços de cidadania, de acesso e oportunidades para o seu desenvolvimento, de respeito aos seus direitos humanos.
E é do legado histórico e cultural escravocrata-patriarcal que surge um dos pontos mais emblemáticos e críticos sobre as desigualdades sociais enfrentadas pelas mulheres negras e a situação dos seus direitos no Brasil: o trabalho doméstico. A questão racial e o mercado de trabalho brasileiro têm a nota da exclusão através da atuação estatal, principalmente pelos vieses presentes na legislação que regula o trabalho doméstico.
Segundo Mário Theodoro (2006:44-45), a legislação que garante o trabalho doméstico é completamente parcial e capenga, porque só vige dentro da casa da(o) patroa (ão). Todos os pontos que são regulamentados, são para regular a relação patroa (ão) e empregada, não existe, por exemplo, uma garantia de creche para a empregada doméstica, não existe qualquer tipo de relação de direitos garantidos. É muito mais para a(o) patroa(ão) do que para a empregada. A empregada doméstica existe porque é fundamental como sucedâneo do welfare state brasileiro. Sem ela não sairíamos de casa para trabalhar ou fazer outras atividades, porque não temos as condições de trabalho e de serviços. Ela faz o sucedâneo de um conjunto de serviços que o Estado e a própria sociedade não dão, e que, para nós, é fundamental. Essa é a capacidade do Brasil de recriar formas arcaicas, reinventar situações e desigualdades mesmo na modernidade.
Os avanços no mercado de trabalho pouco alcançaram as mulheres negras, pois a maioria permanece nas ocupações de menor valor sociocultural e salarial. As políticas em seu beneficio evoluem lentamente, o que faz com que as desigualdades sociais praticamente não se alteram para elas (IPEA, 2013:36).
As desigualdades de gênero e raça, e outras interseccionalidades, vivenciadas pelas mulheres negras acentuam a distância social entre estas e os demais grupos sociais (homens brancos, homens negros e mulheres brancas). Os efeitos destas desigualdades negam ou dificultam o acesso aos direitos durante todo o período de suas vidas, perpetuando o ciclo de iniquidades sociais.
Proposições para a melhoria dos direitos humanos das mulheres e das meninas afrodescendentes
A Organização das Nações Unidas lançou a Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024), adotada pelo Brasil. As atividades deste programa conclamam que em nível nacional, os Estados tomem medidas concretas e práticas por meio da adoção e efetiva implementação de quadros jurídicos, políticas e programas de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata enfrentados por afrodescendentes. Devem considerar em particular a situação das mulheres e meninas que experimentam discriminação em formas múltiplas e interseccionais em todas as áreas de suas vidas (UN, 2014:4-5).
Por isso, propõe que os Estados-membros adotem medidas especiais sob a forma de ações afirmativa em conformidade com as necessidades locais, tais como as seguintes sugestões:
assegurar que todas as mulheres afrodescendentes sejam livres de discriminação no emprego, incluindo abordagens das taxas particularmente elevadas de desemprego e salários desproporcionalmente baixos;
reconhecer a vulnerabilidade particular das mulheres afrodescendentes que trabalham em serviços domésticos. Os Estados devem ratificar a Convençãoda OIT sobre o trabalho digno para trabalhadores domésticos, e adotar as medidas necessárias para sua efetiva implementação;
investir fundos em educação e treinamento profissional para mulheres afrodescendentes por meio de bolsas de estudo e programas de treinamento, para melhorar as oportunidades de emprego e oferecer apoio à subsistência e treinamento;
tomar medidas para combater os estereótipos sexistas e racistas negativos e discriminatórios de mulheres afrodescendentes, em particular, tomando medidas concretas para remover todos esses estereótipos de materiais educativos e meios de comunicação populares;
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abordar a incidência desproporcional de violência contra mulheres afrodescendentes, nomeadamente o tráfico de pessoas, violência e exploração sexual, abuso doméstico e brutalidade policial; e,
adotar políticas específicas para garantir que todos os mecanismos e instituições oficiais de coleta de dados incluam instrumentos e metodologias para coletar dados que possam revelar a situação dos direitos humanos das mulheres e meninas afrodescendentes e os padrões específicos de discriminação múltipla e interseccional que enfrentam. (ONU, 2016:30-36).
Considerações finais
O Estado tem o dever de promover e garantir para todos os seres humanos condições de sobrevivência e desenvolvimento em ambiente de respeito, paz, igualdade, liberdade e justiça social. A sociedade também tem importante papel na construção de um mundo melhor, que elimine as desigualdades, as discriminações e o racismo.
De forma especial para as mulheres negras, reconhecendo-se a dívida histórica por causa da escravidão; e as múltiplas formas de discriminação e desvalorização relacionadas ao gênero, raça, etnia, classe social, trabalho, geração etc. O Estado deve operar a recuperação, adotando políticas públicas de ações afirmativas que sejam capazes de responder às suas responsabilidades em relação a estas mulheres, com eficácia e eficiência em meios e garantias pautados na perspectiva dos direitos humanos. Políticas públicas e sociais que atendam às suas demandas específicas e as valorizem, para que o racismo e as desigualdades sociais sejam superados.
Estado e sociedade podem e devem colaborar para a construção da identidade negra positiva para as mulheres, impulsionando e proliferando mudanças que articulem dignidade, direitos, oportunidades e cidadania.
Referências
BRASIL. Presidência da República. Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L[122]88.htm>. Acesso em: 21 jul. 2020.
IMPACTOS da Covid-19 na vida das mulheres negras. [on line em 22 jul. 2020]. In: Webnário #13 série "População e Desenvolvimento em Debate". Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA Brasil). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=PEwG8stgiD4&feature=youtu.be>. Acesso em: 21 jul. 2020.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA - IPEA. Democracia e desenvolvimento sem racismo: por um Brasil afirmativo. Brasília, 2013. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/IIIConapir/subsidios_debate.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. [2016]. Década internacional de Afrodescendentes 2015-2024. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2016/05/WEB_BookletDecadaAfro_portugues.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2020.
SANT’ANNA, Wania. População nas políticas públicas: raça. In: A população nas políticas públicas: gênero, geração e raça. Rios-Neto, Eduardo L. G. (org.). Brasília: CNPD: UNFPA, 2006. Disponível em: <https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/livro_cnpd.pdf >. Acesso em 03 jun.2020.
THEODORO, Mário. Questão Racial e Mercado de Trabalho no Brasil. In: A população nas políticas públicas: gênero, geração e raça. Rios-Neto, Eduardo L. G. (org.). Brasília: CNPD: UNFPA, 2006. Disponível em: <https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/livro_cnpd.pdf >. Acesso em 03 jun.2020.
United Nations – UN. [2014]. Resolution A/69/16/L.3. Resolution adopted by the General Assembly on 18 November 2014. Programme of activities for the implementation of the International Decade for People of African Descent. Disponível em: <https://decada-afro-onu.org/en/events/africandescentdecade/pdf/A.RES.69.16_IDPAD.pdf>. Acesso em: 21 jul. 2020.
Reverência: a Mirtes Renata Souza, mulher negra, mãe e trabalhadora doméstica, que de forma brusca e violenta perdeu seu filho (Miguel, de 5 anos), ao cair do nono andar de um edifício em Recife/Pernambuco.