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“Novo normal” dos oficiais de justiça demonstra equívoco da desjudicialização da execução

Agenda 02/08/2020 às 23:19

Este artigo propõe novas perspectivas para que os tribunais e os oficiais de justiça possam oferecer à sociedade serviços de excelência no pós-pandemia e desmistifica a ideia da desjudicialização da execução proposta no PL 6.204/2019.

A pandemia do coronavírus está provocando profundas transformações nas relações de produção e de organização do trabalho no mundo inteiro. Naturalmente, o Brasil, como um dos países mais afetados, não ficará alheio a esse movimento. E no contexto nacional já se percebe um conjunto de alterações também nos órgãos públicos, inclusive dentro do Judiciário para conseguirem continuar atendendo as demandas da população.

A bem da verdade, o Judiciário vinha nos últimos anos ensaiando uma modernização com o processo judicial eletrônico. Não obstante, a pandemia ensejou a necessidade de reformulações mais profundas e imediatas para manter pelo menos os serviços essenciais em funcionamento. Além disso, trouxe à tona algumas ideias, que já aparecem como caminho inevitável: 1) a Justiça se apresenta como um serviço, tornando o local de sua realização irrelevante ou secundário; 2) e boa parte – senão a totalidade – dos atos processuais podem ser praticados sem a necessidade de um encontro (presencial). Aliás, proliferam pelo mundo iniciativas com tribunais e plataformas de resolução de conflitos integralmente eletrônicos.

Entrementes, a despeito do avanço tecnológico de diversos tribunais, pouquíssimos se preocuparam em investir na modernização da atividade do oficial de justiça. Não é à toa que o último documento do processo que se apresenta de forma física é o mandado judicial. Os tribunais permanecem organizando o trabalho dos oficiais de justiça com o mesmo modelo de décadas atrás.

No geral, os oficiais de justiça são sobrecarregados com centenas de mandados, dirigindo-se sozinhos ao endereço das partes e testemunhas sem qualquer informação sobre elas ou seu patrimônio e muito menos sobre os riscos da diligência. Esse modelo de cumprimento de mandado “às cegas” expõe o oficial a diversos riscos desnecessários, inclusive muitos já foram vítimas de crimes diversos durante a diligência. Além disso, o resultado se mostra muito menos produtivo do que poderia, seja porque houve mudança de endereço da parte ou mesmo porque não há bens que podem ser penhorados no local.

Muitos tribunais expedem para os oficiais de justiça uma carga elevada de mandados de comunicação processual (citação, intimação e notificação), malgrado o Código de Processo Civil tenha estabelecido que a regra geral para a prática desses atos processuais consiste no envio pelo correio ou por meio eletrônico, conforme previsão dos arts. 246 a 249. Desse modo, o tempo do oficial de justiça acaba sendo consumido com a prática de centenas de atos que poderiam ser realizados de forma mais simples e econômica.

Esse modelo obsoleto de trabalho tem tido consequências nefastas, como por exemplo desvalorização e até extinção do cargo em alguns locais. Nos estados de Sergipe, Paraná e Tocantins, por exemplo, o cargo foi extinto e a função é desempenhada de maneira precária por outros servidores sem qualificação para tanto designados pelo juiz.

E as alterações decorrentes da pandemia evidenciaram de maneira cabal a necessidade de modificações no trabalho dos oficiais de justiça. Desde que o Judiciário adotou medidas de prevenção ao coronavírus, no geral o trabalho dos oficiais de justiça foi concentrado no cumprimento dos mandados de natureza urgente e preferencialmente de forma eletrônica. Assim, muitos oficiais de justiça passaram a realizar consultas aos sistemas disponíveis e cumprir parte dos mandados por e-mail, whatsapp, telefone ou qualquer forma similar. O oficial se apresenta, confirma os dados que demonstram ser o interlocutor o destinatário da ordem, realiza a leitura do mandado, envia a contrafé de forma eletrônica com o conteúdo integral do mandado para a pessoa e essa manifesta sua ciência. Tudo com a mesma credibilidade que um ato presencial.

Esse formato tem permitido uma vazão elevada de mandados sem expor o oficial a riscos de contaminação. Naturalmente, em alguns casos em que não se obtém êxito no contato eletrônico, o oficial de justiça, municiado de todas as informações, diligencia no endereço e consegue cumprir o mandado presencialmente. Ou seja, o oficial de justiça consegue cumprir os mandados com produtividade mais elevada e menos riscos, tendo a possibilidade de praticar os atos também de maneira eletrônica; as diligências externas se tornam mais assertivas, já que, em menor número, podem ser mais bem planejadas.

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Então, a primeira lição deixada pelas alterações ocorridas durante a pandemia é que a possibilidade de que o oficial de justiça cumpra os mandados dos atos de comunicação processual de forma eletrônica representa maior agilidade e economia. Desse modo, no pós-pandemia não há nenhum sentido no retrocesso desse formato. Apenas os mandados em que não for possível o contato eletrônico seriam objeto de diligências externas. O modelo mais produtivo concilia as duas hipóteses, uma vez que as informações obtidas na diligência externa podem também viabilizar a prática do ato de comunicação de forma eletrônica, tendo em vista que muitas vezes o destinatário da ordem não se encontra no endereço no momento da diligência.

Reduzindo-se o tempo gasto pelo oficial de justiça nos atos de comunicação processual, esse ator relevante que pratica diversos atos com autonomia dentro do processo poderá se dedicar adequadamente para solucionar o grande problema do Judiciário do Brasil: a efetivação do direito. Há anos o Conselho Nacional de Justiça tem apresentado em seus relatórios a alta taxa de congestionamento nos processos de execução, considerando a execução como o grande “gargalo” do Judiciário no Brasil.

De acordo com o Relatório em Números do CNJ, no final do ano de 2018 o Judiciário possuía um acervo de 79 milhões de processos e mais da metade (54,2%) se referia à execução. Em diversos tribunais as execuções representam mais de 60% do acervo.

Diversos motivos podem ser apontados para explicar a falta de efetividade nas execuções, como a falta de preparo dos profissionais jurídicos para lidar com o processo de execução ou mesmo a ausência de informações acerca do patrimônio do devedor. Mas há um fator de fácil resolução que pode ajudar a sanar esse problema: investimento na atividade dos oficiais de justiça. E isso pode ser demonstrado com um exemplo emblemático.

No ano de 2012 o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (com jurisdição em Campinas e diversos municípios de São Paulo), um dos tribunais de grande porte do país, apresentava uma taxa de congestionamento nas execuções de 69,9%, ficando em 13º lugar entre os TRTs. Ou seja, encontrava-se com um desempenho bem abaixo do desejado.

Diante desse cenário, o TRT-15 realizou um diagnóstico da situação, ouviu as sugestões dos seus servidores e passou a adotar diversas providências, dentre elas a concessão de maior autonomia para os oficiais de justiça e a otimização do trabalho desses profissionais, com redução das diligências mais simples, disponibilização de ferramentas de investigação e constrição patrimonial, entre tantas outras medidas constantes atualmente no Provimento GP-CR nº 10/2018. Esse ato normativo começa a promover uma “gestão da execução”, permitindo por exemplo que o mandado seja dispensado se já ocorreu a penhora em outro processo, bastando ocorrer a solicitação de reserva de crédito (o ato praticado por um oficial de justiça em um processo irradia seus efeitos para outros processos do mesmo devedor, poupando energia processual de todos e evitando novas diligências desnecessárias). O conjunto dessas medidas elevou substancialmente os resultados alcançados pelo tribunal na efetivação do direito.

A título de ilustração, na 9ª Semana Nacional da Execução Trabalhista, realizada de 16 a 20 de setembro de 2019,  o TRT-15 obteve arrecadação de R$ 80.561.712,00 (oitenta milhões e quinhentos e sessenta e um mil e setecentos e doze reais), o que representou 58,9% do total arrecadado com leilões no país. Ou seja, sozinho o TRT-15 arrecadou mais do que todos os outros tribunais trabalhistas juntos. Acrescente-se que em matéria de execução os tribunais trabalhistas se encontram muito à frente dos estaduais e dos federais (de acordo com o Relatório de 2019 do CNJ, a taxa de congestionamento geral na execução na Justiça Trabalhista é de 73%; na Justiça Estadual, incluindo o TJDFT, é de 86%; e na Justiça Federal é de 88%).

E essas alterações promovidas pelo TRT-15 além de gerarem resultado rápido, também propiciaram reconhecimento. Pelo conjunto dos indicadores, em 2019 o TRT-15 foi premiado pelo Conselho Nacional de Justiça como a melhor Corte Trabalhista do ano de 2019. O EXE-15, plataforma que otimiza rotinas da fase de execução e que conta com intensa cooperação dos oficiais de justiça, tem despertado o interesse de outros tribunais pelos resultados alcançados.

Outra experiência de grande relevância que merece ser aprimorada diz respeito ao projeto “Oficial de Justiça Conciliador” encampado pelo oficial de Justiça Ricardo Prado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Em apertada síntese, o projeto objetiva qualificar os oficiais de justiça para que em todos os contatos com as partes do processo apliquem diversas técnicas e estimulem alguma proposta de conciliação, certificando nos autos qualquer sinalização positiva da parte nesse sentido; tudo de acordo com o art. 154, VI, do novo CPC.

O projeto já vem apresentando resultados relevantes em Santa Catarina e foi muito bem recebido por tribunais e oficiais de justiça de outros estados e até de outros países. Em evento realizado em Buenos Aires no final do ano de 2019, autoridades presentes manifestaram o intuito de levar a ideia para o projeto de novo Código de Processo Civil, que se encontra sendo debatido no Senado da Argentina.

Fácil perceber, ademais, que a conciliação pode ser realizada também de forma concomitante com a execução. Após o oficial de justiça realizar o bloqueio de bens, muitas vezes a parte manifesta o interesse na resolução da questão. Enfim, os oficiais de justiça em contato permanente com as partes e tendo conhecimento amplo do processo e do patrimônio do devedor podem utilizar diversas técnicas para aproximar as partes e resolver a demanda pela autocomposição.

Inclusive, atualmente estão aparecendo diversas plataformas eletrônicas de resolução de conflitos. Os oficiais de justiça podem receber um instrumento dessa natureza e se valendo de pesquisas e diligências externas estimular milhares de acordos, contribuindo decisivamente na redução do acervo processual do Judiciário.

Essas duas iniciativas, entre tantas outras, demonstram o quanto o trabalho dos oficiais de justiça pode ser relevante para a efetivação dos direitos no Brasil. Ainda que possam ser melhoradas em diversos aspectos, essas experiências já evidenciam que os oficiais de justiça são profissionais extremamente qualificados e aptos para entregar o resultado útil do processo para as partes, sendo necessário apenas uma nova estrutura de trabalho, ferramentas disponíveis, capacitação e valorização (reconhecimento como carreira típica de Estado, como atividade de risco com todos os consectários legais, porte de arma etc.).

Isso posto, pode-se avaliar com mais profundidade o Projeto de Lei nº 6.204/2019 proposto pela Senadora Soraya Thronicke do PSL/MS com o objetivo de “desjudicializar” a execução civil e transferir para o tabelião todos os atos processuais de exame do requerimento e análise do título executivo, realização de consultas de base de dados para localização do devedor e de seu patrimônio, penhoras, avaliações, expropriações, pagamento ao exequente, extinção da execução, suspensão da execução etc. O referido projeto amplia as atribuições do tabelião ao delegar para ele as funções de “agente de execução”, citando na justificativa como referência a experiência estrangeira, especialmente a de Portugal.

Não obstante, a despeito da correta análise na justificativa do PL acerca das dificuldades da execução no Brasil, conforme demonstrado acima há uma solução já testada muito mais fácil, rápida e econômica: conceder-se maior autonomia, capacitação, valorização e sistemas de investigação e constrição patrimonial para os oficiais de justiça. Ora, os oficiais de justiça são profissionais qualificados que possuem grande conhecimento acumulado e expertise na execução. São 32.000 servidores públicos concursados em todo o país e que trabalham há muitos anos praticando todos os atos de execução de maneira técnica, imparcial e dentro das balizas definidas pela legislação de regência.

Com medidas simples, o TRT-15 alcançou um resultado primoroso na execução valorizando a expertise dos oficiais de justiça. A rigor, o Brasil já possui o “seu” agente de execução: os oficiais de justiça. Seria até possível utilizar o termo “desjudicializar” se isso significar retirar do juiz o controle mais próximo e transferir para os oficiais de justiça maior autonomia dentro do processo executivo. Mas os tabeliães não praticam nenhuma atividade sequer parecida com as medidas coercitivas de um processo extremamente contencioso como a execução.

O projeto possui vários problemas graves, como por exemplo a possibilidade de substabelecimento do tabelião para seus substitutos e escreventes, que passarão a ser agentes de execução, ou seja, assumirão funções extremamente complexas pessoas que sequer foram aprovadas em concurso público e que não possuem qualificação para a atividade. Para além disso, de acordo com o projeto, havendo necessidade de medidas coercitivas, o tabelião iria requerer para o juiz emitir uma ordem para a autoridade policial (art. 20), isto é, a polícia extremamente sobrecarregada (por vezes, são meses para realizar uma prisão) receberia a incumbência de realizar milhares de atos de execução civil (penhoras, arrestos, sequestros, buscas e apreensões, reintegrações de posse etc.), acarretando um colapso do sistema.

Mas o que mais impressiona é que o projeto não avança praticamente nada no que realmente importa, ou seja, nos mecanismos de investigação e constrição patrimonial e separa quem realizaria as pesquisas – o tabelião – de quem cumpriria – a autoridade policial (um dos motivos do sucesso da nova forma de trabalho do oficial de justiça é exatamente o fato de que ele realiza as pesquisas e efetua a diligência externa munido de todas as informações necessárias para o seu êxito). Portanto, a aprovação do PL 6.204/2019 representaria um retrocesso significativo na efetividade do processo de execução no Brasil.

Vale ressaltar ainda que o oficial de justiça possui relevante atuação na tutela satisfativa e cautelar dos diversos ramos do Direito: Penal, Trabalhista, Civil, Tributário, Administrativo etc. Assim, o oficial de justiça já precisará da capacitação e das ferramentas adequadas para os demais ramos em que os tabeliães não atuariam (inclusive o projeto mantém para os oficiais de justiça as execuções civis envolvendo incapazes, presos, pessoas jurídicas de direito público, massa falida e insolvente civil), tornando-se um custo enorme para o Estado promover também estruturação e treinamento de tabeliães e policiais no Brasil inteiro para o trabalho de agente de execução. Em síntese, esse projeto deve ser arquivado pela completa inadequação com o arquétipo nacional.

Os oficiais de justiça são profissionais qualificados e que possuem uma relevância fundamental no mercado de crédito do país. Mesmo com todos os problemas da execução, pelo trabalho dos oficiais de justiça são bilhões de reais recuperados todos os anos para os credores, incluindo o Fisco, o que permite investimento nos serviços públicos de saúde, educação etc.

Portanto, é fato incontroverso que o Judiciário no Brasil enfrenta um problema muito sério para conseguir resolver os processos de execução. Contudo, a solução se apresenta mais fácil, econômica e simples do que se imagina: conceder maior autonomia, capacitar, valorizar, oferecer sistemas modernos e ferramentas de investigação e constrição patrimonial e melhor estruturar o trabalho dos oficiais de justiça.

O avanço tecnológico se impõe à atividade dos oficiais de justiça nesse momento como um processo inexorável. O cenário se assemelha à realidade que a Olivetti enfrentou com suas máquinas de datilografia no início da década de 1980, tentando resistir contra os computadores da IBM, Apple e outras. O único caminho viável é o da modernização.

Sobre o autor
Gerardo Alves Lima Filho

Presidente do Sindicato dos Oficiais de Justiça do DF e Oficial de Justiça do TJDFT. Bacharel em Direito pela UFBA, Especialista em Direito pela ESMA/DF e Mestre em Direito pelo UniCEUB. Foi diretor e gestor de diversas entidades representativas de servidores públicos, exerceu o cargo de Policial Rodoviário Federal e foi professor de diversas faculdades de Direito de Direito Empresarial, Civil, Processual Civil e Prática Civil. Publicou inúmeros artigos em sites e revistas jurídicas especializadas. Possui experiência em Direito Administrativo, Previdenciário, Constitucional, Empresarial, Tributário, Civil, Processo Civil, Trabalho, Processo do Trabalho, Penal e Processual Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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A atividade dos oficiais de justiça se moderniza para garantir o resultado útil do processo no pós-pandemia e afasta desjudicialização da execução civil (PL 6.204/2019)

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