1 – ASPECTOS GERAIS DA USUCAPIÃO
O primeiro capítulo deste trabalho é destinado a evolução histórica e conceitos essenciais para compreensão do instituto da Usucapião, possibilitando a conceituação e compreensão do mesmo.
A Usucapião baseia-se no campo de estudos dos direitos reais, mantendo relação direta com os conceitos de posse e de propriedade, uma vez que se trata de um dos modos de aquisição da propriedade.
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- EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA USUCAPIÃO
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No Direito Romano, a usucapião podia ser avistada, desde o período arcaico da civilização romana, como forma de aquisição da propriedade pela posse prolongada. Assim, ao ser implementado o instituto da Usucapião na legislação Romana, este só poderia ser usufruído pelo cidadão romano, já que os estrangeiros não utilizavam os direitos ordenados iuscivile1.
A princípio não eram muitos os critérios para que se pudesse conseguir o bem por meio de usucapião, bastando que o seu objeto não fosse obtido por meio do furto, ou que, no caso de bens imóveis, a posse tenha sido ocasionada de maneira justa. Para os bens imóveis, a usucapião aconteceria em dois anos, e para os bens móveis, em um ano2. Neste caso, o que se desejava era suprimir uma incerteza quanto ao titular do domínio, ocasionando a perda do bem para o proprietário inerte3.
Á procura de um maior aperfeiçoamento jurídico, os romanos estabeleceram algumas alterações em seu ordenamento, uma vez que sua sociedade se encontrava em crescente evolução. Com isso, no período clássico, surgiu aexceptio, podendo ser utilizada pelos peregrinos em campos provinciais que não podiam pertencer ao domínio privado, ou seja, estes eram considerados res publica, que, em um linguajar básico, significa “coisa do povo”. Dessa forma, a exceptioera uma forma de prescrição que objetivava garantir a defesa da posse prolongada contra o proprietário que se fez negligente por longo prazo, sendo indispensável comprovar um lapso temporal de dez ou vinte anos4.
Com a entrada do imperador Justiniano sucederam relevantes modificações no Direito Romano, que acarretaram a fusão do usucapio com a praescripitioem um só instituto. Com isso, a usucapião se transforma, simultaneamente, em modo de perda e aquisição de propriedade, considerada como prescrição aquisitiva5.Foi por meios dessas modificações que, em meio à evolução do Direito Romano a prescrição passou tratada como meio instintivo de ações. Esta expressão refere-se a dois institutos jurídicos distintos, mas que apresentam uma característica em comum que é o decurso do tempo. O primeiro instituto, de caráter geral, seria a prescrição com vista a extinguir toda e qualquer tipo de ação. Já o segundo instituto seria o modo de aquisição da propriedade, representado pela antiga usucapião.
É por isso que alguns consideram a prescrição e a usucapião de forma unitária, simplesmente diferenciando a primeira como prescrição extintiva e a segunda como prescrição aquisitiva. Contudo, em sentido contrário existe a corrente dualista que distingue a prescrição da usucapião. Da mesma forma, Código Civil Brasileiro de 2002 dispõe os institutos da usucapião e da prescrição de forma separada, localizando-se a prescrição extintiva na Parte Geral e a usucapião no Livro de Direito das Coisas, como modo de aquisição da propriedade6.
Assim sendo, a única proximidade entre a prescrição e a usucapião, diz respeito ao que estão dispostos no artigo 1.244 do Código Civil Brasileiro de 2002, no tocante as causas que suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam a usucapião. Vejamos:
Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião.
Ou seja, entre outras limitações não se verificará usucapião entre cônjuges na constância do casamento, tampouco entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, nem mesmo contra menor.
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- POSSE
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Para iniciar os estudos sobre o tema, é conveniente analisa-lo sob a perspectiva da proteção do bem jurídico que o legislador busca preservar.
Para Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 27) “A posse é protegida para evitar a violência e assegurar a paz social, bem como porque a situação de fato aparenta ser uma situação de direito. É, assim, uma situação de fato protegida pelo legislador”.
Já para Francisco Pontes de Miranda, (Nader, 2016, p.67 apud Miranda)posse é:
Rigorosamente, a posse é o estado de fato de quem se acha na possibilidade de exercer poder como o que exerceria quem fosse proprietário ou tivesse, sem ser proprietário, poder que só será incluso no direito de propriedade (usus, fructus, abusus).
Assim, trata-se de instituto de grande relevância para compreensão da usucapião, que, somado o lapso temporal mínimo, proporciona a aquisição da propriedade.
Abordar de posse sem recordar as obras dos brilhantes juristas Friedrich Carl von Savigny e Rudolf von Ihering é impossível, pois suas teorias são vistas como essenciais para o estudo do tema.
A primeira sustentada por Friedrich Carl von Savigny, é a teoria subjetivista, onde o jurista conceitua a posse como o poder que a pessoa tem de dispor de um bem com a finalidade de tê-lo para si e protegê-lo contra interferência de quem quer que seja.Esta teoria possui dois elementos: o corpus, que seria o elemento material que significa o poder físico da pessoa sobre a coisa e o animus, que seria o elemento intelectual, que caracteriza a vontade de ter essa coisa como sua.1
No mesmo sentido explica Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 30):
A posse é caracterizada pela conjunção de dois elementos: o corpus, elemento objetivo que consiste na detenção física da coisa, e o animus, elemento subjetivo, que se encontra na intenção de exercer sobre a coisa um poder no interesse próprio e de defendê-la contra a intervenção de outrem. Não é propriamente a convicção de ser dono (opinio seu cogitatiodomini), mas a vontade de tê-la como sua (animus domini ou animus rem sibihabendi), de exercer o direito de propriedade como se fosse o seu titular.
Com isso, é essencial que haja a presença desses dois elementos para que disponha da posse. Do contrário, está caracterizada a detenção da coisa.
A segunda teoria é a objetivista defendida por Rudolf von Ihering, onde é dispensado o elemento animus para configurar a posse. Sendo necessário que esteja presente somente o elemento corpus, o que significa uma disponibilidade física da coisa ou que exista pelo menos a possibilidade de exercer esse contato. Assim, para Ihering, o elemento animus está intimamente ligado ao poder de fato exercido sobre a coisa, por isso não é necessário tratar os dois elementos de forma separada. Com isso, existe o desejo do possuidor de explorar a coisa economicamente.
Segundo análise de Carlos Roberto Gonçalves (2002, p. 31) sobre a teoria de Ihering:
Para IHERING, portanto, basta o corpus para a caracterização da posse. Talexpressão, porém, não significa contato físico com a coisa, mas simconduta dedono. Ela se revela na maneira como o proprietário age em faceda coisa, tendo em vista sua função econômica. Tem posse quem secomporta como dono, e nesse comportamento já está incluído o animus. Oelemento psíquico não se situa na intenção de dono, mas tão somente navontade de agir como habitualmente o faz o proprietário (affectiotenendi),independentemente de querer ser dono (animus domini).
O Código Civil de 2002 estabelece em seu artigo 1.196 que “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato oexercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.
Neste sentido, compreendendo, por meio do conceito exposto, que para ser possuidor é preciso que exerça sobre a coisa um dos poderes pertinentes ao proprietário, vejamos o que preconiza o artigo 1.228 do Código Civil sobre os poderes do proprietário: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”.
Atualmente, retira-se do artigo 1.196 do Código Civil a regra que vigora no direito brasileiro, a teoria objetiva da posse, porém, não obstante a aplicação da regra geral, existe espaço no ordenamento jurídico brasileiro para aplicação da teoria subjetiva da posse, como é o caso da usucapião.
O artigo 1.238 do Código Civil versa sobre a usucapião extraordinária, trazendo em sua redação, aspecto essencial da teoria de Friedrich Carl von Savigny, vejamos:
Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Deve-se observar no texto do artigo supracitado que, não basta, para usucapir, ter a posse do imóvel, mais sim a junção do animus de ter a coisa como sua.
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- PROPRIEDADE
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Segundo Cunha Gonçalves, (Gonçalves, 2016, p.186 apud Gonçalves):
O direito de propriedade é aquele que uma pessoa singular ou coletiva efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar.
O direito de propriedade é considerado direito absoluto, tendo em vista que existe um poder de dominação da coisa, possuindo o proprietário autonomia para decidir como usá-la. Porém, atualmente, o conceito de absolutismo do direito de propriedade encontra-se demonstrado de forma mitigada, pois ele está sofrendo algumas restrições, como por exemplo, à necessidade de atender à sua função social, como pressupõe a Constituição Federal de 1988. Pode-se dizer que o direito de propriedade possui exclusividade pelo fato de impedir que terceiros exerçam sobre a coisa qualquer senhorio. Sendo perpétuo, pois para este não existe um prazo de validade, sendo este direito ilimitado. E, por último, assim como outros direitos existentes, possui eficácia erga omnes, podendo-se dizer que é oponível a todos.
Porém o Código Civil não disponibiliza um conceito preciso do instituto, evidenciando apenas os poderes do proprietário em face da coisa. Vejamos: artigo 1.228: “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Assim, Maria Helena Diniz (2012, p.129-130) conceitua de forma analítica este instituto:
Poder-se-á definir, analiticamente, a propriedade, como sendo o direito que a pessoa natural ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindica-lo de quem injustamente o detenha.
Passemos à análise minuciosa dos poderes assegurados pelo diploma legal ao proprietário, segundo Paulo Nader:
Usar, equivale ao jus utendi dos romanos, e quer dizer que ao proprietário da coisa é assegurado o direito de utilizar-se conforme sua finalidade econômica.
O direito de gozar equivale ao jus fruendi, outorgando ao proprietário a possibilidade de perceber os frutos que a coisa produz, como aqueles oriundos do cultivo da terra, integrando também os rendimentos que, por acaso a coisa produza, como os alugueres. Confere ao proprietário o poder de receber os frutos que a coisa produz.
Importante ressaltar que para o desempenho desses poderes, faz-se necessário que o proprietário esteja também na posse da coisa.
O poder era conhecido pelos romanos jus abutendi, que trata-se da capacidade de alienar a coisa.
Por fim, é garantido ainda ao proprietário o direito de recuperar a coisa de quem quer que a injustamente à detenha ou possua.
ARAÚJO, Fábio Caldas de. O usucapião no Âmbito Material e Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 35.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso De Direito Civil, v. 5: Reais. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 335.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso De Direito Civil, v. 5: Reais. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 35.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso De Direito Civil, v. 5: Reais. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 334.
ARAÚJO, Fábio Caldas de. O usucapião no Âmbito Material e Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 34
ARAÚJO, Fábio Caldas de. O usucapião no Âmbito Material e Processual. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 35
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 32