O uso das tecnologias representa grande avanço das relações de interação entre os seres humanos, elevando a outro patamar a pulverização de informações de interesse plural.
O advento da internet foi propulsor direto da facilidade na comunicação, possibilitando que pessoas das mais diversas partes do mundo pudessem se falar, ouvir, ver. Com ela, há um clique é possível acessar uma biblioteca gigantesca de livros, músicas, fotos e os mais variados arquivos que são compartilhados constantemente na rede, como pensa Goulart (2012, p. 150):
A informática permite e proporciona uma evolução cognitiva que amplia o acesso do homem ao conhecimento. Com a massificação das novas tecnologias todos são emissores e receptores de informação ao mesmo tempo. Esta circunstância reforma e redesenha o espectro da liberdade de expressão e comunicação.
É neste cenário que o presente trabalho chega a um ponto chave: o ambiente da internet e a violação do direito à intimidade, bem jurídico tutelado pela Constituição Federal da República, no seu Artigo 5º, inciso X, sendo esta, portanto, cláusula pétrea. Esse direito fundamental assentado na legislação positivada delimita que há profundo interesse do estado democrático de direito em preservar a esfera privada da vida dos cidadãos, prevendo que qualquer afronta ou lesão a essas prerrogativas seja objeto de indenização por dano moral ou material. Silva (2013) explica que tamanha é a importância do direito à intimidade que a Carta Magna erigiu-o a um direito conexo ao da vida. É este direito que é violado quando ocorre a exposição desautorizada de imagens e vídeos, comportamento chamado de pornografia de vingança.
O termo Pornografia de Vingança, advindo da tradução literal do termo inglês revange porn, significa publicar sem o consentimento expresso da vítima fotos, vídeos, áudios, que contenham conteúdo de natureza íntima, tais como filmes de sexo, imagens nuas, e, também, troca de mensagens de conteúdo íntimo sexual que tenham como finalidade expor em situação humilhante e vexatória a vítima, em outras palavras, Lima (2018, s./ p.) descreve pornografia de vingança como: “uma pornografia não consensual, em que o parceiro da vítima propala, por meio da Internet, materiais audiovisuais – tais como fotos, vídeos ou áudios - de cunho íntimo da vítima, em situações eróticas ou sexuais”.
Buzzi (2015) entende que pornografia de vingança afeta em maior número as mulheres do que os homens, e pode ser considerada uma forma de violência de gênero perpetrada contra as mulheres, ou seja, invariavelmente o número de mulheres que sofre este tipo de violência é maioria esmagadora, sendo poucos os relatos de homens que sofreram tal violação, o que é justificado pelo contexto histórico acima destacado.
A internet nada mais é que um espelho da vida real, pois tudo que ocorre naquela é simplesmente a informatização do que foi materializado na realidade, ou seja, é necessário um fato externo real para que ele exista virtualmente. Com isso, é possível imaginar que a publicação de conteúdos íntimos é uma pequena demonstração das violações de um relacionamento abusivo na vida real, conforme coloca Goulart (2012, p. 153):
Se o mundo virtual é uma reprodução do “mundo real”, se a Internet passa a ser vista e utilizada como um meio para a propagação de conteúdos e de discursos é necessária a proteção dos direitos fundamentais e humanos em seu ambiente.
A discussão da publicação de conteúdos íntimos não se limita à narrativa da proteção do direito à intimidade, pois muito mais profundas são as ramificações que uma exposição como essa pode acarretar na vida da vítima, desta forma, o tema perpassa as relações privadas invadindo a vida pública, com uma exposição degradante (BUZZI, 2015, p. 102).
É necessário, para aprofundar o debate, conhecer um elemento imprescindível na apreciação do tema: o perfil da vítima e do criminoso. Saber quem são essas pessoas se faz mister para analisar se há traços sociais, financeiros, étnicos ou geográficos, para que o crime ocorra, ou se é independente de critérios (MAGESK; SOARES, 2017).
Lima (2018) explica que no que tange à vítima há claro destaque às adolescentes, pois o uso de celulares é mais intenso nesta faixa etária, e as relações com amigos e colegas intensifica o uso para troca de mensagens. Por vezes estas são pegas de surpresa quando fotos ou vídeos são divulgados, pois sequer sabiam que o criminoso tinha em seu poder fotos e vídeos, uma vez que foram obtidos sem o conhecimento da vítima, durante o relacionamento.
Lima (2018), em sua pesquisa, traz dados da SaferNet, entidade que tem vínculo com a Polícia Federal e o Ministério Público, com maciço trabalho na monitoração da violação dos direitos humanos na internet, que produziu uma pesquisa no ano de 2010 concluindo que 11% dos adolescentes e crianças com idade entre cinco e dezoito anos no Brasil já haviam compartilhado fotos ou mensagens em poses sensuais. Ademais, em 2013, em outro estudo da SaferNet com o mesmo objeto, foi constatado que cerca de 20% dos brasileiros já haviam recebido ou enviado mensagens ou fotos íntimas, e que 6% desses haviam reenviado o material para terceiros.
Há também a vítima que participa ativamente da gravação, que colabora com o fato, o que não quer dizer que há anuência na publicação do conteúdo, visto a publicação não consentida, além de configurar crime previsto na Lei 13.718 de 24 de setembro de 2018, mostra claro rompimento da confiança existente em um relacionamento sadio (MAGESK; SOARES, 2017).
O criminoso, por sua vez, geralmente é o namorado ou marido que teve sua relação frustrada pelo término. Geralmente são pessoas inseguras, violentas, possessivas e que não sabem lidar bem com sentimentos, conforme coloca (2017). Na maioria dos casos o fato decorre de um relacionamento que há tempos era abusivo, motivo que, regra geral, enseja os términos. Por vezes, a publicação dos conteúdos é anunciada à vítima com intuito de negociar a publicação em troca do reatamento da relação “amorosa”, sendo essa uma espécie de extorsão (MAGESK; SOARES, 2017).
Não obstante o marido ou namorado não anuncia diretamente que publicará conteúdos íntimos, ele usa de violência psicológica para compelir o reatamento da relação, dando a entender que, caso a vítima não regresse ao relacionamento algo de muito ruim acontecerá (MAGESK; SOARES, 2017).
Há também os relacionamentos casuais, onde não se pode falar em namorado ou marido, mas sim companheiro sexual, qual seja aquele que por um ou mais encontros teve único e simplesmente relações sexuais sem vínculo emocional. Nesse caso, geralmente a mulher é filmada sem saber, gerando grande surpresa quando o conteúdo é publicado. Aqui, não há que se falar em quebra de confiança ou companheiro frustrado, visto as características desta relação não comportarem esses pressupostos (MAGESK; SOARES, 2017).
O perfil desse criminoso é mais ardil, pois tem finalidade econômica ou para simplesmente satisfazer a lascívia masculina. Há sites e blogs especializados na publicação desses conteúdos, onde o fluxo de usuários é significativo, portanto, o ganho indireto com os vídeos utilizando de publicidades nos sites e blogs movimentam milhões (MAGESK; SOARES, 2017).
Criminosos como esses violam não só a honra, a vida privada e a intimidade das mulheres as quais divulgam conteúdos íntimos das mais variadas formas e com os mais variados motivos, quanto incidem nas condutas abjetas previstas na legislação vigente, que promove a proteção dos usuários das redes.
O direito brasileiro prevê uma série de dispositivos legais que visam tutelar direito de proteção à integridade física e psicológica da mulher, de modo a alcançá-las amparo legal quando da incidência das práticas supramencionadas. Importante marco de proteção aos direitos da mulher, a Lei 11.340 de sete de agosto de 2006, conhecida como ‘’Lei Maria da Penha’’, em homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica por seu marido durante 23 anos, sofrendo duas tentativas de homicídio, em que na primeira ficou paraplégica e na segunda foi vítima de eletrocussão e afogamento. Essa lei representa grande avanço na tutela de direitos às mulheres que sofrem esse tipo de crueldade, tendo sido declarada em 2011 como ‘’uma das legislações mais avançadas do mundo em defesa da mulher’’, (BUZZI apud ONU, 2011, p. 56).
A Lei Maria da Penha, em seu Artigo 7º, inciso II, prevê situações em que a mulher, exposta à violência doméstica pode buscar proteção jurisdicional:
Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação. (BRAZIL, 2006)
O ato de divulgar material de cunho sexual, com intuito de constranger a mulher também encontra amparo no Código Penal Brasileiro, nos Artigos 139 e 140, no capítulo de Crimes Contra a Honra. Nucci (2016, p.663), explica que quanto ao Artigo 139, do referido código, a proteção se dá em razão da chaga à fama da vítima, atribuindo a esta, verdadeira ou falsamente, fatos sobre sua honra objetiva.
Difamar significa desacreditar publicamente uma pessoa, maculando-lhe a reputação. Nesse caso, mais uma vez, o tipo penal foi propositadamente repetitivo. Difamar já significa imputar algo desairoso a outrem, embora a descrição abstrata feita pelo legislador tenha deixado claro que, no contexto do crime do art. 139, não se trata de qualquer fato inconveniente ou negativo, mas sim de fato ofensivo à sua reputação.
Já o Artigo 140 do referido diploma, trata da injúria, aqui um tipo penal mais próximo do sofrimento das mulheres vitimas de pornografia de vingança, visto que o dispositivo pretende tutelar a ofensa à autoimagem, ou seja, a opinião que cada ser, na sua singularidade, tem de si próprio. Nucci (2016, p. 665), entende que “é preciso que a ofensa atinja a dignidade (respeitabilidade ou amor-próprio) ou o decoro (correção moral ou compostura) de alguém”. Portanto, é um insulto que macula a honra subjetiva, arranhando o conceito que a vítima faz de si mesma’’, o que ocorre quando da divulgação sem consentimento de arquivos íntimos de cunho sexual.
Outro importante instrumento de proteção legal, a Lei 12.737, sancionada em 30 de novembro de 2012, pela então Presidente Dilma Housseff, entrou em vigor no dia 02 de abril de 2013, ficou conhecida como lei Carolina Dieckmann, provocou alterações no Código Penal Brasileiro. Por trás da rápida tramitação da lei no congresso, cerca de um ano, estava o rackeamento de trinta e seis fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann, sendo estas publicadas na internet em 2012 sem sua autorização, provocando profundo abalo moral.
Quanto à proteção da mulher, ainda que não especificamente para essa finalidade, a referida lei trata da invasão de dispositivos informáticos que estejam ou não conectados à rede de computadores, por meio da violação dos protocolos de segurança para obter, adulterar ou destruir os dados sem a expressa autorização do titular do dispositivo. Esta previsão, assentada no Artigo 154-A, da Lei 12.737, significa grande avanço nos mecanismos de proteção dos usuários da rede mundial de computadores, uma vez que visa coibir uma prática bastante comum, qual seja o hackeamento dos dados privados de usuário com intuito de difundir arquivos íntimos, prevendo pena restritiva de liberdade.
Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (BRASIL, 2012)
Alguns anos depois, entrou em vigor a Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, conhecida como “Marco Civil da Internet”, após grandes debates sobre a importância de uma norma que regulamentasse a internet no Brasil. Além de tratar da estabilidade das conexões de internet, visando melhoria contínua da prestação desses serviços, a lei tem o objetivo de proteger os dados dos usuários contra invasões e roubo de dados (BRASIL, 2014).
Conforme define o Artigo 7º e seus incisos, da referida Lei, as informações cadastrais previsão estar seguras, de modo que qualquer violação será objeto de indenização:
Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I - inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL, 2014)
Mas o eixo de conexão do Marco Civil da Internet com esta pesquisa está em seu Artigo 21 e no seu parágrafo único:
Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. (BRASIL, 2014)
A cabeça do Artigo 21 é enfática em esclarecer que os provedores de internet serão responsabilizados de forma subsidiária quanto a conteúdos de caráter sexual ou que contenham nudez, disponibilizados na internet por terceiros sem a autorização do titular do conteúdo, após o recebimento extrajudicial de notificação do ofendido solicitando a imediata retirada do conteúdo das redes. Esta disposição alcança a ofendida, análise desse estudo, uma ferramenta direta para diminuir os danos causados pela exposição de conteúdos íntimos. A solução da imediata retirada do conteúdo diretamente com o servidor torna mais célere o procedimento de exclusão do conteúdo, fazendo com que este não seja propagado para mais pessoas.
Conforme apregoa o Artigo 18, cabeça, parágrafos 3º e 4º, as demandas envolvendo usuários e servidores poderão ser apresentadas frente aos juizados especiais e, ainda, poderão ter a tutela total ou parcialmente antecipadas, uma vez da existência inequívoca do fato:
Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. (BRASIL, 2014)
Ainda que com todos esses dispositivos visando proteger a intimidade, a honra e a vida privada, o sistema jurídico introduziu em seu ordenamento uma nova legislação, dessa vez com foco voltado à importunação sexual, em suas mais diversas formas. Talvez a comoção social, talvez a falta de proteção dos dispositivos anteriores ou talvez o real fracasso das formas de solução desses conflitos trouxeram à lume a Lei número 13.718, de 24 de setembro de 2018.