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Ensino jurídico:

procura-se!

Agenda 14/05/2006 às 00:00

INTRODUÇÃO

            Este artigo propõe-se, de início, a realizar um ensaio sobre o que vem a ser uma relação tradicional de ensino, a forma como ela está calcada na reprodução de conhecimentos imobilizadores e mantenedores da situação social vigente; em um segundo momento, propõe-se a examinar o efetivo caráter pedagógico do ensino jurídico; e, por fim, objetiva analisar alternativas para a consecução de direitos fundamentais a partir de propostas pedagógicas que concebam uma reaproximação entre professor e aluno dentro de um espaço de autonomia.

            O estudo do ensino jurídico implicou, como não poderia deixar de ser, uma tentativa de colaborar com as reflexões sobre o que se ensina e para que(m) se ensina nos cursos de direito hoje, partindo do contexto social, econômico, político e epistemológico em que estão inseridos, verificando suas funções e seus sintomas, para que se possa compreender se há ou não uma crise instalada no seu interior. Em especial, uma crise de paradigmas, uma crise de uma visão particular da realidade.

            Nessa linha, procura-se demonstrar que, se de fato existe uma crise instalada no ensino jurídico, ela não é privilégio deste, haja vista que constitui uma crise do próprio ser humano enquanto ser no mundo e não apenas no campo da chamada Ciência. Existe sim uma crise de percepção do que se convém chamar de realidade, traduzida em uma visão mecanicista proveniente do pensamento de Descartes.

            Com efeito, e especificamente no que tange ao ensino do direito, este vem desempenhando com maestria um caráter mitológico no espaço político. Primeiro, porque incute a idéia de que transmite conhecimento aos futuros operadores jurídicos, e segundo, porque sugere a existência de um ordenamento normativo completo e coerente que deve ser utilizado, em grande parte, na função realizadora da Justiça, ou seja, a de fazer ensejar (construir) modos de estabelecimento de verdades úteis à consecução daquela.

            É o quanto basta para estas considerações inaugurais, que revelam o substrato deste pequeno ensaio que, longe de retratar "a realidade", busca simplesmente desvelar um sentido, a transitoriedade dos pensamentos.


ENSINO JURÍDICO, ONDE ESTÁ VOCÊ?

            Algumas indagações, por vezes, surgem quando se reflete sobre o ensino jurídico, quais sejam: existe a possibilidade de um ensino particular do direito, de um modo específico de educar alguém, de formar alguém para exercer uma atividade profissional ligada à área jurídica? E, se efetivamente existe essa possibilidade, ela está inserida em que tipo de prática educacional? E se essa prática pedagógica é compartilhada por outras áreas do conhecimento, divergindo apenas quanto ao conteúdo, será que, por isso, pode-se falar que existe somente uma forma de ensinar, de educar?

            A partir de um certo lugar, impõe-se dizer que o homem é criado dentro de uma lógica que o leva a dividir o mundo em objetos isolados, percebidos como sólidos e permanentes, abandonando qualquer idéia de transitoriedade e mutabilidade. Isso vem acontecendo desde sempre, desde o surgimento da própria linguagem, pois com ela o ser humano passou a construir abstrações, as quais vieram a compor um verdadeiro emaranhado de classificações que, com o passar do tempo, tornaram-se mais e mais complexas. Criou-se um mundo compartimentado, como se ele fosse constituído de partes separadas. Nega-se quotidianamente a totalidade em detrimento de uma visão fragmentada de mundo, o que propicia a crença na existência de dados de uma realidade objetiva. Em virtude disso, crê-se que o direito faz sentido por si mesmo e que, por tal razão, pode ser isolado pedagogicamente como área estanque do conhecimento.

            Fritjof CAPRA alerta que, para a superação dessa ansiedade cartesiana, é preciso se começar a pensar sistemicamente, mudando o foco conceitual de objetos para relações, pois apenas assim há chance de se compreender que a identidade, a individualidade e a autonomia não implicam separatividade e independência, cujo sentido desta última é político e não científico (1996:230).

            Por outro lado, essa dimensão cartesiana do saber não é de se estranhar. Ela tem servido de instrumental de dominação político-ideológica no seio dos cursos de direito no Brasil que, desde a sua criação, em 1827, sempre visaram a atender às necessidades das elites políticas, sendo o acesso a eles restrito à classe mais abastada financeiramente.

            Por esse motivo, a metodologia predominante sempre foi a reprodução de conteúdos por professores, através de aulas desprovidas de críticas, no estilo "código comentado" (ao gosto da Escola da Exegese), bem conhecida dos acadêmicos de direito. E não é raro atribuir-se à incansável repetição dessa metodologia, dita jurídico-pedagógica, como um dos motivos da crise presente no ensino jurídico.

            A estrutura do ensino universitário, via de regra, é inquisitiva e imobilizadora, fruto da própria visão de mundo, já que coloca o professor-educador como o detentor das verdades necessárias ao ensino "adequado", cuja única possibilidade de espelho são seus pares, ou seja, os iguais a ele, os que, na mesma posição, detêm o poder do saber. E, no outro pólo, encontra-se o aluno, que lá está tal qual uma tábula rasa, uma vasilha, um recipiente, pronto para engolir, para se deixar encher de conhecimentos (verdades perfeitas e acabadas), para permitir a ocupação de sua mente pelos axiomas (valores) do sábio, sem nada poder problematizar. O que é permitido, e até desejado, por ambos os pólos dessa pseudo-relação, é apenas tirar dúvidas a respeito daquilo que não se conseguiu apreender perfeitamente acerca do conteúdo que lhe foi transmitido. E essa estrutura simbólica totalitária é encontrada em todas as instituições da sociedade, mantendo uma sinistra "troca de idéias" entre si e com a Academia, em que os alunos aprendem e reproduzem a lição, em um extraordinário processo de interação.

            Paulo FREIRE atribui a esse tipo de educação o nome de "bancária", visto que:

            "Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção ‘bancária’ da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens (...). Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também "(1998:58)

            Maria da Graça Nicoletti MIZUKAMI argumenta que o fenômeno educativo não é uma realidade acabada do qual se é permitido e possível conhecer todos os seus aspectos. É sim "um fenômeno humano, histórico e multidimensional" (1986:01). E há diferentes maneiras de aproximação desse fenômeno educativo, sendo que, de acordo com a abordagem do processo ensino-aprendizagem, destaca-se um ou outro aspecto de tal fenômeno.

            Para a referida autora, as teorias do conhecimento podem ser consideradas conforme três características: primado do sujeito, primado do objeto e interação sujeito-objeto. E a interpretação do fenômeno da própria vida, do mundo em que vivemos, depende da posição epistemológica adotada face ao sujeito e ao meio.

            Em situações brasileiras, acredita-se com MIZUKAMI que foram cinco tipos de abordagens pedagógicas que influenciaram a formação dos professores: a tradicional, a comportamentalista, a humanista, a cognitivista e a sócio-cultural. E por não ser a proposta deste texto, deixa-se de trabalhar cada uma dessas abordagens individualmente, limitando-se à simples referência.

            É notório que o ensino denominado tradicional predomina na prática educacional brasileira, inclusive no ensino jurídico, visto que o professor que sabe, e que detém informações, transmite esse conhecimento aos alunos que ainda não sabem. "O conhecimento, grande parte das vezes, provém da autoridade ou do professor ou do livro-texto (quase sempre deste último). Raramente o conhecimento é redescoberto ou recriado pelo aluno, continuando, portanto, desvinculado de suas necessidades e interesses" (1986:113-4). Diante desse quadro, deixa de existir uma prática autônoma do aluno visando à sua aprendizagem, residindo aí o divisor de águas entre o ensino tradicional e aquele chamado de ensino renovado.

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            Nas palavras do professor WARAT, "a versão cartesiana dos processos educacionais facilita a reprodução e a conservação de uma forma totalitária de sociedade, não levando em conta a relação desejo-saber e o caráter lúdico das verdades". E ele vai além, afirmando que não se deve "perder de vista a necessidade de procurar uma relação mais rica com a razão, uma razão que seja capaz de denunciar o substrato de desumanização que acompanha a razão instrumental". Que é preciso perceber "que nenhuma verdade perdura historicamente se não é capaz de provocar a subversão do saber que a fundamenta" (1997:13).

            Nessa linha de raciocínio, entende-se ser o espaço do ensino jurídico, desde sempre, um espaço reacionário, transmissor da idéia de neutralidade, de saber apolítico e, conseqüentemente, de uma prática jurídica apolítica, colocando diante dos alunos uma realidade asséptica de trabalho ou, pelo menos, a existência dessa possibilidade, como se o ser humano pudesse desvencilhar-se de seus valores, de suas ideologias, na sua relação com o mundo e com os outros; como se o ser humano pudesse viver, sob algum ângulo, de forma neutra. Mas ocorre que, sem dar uma forma, um sentido, nada existe, pois, ao mesmo tempo em que se compreende o mundo a partir do que acontece, só acontece aquilo que, de alguma forma, é compreendido.

            Obviamente, há educadores jurídicos que buscam incessantemente uma prática democrática na sala de aula, uma prática progressista, não discriminatória e não elitista, que vê o espaço do ensino jurídico como um espaço para uma releitura constante, no sentido barthesiano [01] do termo. E a busca dessa releitura das aulas é uma busca política, de um pensar político, em um lugar político (lugar de conflito, de diferença), onde o professor necessariamente deve expor-se, mostrar-se, revelar o produto inacabado que é, e não se esconder atrás das verdades dos livros. Afinal, é-se constituído também por aquilo que os outros vêem e pensam, não havendo como escapar do fato de que se é signo e, portanto, linguagem. Por tal motivo, não há como o professor fugir do controle, da seleção da sua fala.

            FOUCAULT diz que existem na sociedade procedimentos de exclusão, e o mais evidente é a interdição, ou seja, "não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa" em razão de tabu do objeto, tais como a sexualidade e a política, que revela a sua ligação com o desejo e com o poder. E, por isso, o discurso sobre esses objetos só pode ser pronunciado por quem de direito e conforme ritual específico, ou seja, só pode revelar um discurso da verdade (1996:09).

            Acredita-se, portanto, que uma das formas de efetivação da cidadania é através da linguagem, subvertendo a estrutura juridicista mitificada de igualitária e neutra, por uma estrutura emancipatória que consiga enxergar as desigualdades sócio-econômicas que criam a realidade desumana das camadas espoliadas de direitos fundamentais que vivem à margem da sociedade, excluídas dos processos de criação e formalização de direitos.

            Eis é a razão do rompimento. É preciso dar-se conta da importância de se denunciar a incompletude do mundo e de si mesmo. O mundo não é um dado, ele não é, ele está sendo. É uma possibilidade, não uma inexorabilidade. Cada pessoa tem a capacidade de mudar essa realidade na qualidade de efetivo sujeito deste mundo, e não de mero espectador. Negar isso é negar a própria história ou construir-se a idéia de que se está na simples condição de objeto dela.

            Como diz Paulo FREIRE, "não é na resignação mas na rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos" (1999:87). E a assunção enquanto sujeitos é incompatível com a postura de detentor de verdades e de transmissor de conhecimento. Ensinar não é transmitir conhecimento, é dialogar, é instigar, é plantar curiosidades no aluno, é saber aprender, é intervir no mundo.

            Os cursos jurídicos, com raras exceções, têm servido como formadores de intérpretes dogmáticos da lei, de aplicadores do direito sem capacidade crítica acerca da legislação que lhes é posta, coibindo severamente a espontaneidade, como se o direito fosse um conhecimento estático, um saber em si, que pode ser preso, capturado, e não um produto dialético das relações sociais como pensou LYRA FILHO. E desconhecer essa qualidade do direito é negar um espaço democrático à cidadania, é perpetuar a exclusão social, distanciando-se progressivamente do ideal de sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos pretendida no preâmbulo da Constituição.

            Isso decorre do fato de que a idéia de dogmática jurídica, a partir de sua concepção como paradigma científico, segundo Vera ANDRADE, está identificada com a própria ciência do direito, que tem por objeto o direito positivo vigente em um dado tempo e espaço e, por tarefa metódica (imanente), a construção de um sistema de conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna, cuja finalidade é ser útil à aplicação das leis (1996:18). Assim, aduz ANDRADE, a dogmática jurídica estende-se da comunidade científica à aplicação do direito, passando, necessariamente, pelo ensino jurídico, cumprindo, enquanto agência fundamental, no prolongamento do corpo científico, uma função pedagógica de sustentação de sua reprodução. Portanto, as escolas de direito acabaram por se constituir em verdadeiras instituições por excelência de reprodução do saber dogmático, sendo o "lugar nobre da socialização jurídica e criando as condições para um tipo de alienação específica: a alienação do jurista" (WARAT, 1982).

            Apesar desse caráter nefasto, a dogmática continua sendo a ideologia dominante no mundo jurídico. Daí o seu estudo não poder ser desprezado. Todavia, deve-se esmiuçá-lo profundamente, desconstruí-lo, a fim de permitir a desmistificação de seu discurso, desnudando a sua função política, principalmente no que diz respeito à interpretação da norma jurídica – aí incluídos os princípios – que se nos apresenta unívoca e sob um manto de neutralidade. Por tal motivo, é de se começar a questionar o caráter científico (de verdade) do discurso jurídico, visto que isso implicará inexoravelmente um questionamento da própria dogmática, abrindo em todos, estudantes e operadores jurídicos, a possibilidade de vislumbrar uma concepção do direito menos mi(s)tificadora e, conseqüentemente, mais democrática.

            Sob certo enfoque, pode-se dizer que o direito é utilizado pelo Estado como um dos instrumentos que, dentro da sociedade, omite e encobre as diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais existentes. Ele é uma das formas mais eficazes de controle, usadas tanto para legitimar, através de normas positivas e procedimentos formais, calcados retoricamente na igualdade e na liberdade, a existência de uma sociedade de efetiva desigualdade e extremamente autoritária, quanto para gerar a expectativa da construção de uma sociedade justa e democrática (1993:92).

            Diz Horácio Wanderlei RODRIGUES que um dos grandes mitos contemporâneos é o de que o direito está assegurado a partir do momento em que se concretiza através de um texto escrito. E o Estado de direito surge como o garantidor e o fiador da ordem jurídico-democrática. Afirma, ainda, RODRIGUES que a relação entre legalidade e democracia liberal é falsa e omite o fato de que ambos garantem o sistema econômico capitalista, impedindo a efetivação de uma justiça social. Encobre, ainda, que é esse mesmo Estado de direito burguês que, em verdade, garante os direitos do capital e do trabalho, não deixando à mostra que ele também regulamenta os instrumentos que permitem o seu próprio controle. Destarte, "o discurso jurídico é um discurso mítico porque faz crer, de maneira acrítica e irreal, que a sua simples positivação tem valor de garantia efetiva dentro do estado democrático" (1993:95-6).

            Na esteira desse paradigma político-ideológico do ensino do direito, se há crise instalada no ensino jurídico, ela está aliada, e não pode ser dissociada, da crise do modelo sócio-econômico capitalista, uma crise de legitimação; e o ensino do direito, como fonte de conotação política, é sistematicamente utilizado para sustentar a ideologia dominante, através de um discurso versado na iconolatria.

            "Exemplo disso é a crença equivocada gerada pelo discurso democrático-liberal de que o Estado se autolimita e garante direitos através de sua simples positivação. Na prática, em muitas situações concretas, o texto legal positivado transforma-se apenas em um discurso formal através do qual ele, teoricamente, impõe-se limites, ao mesmo tempo em que assume o compromisso de efetivar os direitos enumerados. Na prática esse jogo retórico serve como forma de sua própria legitimação e do sistema político-econômico dominante. Ele omite a natureza de classe do próprio Estado e o fato de que este, na realidade, restringe o Direito e não a sua ação.

            Outro exemplo é o desvio de atenção do econômico e do político, transferindo-a para o Direito. Em muitos momentos o discurso jurídico mostra os problemas sociais como questões de ordem legal, negando, em grande parte, a sua base político-econômica. É o que ocorre contemporaneamente com a situação da criminalidade e a proposição da pena de morte. O discurso jurídico associado à idéia de estado de direito democrático permite a busca da resposta para a crise via Direito, encobrindo a necessidade de soluções econômico-sociais" (1993:97)

            Portanto, crise é uma palavra destituída de uma significação de base, um estereótipo, e implica dizer que é um termo por demais comprometido eticamente, pois esconde um problema que, no mais das vezes, não está vinculado ao objeto qualificado pelo termo, mas que serve estrategicamente para desqualificá-lo, visando a esconder um problema maior, o qual, no caso do ensino jurídico, é a própria estrutura da sociedade em que se vive: classista, racista, patriarcal e espoliativa.

            Observando isso, afirma-se que, enquanto função não declarada dos cursos jurídicos no Brasil, tem-se a de auxiliar, na qualidade de instância de reprodução simbólica das crenças, valores e preconceitos jurídico-políticos do liberalismo e do positivismo formalista, a manutenção do status quo político, econômico e social (1993:109).

            Nessa perspectiva, aos operadores do direito – advogados, defensores públicos, juízes e promotores – cabe a utilização do ordenamento jurídico como instrumento de transformação social e de garantia da democracia, campo fértil da cidadania como direito a ter direitos. E aos professores dos cursos jurídicos cabe utilizá-lo como instrumento de construção dessa verdadeira cidadania, buscando produzir um saber crítico sobre o Estado, o direito e a sociedade.

            A prática da cidadania pelos operadores do direito, antes de qualquer coisa, deve ser uma prática política pelos direitos do homem, procurando vencer a linguagem fascista montada pela ideologia da dogmática que nega a pluralidade e desumaniza o homem, retirando-lhe a solidariedade e a capacidade de compreensão individual do mundo, e em troca implantar uma linguagem plural, sob a ótica da intertextualidade, permitindo o descongelamento legal de suas ações, a fim de absorver, pela mediação, uma considerável parte de conflituosidade contida e mal resolvida no meio social.

            Para WARAT, "as possibilidades de contar com sujeitos mutantes do ofício jurídico dependem de uma substancial alteração das condições do ensino jurídico", colocando a política – enquanto espaço de autonomia da sociedade – como o caminho para o homem reencontrar-se com a vida.

            O pensador argentino acredita, ainda, que através da pragmática, parte da semiótica que estuda a relação dos signos com os usuários, é possível alcançar-se a compreensão de que a ideologia é um fator indissociável da estrutura conceitual explicitada nas normas jurídicas, a qual revela-se um instrumento muito útil para se descobrir as conexões entre as palavras da lei e os fatores políticos e ideológicos que produzem e determinam suas funções na sociedade, "mostrando como a identificação empirista entre descrição e realidade é uma forma de despolitização-politizadora do discurso científico, que cria um efeito de inquestionabilidade e realidade sobre o saber" (1995:47).

            A partir daí, abre-se a possibilidade da formação de juristas críticos que rompam a preocupação neopositivista de estabelecimento de uma condição semântica do saber científico do direito, e que possam colaborar para o surgimento de uma nova sociedade política no cerne da sociedade civil, não necessariamente no lugar de oposição ao Estado e à economia, mas com o intuito de preservar sua autonomia e de exercer influência nas esferas político-administrativas e econômicas. E para que isso ocorra com sucesso, é forçoso repetir-se, os operadores jurídicos e os agentes do ensino do direito deverão ser protagonistas, transgredindo as utopias simbolicamente construídas como a solução para todos os males e ocultamente fracassadas. E essas transgressões, como o próprio nome indica, são plurais, além de contraditórias e permanentes. Tem-se aí o espaço da democracia, o espaço do conflito.

            Os conflitos de interesse e as diferentes leituras do mundo deverão estar sempre presentes, e é para assegurar o direito à diversidade que se deve lutar, com igualdade de condições para todos, livres para navegar em mares calmos ou bravios, resgatando a maneira crítica e criativa de viver, bem longe das ortodoxias, das univocidades, dos olhares monológicos que buscam aprisionar corações ingênuos em sentimentos alheios, retirando a paixão como forma de ação política, para facilitar o controle.

            BOURDIEU & PASSERON, em tese que merece destaque, mencionam que não há ação pedagógica que não seja objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbítrio cultural, seja ela difusa, familiar ou institucional. E, por arbitrário cultural, entende-se os sistemas de relações de força ou de sentido entre grupos ou classes, conveniente a toda formação social.

            Acrescentam eles que a ação pedagógica, em particular a escolar, é caracterizada pela reprodução da cultura dominante, reproduzindo, por isso, "a estrutura das relações de força, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima" (1982:20-1). E, em outro sentido, a ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica na medida em que impõe e inculca significações determinadas com a função de reproduzir a seleção arbitrária que um grupo ou uma classe opera objetivamente em e por seu arbitrário cultural. E esclarecem que a seleção de significações é arbitrária porque não correspondem a qualquer princípio universal relativo à natureza, seja das coisas ou da espécie humana, mas às condições sociais existentes.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

            À guisa de conclusão, coloca-se para reflexão a questão de que tipo de educação se busca e qual a relação com a cidadania e com os direitos humanos pretende-se seja a predominante? E ainda, qual a concepção pedagógica que hoje prevalece no senso comum teórico e como ela se reproduz através do sistema dominante, subtraindo a possibilidade de uma leitura plural do saber?

            Complementarmente, deve-se indagar também acerca do lugar reservado, no processo de positivação, à participação dos cidadãos, ou melhor, da existência da possibilidade de criação e ocupação de um espaço verdadeiramente público numa sociedade estruturada pelo direito, e, em que medida a formalização do direito pela lei poderia resultar dos anseios sociais.

            Traçada essa linha de problematização, vislumbra-se uma sutil e eficaz forma de controle embutida no vetusto, mas não decadente, sistema de ensino, que, por esse ponto de vista, tem revelado nitidamente o seu aspecto funcional de manutenção do status quo, de reprodução e recrudescimento das relações de poder na macroestrutura.

            Logicamente, por tudo que foi ponderado, é preciso audácia para que um profissional que se ache comprometido com a busca de uma sociedade mais justa e igualitária faça brotar, do mundo das idéias para o mundo da edificação, um processo político-pedagógico criador, que rompa no essencial com a predominante (ausência de) percepção da realidade que bloqueia a criação, a imaginação, a liberdade, o espaço de conflito, enfim, que poda todo e qualquer tipo de diferença.

            Acredita-se que este artigo serve, mesmo que a título precário (porque inserido em um eterno processo de renovação intelectual) como a materialização de um desabafo. Um desabafo que é fruto do inconformismo e da indignação diante da forma e do tipo de saber que é "distribuído" nas escolas de direito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

            1. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Dogmática jurídica: escorço de sua configuração e identidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996.

            2. BARTHES, Roland. Aula. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

            3. BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean Claude. Fundamentos de uma teoria da violência simbólica. In: A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. Livro 1, p. 15-75.

            4. CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução de Newton R. Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996.

            5. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

            6. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

            7. ______. Pedagogia do oprimido. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

            MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. Ensino: as abordagens do processo. São Paulo: EPU, 1986.

            8. RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1993.

            9. WARAT, Luiz Alberto. Dilemas sobre a história das verdades jurídicas – tópicos para refletir e discutir. Seqüência, Florianópolis, n. 6, p. 97-113, 1982.

            10. ______. Introdução geral ao direito I: interpretação da lei - temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1994.

            11. ______. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995.


NOTAS

            01

Vem de Roland Barthes, filósofo e semiólogo francês que destacava a importância da "intertextualidade", o texto do leitor sobre o texto do autor.
Sobre o autor
Antonio Coêlho Soares Junior

Promotor de Justiça do Estado do Maranhão. Doutorando em Sistemi Punitivi e Garanzie Costituzionali pela Università degli Studi Roma Tre. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Assistente do Curso de Direito da Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOARES JUNIOR, Antonio Coêlho. Ensino jurídico:: procura-se!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1047, 14 mai. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8423. Acesso em: 23 dez. 2024.

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