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A AUSÊNCIA, EM REGRA, DE EFEITO SUSPENSIVO DA APELAÇÃO INTERPOSTA EM FACE DE SENTENÇA QUE APLICA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA

Agenda 31/07/2020 às 17:00

Discorre-se sobre a ausência, em regra, de efeito suspensivo da apelação interposta em face da sentença que aplica medida socioeducativa ao adolescente infrator, à luz da doutrina da proteção integral e seus consectários.

Neste ano de 2020, a Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), completou 30 anos de existência.

Elaborado sob o paradigma da “doutrina da proteção integral”, inspirado pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, o ECA sepultou de vez a vetusta “doutrina da situação irregular”, de sorte que as crianças e os adolescentes passaram a ser tratados como sujeitos de direito, e não objetos de tutela, bem como passaram a contar com um amplo conjunto de mecanismos jurídicos voltados à sua proteção.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 também adotou o novel paradigma ao tratar das crianças e adolescentes, a partir de seu artigo 227, muito mais consentâneo com a devida proteção dos direitos humanos, mormente de “pessoas em desenvolvimento”. Reforça essa asserção o disposto no artigo 6º do ECA, que reza:

 

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.

 

O parágrafo único do artigo 100 do ECA, que trata dos princípios que regem a aplicação das medidas de proteção, os quais se irradiam por toda a disciplina da criança e do adolescente, em seu inciso II associa o aludido princípio da proteção integral a outro relevante primado que rege a matéria, qual seja, o da prioridade absoluta, in verbis:

 

Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:

(…);

II - proteção integral e prioritária: a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares;

(…).

 

Não à toa que o § 1º do artigo 152 do ECA prevê que “é assegurada, sob pena de responsabilidade, prioridade absoluta na tramitação dos processos e procedimentos previstos nesta Lei, assim como na execução dos atos e diligências judiciais a eles referentes.”

A prioridade absoluta, por seu turno, está umbilicalmente relacionada a outros dois princípios mencionados no parágrafo único do artigo 100 do ECA, a saber, o da intervenção precoce e o da atualidade, previstos nos incisos VI e VIII, respectivamente, de tal dispositivo, abaixo transcritos:

 

Art. 100. Na aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários.

Parágrafo único. São também princípios que regem a aplicação das medidas:

(…);

VI - intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida;

(…);

VIII - proporcionalidade e atualidade: a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada;

(…).

 

Nesse contexto, à guisa de se afastar a “situação de risco” em que eventualmente se encontrar o adolescente, é evidente que no processo instaurado para a apuração de ato infracional todas as regras e princípios acima devem ser respeitados, inclusive na fase recursal.

Com efeito, o artigo 198 do ECA preconiza que, nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, inclusive os relativos à execução das medidas socioeducativas, adotar-se-á o sistema recursal do Código de Processo Civil, “com adaptações”.

Essa ressalva das “adaptações” é deveras importante, especialmente diante das peculiaridades inerentes à aplicação aos adolescentes em conflito com a lei de medidas socioeducativas, as quais, como é cediço, não têm natureza jurídica de pena, mas proeminentemente pedagógica.

Trata-se de medidas aplicadas ao adolescente que incorre em ato infracional, tendo por finalidade reorganizar seus valores pessoais, sem prejuízo, claro, de ser uma resposta à violação da ordem jurídica com caráter preventivo. Não por outro motivo a medida é denominada de “socioeducativa”. Visa à educação do infrator, para que ele possa se desenvolver plenamente e melhor conviver em sociedade.

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A esse respeito, Roberto João Elias leciona que “um dos aspectos da proteção integral é a aplicação das medidas socioeducativas, que têm por objetivo corrigir o adolescente, para que possa se desenvolver plenamente. Assim, qualquer que seja o motivo que o levou a praticar o ato infracional, deve ser encarado como fator patológico que precisa ser tratado.” (In Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010).

Pois bem, a respeito das “adaptações” mencionadas alhures, o inciso VI do artigo 198 do ECA previa, originariamente, que, nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, a apelação seria recebida com efeito devolutivo, salvo quando interposta contra sentença que deferisse a adoção por estrangeiro e, a juízo da autoridade judiciária, sempre que houvesse perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, casos em que poderia, excepcionalmente, ser deferido efeito suspensivo ao apelo.

É certo que o mencionado inciso foi revogado pela Lei Federal n. 12.010, de 03 de agosto de 2009, mas não se pode olvidar que continua a viger o disposto no artigo 215 do ECA, o qual prevê que “o juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte”.

Ou seja, os recursos de apelação, nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, continuam, em regra, tendo somente o efeito devolutivo, mormente quando interpostos em face de sentença que aplica medida socioeducativa ao adolescente infrator, sob pena de violação das regras e princípios mencionados alhures.

É irrelevante, outrossim, a posição topográfica do artigo 215 do ECA, principalmente mediante interpretação sistemática do Estatuto, considerando seus objetivos e finalidades, sem contar que o ECA é lei especial em face do Código de Processo Civil e não prevê, como regra, o efeito suspensivo nos recursos de apelação.

Assim, em regra não há efeito suspensivo em razão da interposição de recurso de apelação em face da sentença que aplica medida socioeducativa ao adolescente, o que pode ocorrer excepcionalmente para evitar dano irreparável à parte, mediante requerimento e decisão fundamentados.

Não à toa que o Superior Tribunal de Justiça, a quem incumbe a unificação da interpretação da legislação infraconstitucional, vem decidindo, há um certo tempo, que o adolescente infrator, em regra, não tem direito de aguardar em liberdade o julgamento da apelação interposta contra a sentença que lhe impôs a medida socioeducativa, como a internação, ainda que no decorrer do processo o infante estivesse em liberdade.

Em outros termos, a execução da sentença que aplica medida socioeducativa é imediata, haja ou não recurso contra a sentença, o que não constitui ofensa ao princípio da presunção de inocência/não culpabilidade, previsto no inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, que dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Sim, pois a sentença que aplica medida socioeducativa ao adolescente não se confunde com sentença penal condenatória proferida contra a pessoa adulta, tampouco a medida socioeducativa se confunde com pena, como dito anteriormente, por ter caráter pedagógico, e não punitivo.

Destarte, a execução imediata da sentença que aplica medida socioeducativa não ofende o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no sentido de vedar a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o que se dá após o esgotamento total dos recursos (vide STF. ADC 43/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7.11.2019. ADC 44/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7.11.2019. ADC 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7.11.2019).

Para corroborar o entendimento ora explanado, colaciona-se a seguinte ementa paradigmática e emanada da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, portanto com força de precedente judicial a ser necessariamente considerado pela comunidade jurídica:

 

HABEAS CORPUS. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO JURÍDICA POSTA. AFETAÇÃO DO WRIT À TERCEIRA SEÇÃO. FINALIDADE DE ESTABELECER DIRETRIZES INTERPRETATIVAS PARA CASOS FUTUROS SEMELHANTES. MISSÃO DO STJ COMO CORTE DE PRECEDENTES. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. EFEITOS DA APELAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. TERMINOLOGIA INCOMPATÍVEL COM O PROCEDIMENTO POR ATO INFRACIONAL. CONDICIONAMENTO DO INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA MEDIDA COM O TRANSITO EM JULGADO DA REPRESENTAÇÃO. OBSTÁCULO AO ESCOPO RESSOCIALIZADOR DA INTERVENÇÃO ESTATAL. PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO PRECOCE NA VIDA DO ADOLESCENTE (PARÁGRAFO ÚNICO, INC. VI, DO ART. 100 DO ECA). RECEBIMENTO DO APELO NO EFEITO DEVOLUTIVO. APLICAÇÃO IMEDIATA DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 215 DO ECA. ORDEM DENEGADA.

1. Espera-se de uma Corte de Vértice, qual o Superior Tribunal de Justiça, o fiel desempenho de sua função precípua de conferir unidade à interpretação da legislação federal, valendo-se dos variados métodos de interpretação colocados à disposição do aplicador do Direito. Daí a importância de se submeterem questões jurídicas de alto relevo, debatidas em órgãos fracionários desta Corte, ao crivo do órgão colegiado mais qualificado - in casu, a Terceira Seção - de modo a ensejar a eliminação de possíveis incongruências na jurisprudência das turmas que integram a Seção, fomentando, a seu turno, a produção de precedentes que estabeleçam diretrizes interpretativas para casos futuros semelhantes.

2. Invocam-se os artigos 198 do ECA e 520 do CPC para se concluir pela possibilidade de conferir efeito meramente devolutivo à sentença que impõe medida socioeducativa em confirmação ao que se denomina "antecipação dos efeitos da tutela", i.e., a anterior internação provisória do adolescente no processo por ato infracional.

3. Em que pese ser expressão que vem sendo utilizada, em julgados mais recentes desta Corte, ela não se coaduna com a natureza de um processo por ato infracional no qual, antes da sentença, permite-se ao juiz determinar a internação do adolescente pelo prazo máximo, improrrogável, de 45 dias (art. 108 c/c o art. 183, ambos do ECA), levando-se em consideração os "indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida."

4. Como bem pontuado no acórdão impugnado pelo writ, "as medidas socioeducativas têm por escopo primordial a ressocialização do adolescente, possuindo um intuito pedagógico e de proteção aos direitos dos jovens", de modo que postergar o início de cumprimento da medida socioeducativa imposta na sentença que encerra o processo por ato infracional importa em "perda de sua atualidade quanto ao objetivo ressocializador da resposta estatal, permitindo a manutenção dos adolescentes em situação de risco, com a exposição aos mesmos condicionantes que o conduziram à prática infracional". Incide, à espécie, o princípio da intervenção precoce na vida do adolescente, positivado no parágrafo único, inc. VI, do art. 100 do ECA.

5. Outrossim, a despeito de haver a Lei 12.010/2009 revogado o inciso VI do artigo 198 do referido Estatuto, que conferia apenas o efeito devolutivo ao recebimento dos recursos - e inobstante a nova redação conferida ao caput do art. 198 pela Lei n. 12.594/2012 – é importante ressaltar que continua a viger o disposto no artigo 215 do ECA, o qual prevê que "o juiz poderá conferir efeito suspensivo aos recursos, para evitar dano irreparável à parte". Ainda que referente a capítulo diverso, não há impedimento a que, supletivamente, se invoque tal dispositivo para entender que os recursos serão recebidos, salvo decisão em contrário, apenas no efeito devolutivo, ao menos em relação aos recursos contra sentença que acolhe representação do Ministério Público e impõe medida socioeducativa ao adolescente infrator, sob pena de frustração da principiologia e dos objetivos a que se destina a legislação menorista.

6. Logo, condicionar, de forma peremptória, o cumprimento da medida socioeducativa ao trânsito em julgado da sentença que acolhe a representação - apenas porque não se encontrava o adolescente já segregado anteriormente à sentença - constitui verdadeiro obstáculo ao escopo ressocializador da intervenção estatal, além de permitir que o adolescente permaneça em situação de risco, exposto aos mesmos fatores que o levaram à prática infracional.

7. Na espécie, a decisão impugnada no writ enfatizou a gravidade concreta da conduta do paciente - praticou ato infracional equivalente ao crime de roubo duplamente circunstanciado e outro ato infracional equivalente ao porte ilegal de arma de fogo - e destacou as condições de vida muito favoráveis ao paciente e as facilidades e os desvios de sua educação familiar, como fatores que tornariam também recomendável sua internação. Tudo em conformidade com o que preceitua o art. 122, inc. I, da Lei n.º 8.069/90.

8. Ordem denegada. (STJ. HC 346380/SP. Relatora: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA. Relator(a) p/ Acórdão: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ. Órgão Julgador: S3 - TERCEIRA SEÇÃO. Data do Julgamento: 13/04/2016. Data da Publicação/Fonte: DJe 13/05/2016).

 

Tudo a corroborar a ausência, em regra, de efeito suspensivo do recurso de apelação interposto em face da sentença que aplica medida socioeducativa ao adolescente que tenha praticado ato infracional, cuja execução deve ser imediata, em homenagem aos objetivos e finalidades do ECA e dos princípios da proteção integral, prioridade absoluta, intervenção precoce e atualidade, para espancar a situação de risco do adolescente e proporcionar sua efetiva e pronta reeducação, à luz da doutrina da proteção integral.

Sobre o autor
Tiago Quintanilha Nogueira

Promotor de Justiça no Estado do Maranhão. Graduado em 2009 em Direito pelo Centro Universitário Anhanguera de Campo Grande (Unaes). Aprovado em 2009 no exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Pós-graduado em direito civil e direito processual civil pela Anhanguera Uniderp. Pós-graduado em direito tributário pela LFG em parceria com a Anhanguera Uniderp.

Informações sobre o texto

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