O NOVO ARTIGO 28 – A DO CPP E O CRIME DE DESACATO
Rogério Tadeu Romano
I – O NOVO ARTIGO 28 - A DO CPP
Tem-se o artigo 28 – A do CPP:
Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
Conforme previsão expressa do art. 28-A do Código de Processo Penal, em não sendo caso de arquivamento da investigação, se o investigado tiver confessado a prática da infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal. O mesmo artigo ressalta que o acordo será proposto, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do delito.
Trata-se de um acordo de não persecução penal.
Não se confunde com a transação penal que se aplica aos crimes de menor potencial ofensiva. Nesses delitos, onde incide o artigo 28 – A do CPP, aplica-se esse acordo de não persecução penal quanto há prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos.
As infrações de menor potencial ofensivo são as contravenções penais e os crimes a que lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa (art. 61 da Lei 9.099/95)
A transação penal é uma forma de despenalização.
Com a transação penal estamos diante de um modelo penal despenalizador, que atua não só quando a pena deixa de ser aplicada, como ainda no perdão judicial, ocorrendo ainda quando a sanção é atenuada quanto a qualidade ou a quantidade da sanção criminal. Tal a lição que se tem da doutrina.
O referido artigo prevê as seguintes condições para o cumprimento do acordo, que poderão ser ajustadas cumulativa e alternativamente: reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo na impossibilidade de fazê-lo; renunciar voluntariamente aos bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; prestar serviços à comunidade por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços; pagar prestação pecuniária; cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.
Em resumo, do que se tem da doutrina no Brasil, em Portugal, dos ensinamentos oriundos da doutrina e jurisprudência na Alemanha, extraímos do princípio da proporcionalidade, que tanto nos será de valia para adoção dessas medidas não prisionais, os seguintes requisitos: a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento de fins visados; c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos.
Estar-se-á diante de um verdadeiro poder-dever que é concedido ao Ministério Público como titular de uma ação penal.
O acordo deverá ser formulado por escrito, como requisito formal.
Trata-se de uma hipótese de direito penal premial.
O art. 28-A, § 2ª, do CPP dispõe as hipóteses em que não será cabível o acordo de não persecução penal: caso seja cabível transação penal; se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; se o agente tiver sido beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração pelo acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticados contra mulher por razões da condição de sexo feminino. Aqui estamos diante de hipóteses taxativas que impedem o acordo.
Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.
A homologação pelo juiz é ato puramente declaratório e que se traduz em preclusão pro iudicato.
O termo de acordo, devidamente homologado, servirá de título executivo judicial.
Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.
Há, portanto, regras hibridas a considerar, de direito material e de direito processual penal, devendo o instituto se aplicar a partir da vigência da nova lei.
II – AS SANÇÕES PREMIAIS
No ensinamento de Miguel Reale, “assim, ao lado das sanções penais, temos sanções premiais que oferecem benefício ao destinatário, como, por exemplo, um desconto ao contribuinte que paga o tributo antes da data do vencimento” (Lições preliminares de direito. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 1981, p.75).
A premiação contida na norma, como assume parte da doutrina, não é propriamente uma sanção, mas apenas uma prestação integrante da estrutura do comando legal, ou algo completado por outra norma. Assim se coloca o desconto ao contribuinte como no exemplo acima, ou cláusula contratual que concede desconto ao devedor que pagar antecipadamente, como disse Sílvio de Salvo Venosa (Sanção premial).
O prêmio é um estímulo para o cumprimento da prestação ou de um dever jurídico e não integra o conceito de norma. Ademais, a sanção liga-se à ideia de não prestação, coerção e punição, e a terminologia sanção premial contém uma contradição em seus próprios termos, mas chama a atenção para o seu real conteúdo.
Não estaria no campo da punição, perinorma, mas da endonorma, da hipótese de conduta.
A matéria da sanção premial foi tratada por Cóssio, em sua teoria egológica do direito.
Ali Cóssio, importante jurisfilósofo argentino, estudou o direito não propriamente à luz da norma, como Kelsen, mas da conduta.
Carlos Cóssio, catedrático de Filosofia do Direito, na Universidade de Buenos Aires, fundador e impulsionador da “escola egológica do direito, assim explica o que entende por egologia do ponto de vista jurídico: “Egologia (de ego, eu, e de logos, conhecimento) significa o conhecimento do eu. Para ele, a teoria egológica do direito ´”é a ciência jurídica, precipuamente normativa, porque conhece mediante normas, não porque conhece normas, nem porque as subministra; porém, porque conhece mediante normas a conduta humana em sua interferência intersubjetiva.” Essa teoria procura harmonizar as lições de Husserl (fenomenologia), de Heidegger (existencialismo) e de Kelsen (positivismo).
Partindo da distinção entre ideal jurídico, sociologia jurídica e ciência do direito – “três territórios independentes e inequiparáveis” – concluiu Carlos Cóssio, não obstante, que “o direito não existe só, limpo e puro, sendo direito de fechada e nada mais; porém, que existe especificado em alguma daquelas quatro maneiras (faculdade, prestação, dano e sanção) que são essências específicas relativamente à essência genérica do direito... o ser do direito não está na norma; nela só está o modo de ser; a norma desempenha um papel fundado, mas constitutivo. Para saber o que é direito e o que não o é, não precisamos recorrer a nenhuma norma jurídica. Ao jurista basta encontrar-se com uma conduta em interferência intersubjetiva para ter a certeza apodítica de que se encontrou com o objeto próprio de seu interesse teórico (Teoría de la Verdad Juridica, 1954, pág. 138). É considerado uma réplica a Kelsen que reduziu o direito à norma, minimizando a conduta, enquanto a teoria egológica é “a única concepção jurídica que sabe o que fazer com as normas e o que fazer com a conduta, sem fazer perder a sua normatividade às primeiras, nem fazer perder a sua efetividade à segunda. Ambas se ubicam com unidade na mesmidade da conduta, desde que se viu que a conduta se integra com o conhecimento de si mesmo e que é normativa a natureza desse como pensamento.
A essência da norma jurídica, que é o gênero, consiste em ser um juízo: da norma jurídica, espécie de daquele, é ainda um juízo, mas um juízo disjuntivo.
Este juízo, segundo Arnaldo Vasconcelos (Teoria da Norma Jurídica, 5ª edição, pág. 149) assim se expressa:
- Dado H, deve ser P, ou
Dado ñp, deve ser S.
Daí surgem três características das normas jurídicas: a bilateralidade, a disjunção e a sanção.
BILATERALIDADE
O direito é relação jurídica.
Direitos e obrigações são termos recíprocos, de implicação mútua.
DISJUNÇÃO
A norma se expressa na forma de um juízo composto de duas partes. Numa delas, enuncia-se a prestação como resultado desejado; na outra, a sanção que será a decorrência da não realização daquele objetivo.
Na teoria egológica de Carlos Cóssio, as duas partes enunciativas da norma se integram mediante a disjuntiva ou, compondo uma estrutura única e indissociável. Dado H, deve ser P, ou dado ñP, deve ser S.
Desta forma a norma jurídica apresenta estrutura disjuntiva simplesmente porque apenas desse modo poderá traduzir as possibilidades contempladas nos momentos distintos da endonoma (a prestação) e da perinorma (a sanção). A situação coexistencial (H) e a não-prestação (ñP) constituem pressupostos de fato que colocam, de maneira alternativa, as possibilidades da prestação (P) e da sanção (S). Essas possibilidades se expressam pelo verbo dever ser, porquanto só assim se poderá figurar a liberdade que se efetiva na conduta.
As possibilidades contempladas nas distintas partes da norma se dirigem, a primeira, ao devedor, e a segunda, ao credor. Em razão da intersubjetividade do Direito, a liberdade, que se distingue, é a de ambas as partes da relação jurídica.
No seu juízo disjuntivo, Cóssio disse que norma e direito não se identificam, sendo este a conduta humana em sua interferência intersubjetiva. Assim se diz que é uma conduta compartida, e aquela, o modo de pensamento capaz de pensar referida norma.
A teoria egológica atribui à norma a finalidade de enunciar, como devendo-ser, uma conduta, ou melhor, de representar uma conduta em seu dever-ser. Cóssio (La teoria egológica del Derecho y el Concepto Jurídico de liberdad, pág. 741) demonstrou, através de argumentos de ordem diversa, que a tese imperativista não é a correta interpretação do Direito.
Para Cóssio uma norma é estritamente uma significação.
No plano vivencial ou noético – o das intuições puras – tem-se que o juízo e a norma são formalizáveis, reduzíveis a formas. Para o juízo teríamos a forma simbólica “ S é P e, para a norma, “Dado S deve ser P”.
Questão aberta para a teoria egológica da norma está para se saber se na estrutura disjuntiva dela há lugar para a sanção premial. Estaria na endonorma ou na perinorma?
Bem resumiu Arnaldo Vasconcelos (obra citada, pág. 89) que o prêmio, decorrente que é de uma conduta lícita, não poderia estar senão na endonorma, a saber, no enunciado da prestação. A norma contempla uma disjunção, uma alternativa. Assim o prêmio não poderia ser resultante de não-prestação ou ilícito.
III – CONCLUSÕES COM RELAÇÃO AO NOVO ARTIGO 28 – A DO CPP
Tem-se então do novo artigo 28 – A do CPP:
Artigo 28-A, inciso III e IV, e §§§ 5º, 7º, 8º do Código de Processo Penal (Acordo de Não Persecução Penal): (1) A possibilidade de o juiz controlar a legalidade do acordo de não persecução penal prestigia o sistema de “freios e contrapesos” no processo penal e não interfere na autonomia do membro do Ministério Público (órgão acusador, por essência); (2) O magistrado não pode intervir na redação final da proposta de acordo de não persecução penal de modo a estabelecer as suas cláusulas. Ao revés, o juiz poderá (a) não homologar o acordo ou (b) devolver os autos para que o parquet – de fato, o legitimado constitucional para a elaboração do acordo – apresente nova proposta ou analise a necessidade de complementar as investigações ou de oferecer denúncia, se for o caso;
No julgamento da MC na Adin 6.298DF, o ministro Luiz Fux, relator, assim disse:
“Em análise perfunctória, e sem prejuízo de posterior posicionamento em sede meritória, não antevejo o requisito do fumus boni iuris para o deferimento do pedido cautelar de suspensão dos dispositivos questionados. Nesta análise preliminar, não observo incompatibilidade com os dispositivos e princípios constitucionais alegados, tais como “a autonomia do Ministério Público e a imparcialidade objetiva do magistrado”. Trata-se de medida que prestigia uma espécie de “freios e contrapesos” no processo penal (art. 28-A, § 5º). A despeito do que argumentado pela parte autora, a autonomia do membro do Ministério Público (órgão acusador, por essência) permanece plena, vez que ao magistrado cabe, no máximo, não homologar o acordo. É dizer: o magistrado não pode intervir na redação final da proposta em si estabelecendo as cláusulas do acordo (o que, sem dúvidas, violaria o sistema acusatório e a imparcialidade objetiva do julgador). Ao revés, o juiz poderá somente (a) não homologar ou (b) devolver os autos para que o parquet – de fato, o legitimado constitucional para a elaboração do acordo – apresente nova proposta ou analise a necessidade de complementar as investigações ou de oferecer denúncia, por exemplo (art. 28-A, § 8º).”
Esse o caminho a traçar com relação a tal dispositivo legal.
IV – UM EXEMPLO CONCRETO
Segundo a Isto é, em 19/7, flagrado sem máscara enquanto caminhava na praia em Santos no dia 18 de julho do corrente ano, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, do Tribunal de Justiça de São Paulo, chamou de analfabeto um guarda municipal que lhe pediu que colocasse a máscara exigida em locais públicos durante a pandemia do novo coronavírus.
Em vídeos que circulam nas redes sociais, o magistrado aparece ligando para o Secretário de Segurança Pública do município, Sérgio Del Bel, e ainda rasgando e jogando no chão a multa aplicada pela Guarda Municipal de Santos por descumprimento de decreto municipal. Antes o desembargador chegou a insinuar que jogaria a atuação na cara do guarda municipal.
As gravações mostram a abordagem do desembargador desde o início, quando um guarda municipal pede que o mesmo coloque a máscara. Em resposta, o magistrado diz que por hábito não usa.
O guarda então diz que por decreto, o desembargador teria sim que utilizar a máscara. “Decreto não é lei”, diz Siqueira. “Você quer que eu jogue na sua cara? Faz aí a multa”, segue o desembargador.
O guarda afirma então que vai registrar a autuação e em resposta o desembargador diz que vai ligar para o Secretário de Segurança Pública do município, Sérgio Del Bel. Siqueira chega ainda a afirmar que o guarda não é policial e não tem autoridade nenhuma.
No caso concreto, assim, poderemos ter o caso do Desembargador Siqueira, do TJSP, que, consoante prova documental, sustentada em gravação feita, cometeu o crime de desacato a fiscal do Município de Santos que o cobrava por não utilização de máscaras higiênicas, medida exigida diante de medidas de poder de polícia diante da pandemia da covid-19.
Essa proposta de acordo deverá ser feita perante o Superior Tribunal de Justiça, pois se está diante de uma prerrogativa de foro concedida à luz do artigo 105, I, a, da Constituição Federal, independente de eventual ação ordinária de indenização por danos morais que poderia ser ajuizada pelo agente público ofendido, na comarca de Santos.
Na órbita administrativa, caberá ao Conselho Nacional de Justiça aplicar as sanções cabíveis previstas na Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN) e no Código de Ética da Magistratura.
Faltou ao magistrado urbanidade. Mas ele não estava, no caso, exercendo a jurisdição, poder-dever do Estado, por atos jurisdicionais. Agia como um cidadão e como tal cometeu crime de desacato.
Observe-se que um eventual “pedido de desculpas” não retira a existência de ilícito, mas serve de arrependimento posterior, um pressuposto de atenuação de eventual pena.
Tem-se, pois, o crime de desacato.
Prevê o artigo 331 do Código Penal o crime de desacato com a seguinte redação: ¨Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela¨. A pena é de seis meses a dois anos de detenção ou multa. Trata-se de crime de menor potencial ofensivo.
Assim a objetividade jurídica é o interesse em garantir o prestígio dos agentes do Poder Público e o respeito devido à dignidade de sua função, tendo-se em vista que a ofensa que lhes é irrogada, em sua presença, no exercício de sua atividade funcional ou em razão dela, atinge, em verdade, a própria Administração Pública. A lição de Heleno Cláudio Fragoso ((Lições de Direito Penal, volume II, 5ª edição,pág. 461) é aqui repetida, no sentido de que não ha injúria, difamação ou desrespeito ao funcionário (que seria, eventualmente, crime contra a pessoa), mas atentado a um interesse geral, relativo à normalidade do funcionamento da administração pública. Mas, para que se possa afirmar a presença do funcionário, deve ele encontrar-se no local onde a ofensa é praticada. Não se exige que o ofendido veja o ofensor, nem que perceba o ato ofensivo, bastando que lhe fosse possível conhecimento diretamente do fato.
A censura justa mesmo que áspera não tipifica o crime. Portanto, não constitui desacato a critica e mesmo a censura que sejam veementes, desde que não se apresentem de forma injuriosa. Assim já se entendeu que não constitui desacato, a mera censura ou crítica, ainda que veementes e exaltadas, sobre a atuação de servidor público, quando não há adjetivação ofensiva (RT 695/334).
Não há no crime de desacato apenas injúria, difamação ou desrespeito ao funcionário, mas atentado a um interesse geral que diz respeito à normalidade do funcionamento da administração pública.
Trata-se de um crime de expressão que representa a manifestação do pensamento por palavras ou gestos.
O núcleo verbal do tipo penal é desacatar, ofender, vexar, humilhar, espezinhar, menosprezar, agredir o funcionário, ofendendo a sua dignidade ou o decoro da função. É a ofensa direta e voluntária à honra, ao prestígio do funcionário público com a consciência de atingi-lo no exercício ou por causa de suas funções, tutelando-se a dignidade da Administração Pública.
É crime formal de forma que o delito está consumado com a prática da ofensa, tal como ocorre nos crimes contra a honra. É irrelevante para a sua consumação o pedido de desculpas por parte do agente. O crime consuma-se no momento e no lugar em que o agente pratica o ato ofensivo ou profere as palavras injuriosas, desde que a ação se realize em presença do ofendido. Bem exposto por Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 464) que as consequências da conduta delituosa são irrelevantes, no que concerne ao momento consumativo (crime formal), não cumprindo indagar se o funcionário se sentiu ofendido ou se foi abalado o prestígio da função que exerce, não se exigindo a publicidade da ação nem a presença de outras pessoas. Mas se exige que a qualidade de funcionário público seja atual. Aliás, a publicidade da ação será levada em conta na dosimetria da pena. Entende-se, por outro lado, possível a tentativa, salvo nos casos de ofensa oral, como aduziu Magalhães Noronha (Direito Penal, volume IV, pág. 423).
Pode o desacato constituir-se em palavras ou atos. Assim é desacato: não tomar conhecimento da presença do agente público, do uso de sarcasmo, da injuria, do achincalhe brutal, nas ofensas morais seguidas de agressão física (RT 565/343), no insulto seguido de um tapa, na tentativa de agressão, no uso de palavras de baixo calão (RT 524/363), na gesticulação desrespeitosa, nas palavras ou atos que espezinhem o funcionário público, na forma grosseira, arrogante, de se dirigir ao funcionário público.
Nos delitos de desacato, o sujeito passivo é o Estado. Há, pois, crime de desacato se o agente destrata funcionário, no exercício do cargo, ou fora da função, mas em razão dela e na prática do ato que diz respeito ao interesse público (RT 510/336).
O elemento subjetivo é o dolo na intenção de desmoralizar o agente público.
Eis aqui a conduta delituosa praticada que autoriza a utilização do artigo 28 – A do CPP.
A Quinta Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu, em dezembro de 2016, que desacato a autoridade não pode ser considerado crime porque contraria leis internacionais de direitos humanos. Os ministros votaram com o relator do caso, Ribeiro Dantas. Ele escreveu em seu parecer que "não há dúvida de que a criminalização do desacato está na contramão do humanismo porque ressalta a preponderância do Estado --personificado em seus agentes-- sobre o indivíduo". "A existência de tal normativo em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito preconizado pela Constituição.
Segundo o site do STF, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF decidiu, por maioria de votos, que o crime de desacato foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. A maioria dos ministros acompanhou o voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, pela improcedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 496, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para questionar o artigo 331 do Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940).
A entidade argumentava que o dispositivo, que tipifica o delito de desacato a funcionário público no exercício da função ou em razão dela, não especifica a conduta e traz uma normatização extremamente vaga. Como decorrência dessa imprecisão, o tipo penal estaria sendo usado para reprimir a liberdade de expressão de cidadãos, que ficariam intimidados a não se manifestar diante de condutas praticadas por agentes públicos. Ainda de acordo com a OAB, a norma seria incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que tutela a liberdade de expressão.
A matéria foi objeto de análise na ADPF 496.