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Garantia constitucional de controle dos municípios sobre seus planos diretores

O caso do alvará para templos religiosos na ADI 5.696/MG

Agenda 01/08/2020 às 19:20

O texto reflete sobre a limitação ao exercício do poder constituinte derivado, à luz da ADI 5.696/MG, na qual o STF entendeu pela impossibilidade de os Estados regularem o zoneamento urbano dos municípios

A competência para legislar sobre a concessão de alvarás de funcionamento para templos religiosos, questão que deu causa à Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.696/MG, suscitou uma discussão muito mais ampla. A Assembleia Legislativa de Minas Gerais, no uso do poder constituinte decorrente derivado, aprovou a Proposta de Emenda à Constituição de Minas Gerais (PEC) n. 3, de 26 de fevereiro de 1999, do deputado João Paulo (PSD), dando origem à Emenda à Constituição Estadual n. 44, de 18 de dezembro de 2000 (MINAS GERAIS, 1989 [2020], p. 283).

A Emenda mudou o art. 170 da Constituição do Estado de Minas Gerais, que prevê a configuração da autonomia dos municípios, listando competências privativas deles. A alteração no texto tinha como finalidade liberar os templos da exigência de alvará de funcionamento ou de submissão às regras de ordenamento territorial estabelecidas pelos municípios. A modificação ocorreu no inciso V, que passou a ter a seguinte redação:

Art. 170 – A autonomia do Município se configura no exercício de competência privativa, especialmente: [...]

V - promoção do ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, ficando dispensada a exigência de alvará ou de qualquer outro tipo de licenciamento para o funcionamento de templo religioso e proibida limitação de caráter geográfico à sua instalação; [grifo meu] (MINAS GERAIS, 1989 [2020], p. 141).

No Brasil, a Constituição de 1988 consagrou o direito urbanístico como um ramo próprio, desvinculando-o do regime geral do direito administrativo (PINTO, 2014, p. 93). Desde então, ficaram reservadas à União e aos estados a competência para legislar, de forma exclusiva ou concorrente, sobre temas relacionados à urbanização. São os municípios, entretanto, os únicos legitimados pela Constituição para executar as políticas urbanas definidas por esses entes federativos. 

O art. 30, inciso I, da Carta maior, estabelece que compete aos municípios “legislar sobre assuntos de interesse local; [...]”. O inciso VIII do mesmo artigo prevê que compete aos municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (BRASIL, 1988, on-line). Ao município, portanto, cabe executar tais atribuições, que estão ligadas ainda ao art. 5º, inciso XXIII da Constituição da República, que determina que “a propriedade atenderá a sua função social”.

A competência municipal também está vinculada a outro dispositivo constitucional – o art. 182, que diz: “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (ibidem, loc. cit.).

É para atender a esses ditames da Constituição que

[...] os Municípios devem ter um plano diretor aprovado pela Câmara Municipal, que é obrigatório para as cidades com mais de vinte mil habitantes. O plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. A propriedade urbana cumpre sua função social ao atender as exigências fundamentais de ordenação da cidade que devem estar expressas no plano diretor (MACHADO; FERRAZ, 2018, p. 229).

O município, respeitando as diretrizes da legislação do estado e da União – especialmente a Lei Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade –, tem a atribuição privativa, portanto, de decidir sobre seu ordenamento territorial (BRASIL, 2001, on-line). Isso significa que é o município o único habilitado a promover o parcelamento e a regulação do uso e da ocupação do solo urbano. Essas decisões são tomadas durante a elaboração do plano diretor, que geralmente faz uso do zoneamento, que é a técnica de dividir o território da cidade em zonas e fixar os usos permitidos em cada uma delas (PINTO, 2014, p. 94).

Nessa etapa executiva, ao contrário da legislação de direito urbanística mencionada no art. 24 da Constituição, as regras de ordenamento territorial, que são definidas pelo município após pesquisas e debates públicos, não são generalistas, mas sim específicas para cada zona. Fica então clara a distinção entre “legislar sobre direito urbanístico” (estabelecer diretrizes gerais) e “promover o ordenamento territorial” (planejar e executar diretamente) (PINTO, 2014, p. 94).

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Essa configuração

[...] coaduna-se com o previsto no caput do art. 182, segundo o qual a política urbana é “executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei”. Ao promover o ordenamento territorial, o Município executa a política urbana, mas não legisla sobre ela. A legislação é estadual ou federal, nos termos do art. 24, I [da Carta maior] (ibidem, loc. cit.).

Fica, portanto, evidente o papel do município na elaboração e execução direta de seu plano diretor, geralmente utilizando o zoneamento urbano para, apoiando-se nele, autorizar, ou não, determinadas atividades em regiões da cidade. É possível, por exemplo, que não sejam permitidos bares ou templos religiosos em determinada área. Nesse caso, a prefeitura municipal negará o alvará de funcionamento, que é obrigatório, e as atividades não poderão ser exercidas naquele local – justamente porque contrariam o zoneamento da cidade.

É por todo o exposto que, cientes da inconstitucionalidade do exercício do poder de emenda naquela ocasião, os promotores de Justiça Marta Alves Larcher e Carlos Alberto Valera, do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), levaram a situação ao conhecimento de Rodrigo Janot, procurador-geral da República à época. Janot então decidiu ajuizar, no dia 17 de abril de 2017, em consonância com os promotores mineiros, a Ação Direta de Inconstitucionalidade que recebeu o n. 5.696 (BRASIL, 2017, p. 2).

O Ministério Público do Estado foi motivado pelo fato de que a Emenda à Constituição de Minas Gerais n. 44 mostra-se contrária aos ditames da Constituição da República e faz uso indevido do poder constituinte derivado decorrente para afrontar o pacto federativo. É materialmente inadequada, tendo em vista que a execução do zoneamento urbano, sem exceções, é matéria privativa do município – que, como ente da federação, não se submete ao estado. O pacto federativo prevê não a submissão, mas justamente uma divisão de competências – divisão essa detalhada na Constituição da República.

Além dos arts. 30 e 182, já explicados na primeira parte deste texto, o procurador-geral da República apontou que a referida Emenda à Constituição de Minas Gerais desrespeita o art. 19 da Constituição da República. Diz o texto da Carta maior:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...] (BRASIL, 1988, on-line).

O Ministério Público Federal, acertadamente, argumentou que só os municípios detêm autorização constitucional para regular concreta e dinamicamente o espaço da cidade. Como versa a petição assinada por Rodrigo Janot, a Emenda à Constituição mineira, “ao dispor sobre competências privativas do município, inseriu indevidamente regra específica relativa a licenciamento e instalação de templos religiosos, a qual não apenas viola a autonomia desses entes, como afronta o princípio da laicidade do estado” (BRASIL, 2017, p. 6-7).

A Ação Direta de Inconstitucionalidade, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, foi a julgamento no dia 25 de outubro de 2019. O Estado de Minas Gerais sequer inscreveu procuradores para representá-lo no processo (BRASIL, 2019, p. 1).

Alexandre de Moraes, ao relatar o caso da Emenda, que continha inconstitucionalidades materiais evidentes, ressaltou a importância da repartição de atividades entre os entes da federação para a conservação do federalismo.

Essas normas constitucionais basilares não estão à mercê do poder constituinte derivado em nenhuma hipótese. De acordo com o ministro do Supremo, as “[...] regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito” (BRASIL, 2019, p. 1).

Moraes argumentou ainda que a nova redação da Constituição estadual mineira teve a intenção de limitar o alcance dos instrumentos de ordenamento urbano, de responsabilidade exclusiva dos municípios, “[...] desequilibrando a divisão de competências estabelecida no texto constitucional em prejuízo da autonomia municipal e em contrariedade ao regramento geral editado pela União” (ibidem, p. 2).

Há, no Brasil, uma tendência a ignorar a independência dos municípios e a passar por cima da condição de ente federativo que a Constituição de 1988 os atribuiu. É necessário sempre frisar: “Sobre os temas de interesse local, os Municípios dispõem de competência privativa. Assim, é hostil à Constituição [da República], por invadir competência municipal, a lei do Estado que venha a dispor sobre distância entre farmácias em cada cidade [por exemplo]” (MENDES; BRANCO, 2020, p. 939).

Em um julgamento ágil, os ministros foram unânimes em declarar a inconstitucionalidade material da Emenda à Constituição de Minas Gerais n. 44, de 18 de dezembro de 2000, tornando-a sem efeitos. Restou garantido, portanto, o direito líquido e certo dos municípios quanto ao zoneamento urbano e à exigência de alvarás para o funcionamento de templos religiosos, assim como acontece com outras atividades coletivas – comerciais ou não.

A decisão explicita claros limites ao poder constituinte derivado. Sendo o poder constituinte derivado decorrente, isto é, aquele destinado aos estados e municípios, a restrição é ainda maior. Não por hierarquia que submete esses entes da federação à esfera federal, mas por divisão de atribuições já demarcada na Constituição da República, cujo zelo cabe à União, na figura do Supremo Tribunal Federal.

É importante ressaltar, por outro lado, que tanto a Constituição da República, quanto as constituições estaduais e as leis orgânicas dos municípios e do Distrito Federal, não são imutáveis. O próprio poder constituinte originário estabeleceu possibilidades de alteração constitucional, “justamente para [manter viva a Constituição,] regenerá-la e conservá-la na essência, eliminando normas e revitalizando o texto para atender aos anseios da sociedade e acompanhar o desenvolvimento social” (BORNIN, 2009, on-line).

É evidente, portanto, que os estados também podem, por meio do chamado poder constituinte derivado decorrente, modificar suas constituições por meio de ritos previstos nelas próprias a partir de diretrizes da Constituição da República. No caso mineiro, por exemplo, o rito foi corretamente seguido e não houve vício formal na aprovação da Emenda à Constituição de Minas Gerais n. 44, de 18 de dezembro de 2000. A referida Emenda foi declarada inconstitucional pelo STF pelos vícios materiais que continha. Conforme o julgado, ela rompia o pacto federativo ao usurpar assuntos de deliberação privativa de outro ente federado – no caso, o município.

Por fim, é preciso ressaltar, como fez ministro Alexandre de Moraes em outro julgamento, que impôs limites ao uso indevido do poder constituinte derivado, que a questão não é o caso ser de grande ou pequena relevância – a implicação verdadeira é justamente no equilíbrio da federação:

A essencialidade da discussão não está na maior ou menor importância do assunto específico tratado pela legislação, mas sim na observância respeitosa à competência constitucional do ente federativo para editá-la (MAURICE DUVERGER. Droit constitutionnel et institutions politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. p. 265 e ss.), com preservação de sua autonomia e sem interferência dos demais entes da federação (BRASIL, 2020, p. 2).


Referências

PINTO, Victor Carvalho. Direito urbanístico: Plano diretor e direito de propriedade. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014.

BORNIN, Daniela Queila dos Santos. Limitações ao poder constituinte reformador. Revista Âmbito Jurídico, São Paulo, ago. 2009, on-line. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/limitacoes-ao-poder- constituinte-reformador/. Acesso em: 11 jul. 2020.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 08 jul. 2020.

__________. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 11 jun. 2020.

__________. Procuradoria-Geral da República. Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.696/MG. Ajuizada em 17 de abril de 2017. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/adi-5696.pdf. Acesso em: 11 jul. 2020.

__________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.696/MG. Julgada em 25 de outubro de 2019. Relator: min. Alexandre de Moraes. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15341680555&ext=.pdf. Acesso em: 11 jul. 2020.

__________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.193/MT. Julgada em 06 de março de 2020. Relator: min. Alexandre de Moraes. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15341680555&ext=.pdf. Acesso em: 11 jul. 2020.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa (org.); FERRAZ, Anna Candida da Cunha (coord.); et al. Constituição Federal interpretada: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 11. ed. Barueri: Editora Manole, 2020.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

MINAS GERAIS. Constituição do Estado de Minas Gerais, de 21 de setembro de 1989. Versão compilada em janeiro de 2020. Disponível em: https://www.almg.gov.br/export/sites/default/consulte/legislacao/Downloads/pdfs/ConstituicaoEstadual.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.

Sobre o autor
Emerson Fonseca Fraga

Jornalista e advogado graduado pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Católica de Brasília (UCB) e em Jornalismo Digital pelo Centro Universitário Estácio (ESTÁCIO).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRAGA, Emerson Fonseca. Garantia constitucional de controle dos municípios sobre seus planos diretores: O caso do alvará para templos religiosos na ADI 5.696/MG. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6240, 1 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84380. Acesso em: 2 nov. 2024.

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