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Genocídio sanitário no Brasil:

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Agenda 05/08/2020 às 16:25

Superando eventuais pressões políticas que recaiam sobre os organismos judiciários nacionais, o objetivo formalizado no estatuto do TPI é prover instrumento internacional contra arbitrariedades e barbáries cometidas contra a pessoa humana.

Introdução

A conduta omissiva e comissiva de Jair Messias Bolsonaro, Presidente da República Federativa do Brasil, tem sido determinante para o alastramento do vírus Covid-19 e para o elevado grau de letalidade da doença em território brasileiro[1], especialmente entre pessoas economicamente desassistidas e desamparadas de serviços públicos essenciais, como, por exemplo, serviços de saúde e de saneamento básico[2]. Mais do que simples negligência e inércia do chefe do Poder Executivo, identifica-se um conjunto de atos específicos, dissonantes das recomendações médicas e científicas mais confiáveis, que contribuem, diretamente, para a inocuidade das necessárias medidas de isolamento social, de conscientização do público e de coordenação de esforços entre autoridades públicas e agentes privados na contenção da pandemia e no tratamento digno de pessoas infectadas. A política deliberadamente anticientífica do Presidente do Brasil tem resultado no contágio descontrolado e no elevado número de óbitos na população brasileira.

O arcabouço legal constituinte do sistema criminal internacional tem, como um de seus objetivos precípuos, investigar, processar e punir indivíduos que praticam atrocidades contra grupos humanos, inclusive contra sua própria população. Superando eventuais pressões políticas que recaíam sobre os organismos judiciários nacionais, o objetivo formalizado no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, conhecido como Estatuto de Roma, é oferecer instrumento internacional contra arbitrariedades e barbáries violadoras de direitos básicos, bem como punir, criminalmente, indivíduos responsáveis por graves crimes internacionais, independentemente do cargo e da posição que ocupam[3].

Neste artigo, o objetivo do autor é demonstrar que a conduta de Jair Bolsonaro, a despeito das atenuações discursivas e da inércia danosa do Poder Judiciário brasileiro, constitui crime internacional tipificado no Estatuto de Roma. Em razão disso, os atos de Bolsonaro ensejam a investigação e o julgamento pelo TPI, mediante aplicação do instituto da entrega (surrender) do mandatário brasileiro à jurisdição da corte internacional, conforme compromisso convencional assumido pelo Estado brasileiro[4]. Se, em termos práticos, a realização da entrega de mandatário em exercício é medida improvável, a natureza imprescritível dos crimes enumerados no Estatuto de Roma torna mais realista a punição de Bolsonaro após sua saída do cargo, seja em decorrência de cumprimento do mandato ou em razão de interrupção deste por motivo de renúncia ou impedimento.

O artigo está dividido em três partes, que se somam a esta introdução. Na primeira parte, discorre-se sobre a sistemática de funcionamento do direito penal internacional, desde suas origens, com os tribunais de Nuremberg e Tóquio, até a constituição do Tribunal Penal Internacional. Em seguida, discorre-se especificamente sobre os fatos delituosos cometidos pelo Presidente do Brasil durante a pandemia de Covid-19, em 2020. A terceira parte é dedicada à análise da aplicação dos dispositivos do Estatuto de Roma aos atos praticados por Jair Bolsonaro e por seus subordinados na condução da política de combate e controle da pandemia no Brasil, com destaque especial para discussão dos elementos psicológicos inerentes às condutas tipificada no Estatuto.


1. Sistema penal internacional: de Nuremberg à Haia

A alegação de existência de um sistema penal internacional é ideia relativamente recente, a despeito de suas premissas remontarem aos tribunais de guerra e, mais remotamente, aos preceitos de direito humanitário. O reconhecimento de um sistema penal internacional, cujo ápice foi a criação do Tribunal Penal Internacional, constitui inovação jurídica dos últimos decênios, porque a criminalização de práticas individuais, conforme direito internacional clássico, deveria, respeitado o princípio da soberania, ser objeto de jurisdição dos Estados nacionais. Fatos históricos específicos, nos quais se evidenciou a incapacidade dos Estados em exercer o jus puniendi em situações de vigência de estado não democrático de direito, ensejaram a necessidade de conceber instâncias internacionais de persecução penal de indivíduos acusados de cometerem graves crimes, muitos dos quais autorizados por sua legislação nacional ou inalcançáveis pelas instâncias judicantes domésticas, seja por causa da politização dos magistrados, devido à corrupção de juízes e de promotores ou em decorrência de simples ineficiência do processo penal, decorrência de temor excessivo ou de negligência do Poder Judiciário[5].

A celebração do Estatuto de Roma e a criação do Tribunal Penal Internacional tiveram a finalidade de instituir, de maneira permanente e juridicamente formalizada, um sistema de persecução criminal, isento desses problemas que, periodicamente, acometem as jurisdições nacionais, sem a necessidade de recorrer a soluções temporárias e pontuais, as quais, com frequência, com base em princípios importantes do direito penal pós-iluminista, tinham sua legitimidade questionada e, por isso, tinham alcance limitado. 

Os antecedentes mais importantes do sistema penal internacional contemporâneo são os tribunais ad hoc concebidos após a Segunda Guerra Mundial. Embora se possa vislumbrar a tipicidade dos crimes internacionais nas normas de direito humanitário formuladas no século 19, foi o estabelecimento do Tribunal de Tóquio e, principalmente, do Tribunal de Nuremberg, que julgou políticos e militares nazistas, o marco mais relevante para o direito penal internacional. Os dois organismos judicantes apresentaram determinadas características que, posteriormente, seriam adotadas por outros tribunais internacionais de natureza penal.

Os magistrados de ambos os tribunais alegaram basear sua atuação em duas fontes distintas do direito: costume internacional e princípios gerais do direito, ambas formalizadas no Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional. Em razão de sua natureza ad hoc, e de sua congênita e problemática relação institucional com os vencedores do conflito, esses tribunais, na perspectiva dos réus e de seus patronos, teriam violado os princípios básicos do processo penal, como, por exemplo, o princípio do juiz natural, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Adicionalmente, ao se basearem em normas consuetudinárias e em princípios abstratos e indefinidos, os julgamentos violariam o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege praevia, expresso também na forma do princípio da legalidade, que vigora na maior parte dos ordenamentos jurídicos ocidentais, como forma de garantia individual contra arbitrariedades do Estado.

A despeito da contestação das bases jurídicas desses tribunais, ambos foram modelos para criação dos tribunais ad hoc para ex-Iugoslávia, para Ruanda e para Serra Leoa, os quais também foram constituídos após a prática de atos graves, violadores de direitos elementares dos seres humanos. O forte amparo da sociedade internacional, a existência de normas convencionais de direitos humanos aplicáveis aos casos e o antecedente de Tóquio e de Nuremberg foram aspectos importantes de legitimação dos tribunais.

No ano de 1998, foi celebrado o Estatuto de Roma, que, ao tipificar crimes, estabelecer penas e conceber procedimento de investigação e de processamento, bem como esquemas de cooperação entre os Estados, formaliza o sistema penal internacional. A aprovação do Estatuto e a criação do TPI atendem a demandas por punição efetiva a indivíduos responsáveis por crimes graves, de repercussão internacional, bem como consiste em instrumento efetivo de amparo aos direitos humanos[6].

O texto do Estatuto de Roma é relativamente longo e divide-se em treze capítulos e cento e vinte e oito artigos. Aspectos processuais e materiais são igualmente disciplinados no documento, bem como elementos atinentes ao sistema investigatório, acusatório e de cooperação entre o Estado o TPI.

A jurisdição do TPI é complementar à jurisdição interna dos Estados, conforme disposto no Preâmbulo e no art. 1 do Estatuto de Roma. Em outros termos, significa que o Tribunal deve atuar após esgotamento dos recursos internos ou em caso de denegação de justiça, sem constituir, portanto, instância revisora de processos nacionais. O princípio da complementariedade, que também é observado nos tribunais internacionais de direitos humanos, corrobora a ideia de respeito à soberania dos Estados, os quais tem a prerrogativa de investigar, processar e apenar os indivíduos que cometem crimes tipificados no Estatuto, os quais, em sua maioria, também são consagrados como condutas criminosas na legislação nacional dos Estados.

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O Capítulo I trata de aspectos atinentes à criação do Tribunal. A relação do Tribunal com as Nações Unidas (Artigo 2o), a localização da sede do tribunal e o regime jurídico e os poderes do TPI (Artigo 3o) são alguns dos temas disciplinados no Capítulo 1 do Estatuto. Importante destacar que, consoante o art. 2, a sede do Tribunal é a cidade de Haia, assim como a o Corte Internacional de Justiça, órgão judicante vinculando à Organização das Nações Unidas (ONU).

Competência, admissibilidade e direito aplicável são objeto do Capítulo II. Um dos dispositivos mais relevantes do Estatuto de Roma é o art. 5, que contém os quatro tipos de crimes passíveis de apreciação pelo TPI: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão. Esses são os quatro gêneros de crimes abarcados pela jurisdição do TP. Nos dispositivos seguintes do Estatuto de Roma, os crimes são especificados e exemplificados.

O crime de genocídio é estipulado no art. 6 do Estatuto de Roma. Seu texto é o seguinte:

Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.

Os crimes contra a humanidade estão previstos no art. 7 do Estatuto de Roma. Eles consistem em um conjunto diverso de atos que podem ser praticados alternativamente ou cumulativamente. Os atos enumerados são os seguintes: a) homicídio; b) extermínio; c) escravidão; d) deportação ou transferência forçada de uma população; e) prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; f) tortura; g) agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; h) perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; i) desaparecimento forçado de pessoas; j) crime de apartheid; k) outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental. As definições dos termos enumerados estão contidas no parágrafo segundo.

O art. 8º trata dos crimes de guerra, os quais concernem à violação de normas de direito humanitário, em especial aquelas contidas nas Convenções de Genebra, bem como outras condutas adotadas durante conflitos armados. Os crimes do art. 8 ocorrem em situações específicas de deflagração entre entidades Estatais, ou entes juridicamente constituídos para fins de direito humanitário. O tratamento de prisioneiros, a vedação de tortura de combatentes capturados, a preservação da população civil e de localidades como templos religiosos e hospitais são alguns dos crimes de guerra internacionalmente consagrados.

O crime de agressão, incialmente, não fora definido no texto do Estatuto de Roma. Na Conferência das Partes, realizada em 2010, em Kampala, definiu-se agressão como “uso da força armada por parte de um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro Estado”[7]. Essa inclusão textual no Estatuto não foi aceita pela integridade dos Estados que ratificaram o texto original, o que torna o dispositivo referente à agressão apenas parcialmente aplicável às partes do tratado.

Conforme o art. 11, ainda no Capítulo II, as disposições do Estatuto de Roma não são aplicáveis retroativamente (competência ratione temporis). A jurisdição do TPI, portanto, deve ser exercida ex nunc, tomada como data fundamental a ratificação do tratado pelo Estado. Essa previsão, coerente com a lógica das normas penais internas, tem, adicionalmente, o objetivo de incentivar a ratificação do Estatuto, mesmo por Estados que tiveram passado autoritário, no qual, provavelmente, foram cometidos os crimes tipificados no documento internacional.

Os art. 12 e 13 referem-se, respectivamente, às condições prévias ao exercício da jurisdição do TPI e à jurisdição efetiva do TPI. O art. 13 é relevante, pois enumera as três situações nas quais o TPI é efetivamente acionado. Embora sejam situações distintas, todas elas contam com a participação do Procurador, o qual, por analogia com os processos penais nacionais, tem a titularidade da ação perante o TPI:

Artigo 13 (Exercício da Jurisdição)

O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se refere o artigo 5o, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se: a) Um Estado Parte denunciar ao Procurador, nos termos do artigo 14, qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes; b) O Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes; ou c) O Procurador tiver dado início a um inquérito sobre tal crime, nos termos do disposto no artigo 15. (destaques do autor)

O dispositivo prevê três situações distintas em que o TPI é acionado pelo Procurador: notitia criminis de Estado parte, pedido do Conselho de Segurança, nos termos do Capítulo VII da Carta da ONU, e após conclusão de inquérito, nos termos do art. 15 do Estatuto. No primeiro caso, trata-se de mecanismo de denúncia de outro Estado parte, de maneira similar ao funcionamento dos tribunais de direitos humanos. Por razões políticas e diplomáticas, inclusive temor de retaliação, o mecanismo costuma ser pouco utilizado. A segunda situação estabelece o vínculo funcional, não subordinado, entre o TPI e o sistema da ONU, mais especificamente entre o Tribunal e o Conselho de Segurança, órgão internacional mais relevante no tratamento de problemas referentes à guerra e paz. A terceira hipótese para o exercício de jurisdição consiste no prosseguimento da investigação conduzida pelo Procurador.

Este, após ser informado de situação potencialmente violadora dos preceitos do Estatuto, pode proceder investigação criminal e, posteriormente, iniciar ação penal no TPI.

O art. 17 contém conjunto de questões relativas à admissibilidade da ação penal no TPI. A ideia de subsidiariedade do TPI é reforçada no art. 17. Este, no parágrafo primeiro, determina que não será iniciada ação penal no TPI em casos nos quais a investigação e processos estiverem em curso no Estado que tem jurisdição sobre o caso. Não haverá processamento da ação penal se o indivíduo acusado tiver sido absolvido, em instância interna, pelo ato supostamente criminoso. Importante destacar a alínea d do parágrafo, que estabelece a necessidade incontornável de gravidade do ato.

O parágrafo segundo, por sua vez, determina os requisitos para identificar a vontade do Estado em não punir o indivíduo acusado de praticar os crimes tipificados no Estatuto. A demora injustificada do processo, a instauração de ação penal com finalidade protelatória ou desviante do objetivo punitivo e a ausência de condução independente do processo são, alternativamente, pressupostos para exercício da jurisdição do TPI.  

Os princípios gerais regentes do sistema penal internacional estão previstos no Capítulo III do Estatuto de Roma. Essas normas retomam princípios tradicionais do direito penal, consolidados nos ordenamentos nacionais e corroborados pelas práticas dos tribunais nacionais e internacionais. O princípio da legalidade, expresso pelo brocado nullum crimen, nulla poena sine praevia legis, está contido nos art. 22 e 23 do Estatuto de Roma. A irretroatividade ratione personae consta do art. 24. A reponsabilidade criminal individual é objeto do art. 25. A inimputabilidade de menores de dezoito anos, previsão também frequente nas diversas jurisdições nacionais, consta do art. 25.

Destacam-se, entretanto, os princípios especiais instituídos na sistemática do Estatuto de Roma. Esses princípios, diferentemente dos anteriores, foram consolidados pela evolução do direito penal internacional. No art. 27 está contido o princípio da irrelevância da qualidade oficial do indivíduo. O dispositivo apresenta o seguinte texto:

Artigo 27 (Irrelevância da Qualidade Oficial)

1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena. 2. As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa. (destaques do autor)

Outro importante princípio está previsto no artigo 28 do Estatuto de Roma, acerca da responsabilização de superiores hierárquicos. Conforme esse dispositivo os chefes militares e políticos serão responsabilizados pelas condutas criminosas de seus subordinados hierárquicos.

A imprescritibilidade, os elementos psicológicos e as causas de exclusão da responsabilidade criminal estão previstas, respectivamente, nos art. 29, 30 e 31 do Estatuto de Roma. A imprescritibilidade decorre da extrema gravidade dos crimes tipificados no Estatuto. Constituindo, simultaneamente, crime internacional e violação explicita aos direitos humanos, o indivíduo praticante dos tipos penais estipulados pelo Estatuto não pode ser beneficiado pelo decurso do tempo, ainda que se alegue a necessidade de segurança jurídica. A certeza de punição dos graves crimes é valor que se sobrepõe, portanto, a estabilidade das relações sociais e jurídicas.

Os elementos psicológicos, que se referem a intencionalidade do agente em relação à conduta e ao resultado desta, serão tratados, com mais detalhes, mais adiante, antecipando-se, entretanto, que eles são fundamentais na caracterização das condutas delituosas previstas pelo Estatuto. O art. 31, em consonância com os ordenamentos nacionais, menciona a incapacidade mental do agente, a atuação sob coação, a legitima defesa e o estado de necessidade como excludentes de responsabilidade do indivíduo que incorre nos atos delituosos tipificados no Estatuto.

Disposições sobre erro (de fato e de direito) e sobre conduta criminosa em cumprimento de decisão hierárquica ou determinação legal estão contidas nos art. 32 e 33. O erro de fato, se prejudicar o dolo do agente, considerado os termos do art. 30, pode afastar a responsabilização do agente. O erro de direito, por sua vez, considerada a extrema gravidade dos crimes previstos no Estatuto, bem como a repulsa amplamente disseminada dessas condutas, não afasta a responsabilização do agente.

O Capítulo IV prescreve os elementos de composição e de administração do Tribunal. Os órgãos do Tribunal, as características do exercício das funções dos juízes e as qualificações para candidatura e eleição dos magistrados são regulados, respectivamente, nos art. 34, 35 e 36. As vagas de magistrados, a presidência e os juízos figuram, respectivamente, nos art. 37, 38 e 39. O gabinete do Procurador, a Secretaria e o pessoal administrativo estão disciplinados, respectivamente, nos art. 42, 43 e 44. Medidas disciplinares aplicáveis aos funcionários do tribunal, privilégios e imunidades dos magistrados e do Procurador e vencimentos e subsídios de todo pessoal da organização constam dos art. 47, 48 e 49. Aspectos procedimentais e processuais são prescritos nos artigos seguintes: línguas de trabalho (art. 50), regulamento processual (art. 51) e regimento do tribunal (art. 52).

O inquérito e o procedimento criminal estão contidos no Capítulo V do Estatuto de Roma. Abertura do inquérito, funções e poderes do Procurador durante o inquérito e direito das pessoas no decurso da investigação são matérias disciplinadas, respectivamente, nos art. 53, 54 e 55. Aspectos atinentes ao juízo de instrução figuram nos três artigos subsequentes (art. 56, 57 e 58). O procedimento de detenção cautelar e o início da fase instrutória constam dos art. 59 e 60. Tanto o processo de investigação pelo procurador como as atividades do juízo de instrução dependem de constante cooperação dos Estados, os quais devem prestar informações requeridas pelo juízo e garantir a veracidade de dados e de documentos entregues ao TPI.

O julgamento pelo TPI é disciplinado no Capítulo VI. O local do julgamento (art. 62), a presença do acusado na sessão de julgamento (art. 63), as funções e poderes do juízo de julgamento em primeira instância (art. 64), os procedimentos em caso de confissão (art. 65), a presunção de inocência (art. 66) e os direitos do acusado (art. 67) são aspectos regrados no Capítulo VI, o qual disciplina também a proteção das vítimas e das testemunhas, a produção de provas e as sanções por desrespeito ao Tribunal.

As penas estão previstas no Capítulo VII do Estatuto de Roma. O art. 77 enumera as penas aplicáveis aos condenados pelo Tribunal:

Artigo 77 (Penas Aplicáveis)

1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas: a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem,

2. Além da pena de prisão, o Tribunal poderá aplicar: a) Uma multa, de acordo com os critérios previstos no Regulamento Processual; b) A perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa-fé. (destaques do autor)

Os artigos seguintes do Capítulo VII regulam a determinação da pena, o estabelecimento de fundo financeiro em favor das vítimas e a não interferência no regime de aplicação de penas nacionais e nos direitos internos.

O Capítulo VIII trata dos recursos e de revisões do processo tramitado no TPI. Conforme o art. 81:

1. A sentença proferida nos termos do artigo 74 é recorrível em conformidade com o disposto no Regulamento Processual nos seguintes termos: a) O Procurador poderá interpor recurso com base num dos seguintes fundamentos: i) Vício processual; ii) Erro de fato; ou iii) Erro de direito; b) O condenado ou o Procurador, no interesse daquele; poderá interpor recurso com base num dos seguintes fundamentos: i) Vício processual; ii) Erro de fato; iií) Erro de direito; ou iv) Qualquer outro motivo suscetível de afetar a equidade ou a regularidade do processo ou da sentença. 2. a) O Procurador ou o condenado poderá, em conformidade com o Regulamento Processual, interpor recurso da pena decretada invocando desproporção entre esta e o crime; b) Se, ao conhecer de recurso interposto da pena decretada, o Tribunal considerar que há fundamentos suscetíveis de justificar a anulação, no todo ou em parte, da sentença condenatória, poderá convidar o Procurador e o condenado a motivarem a sua posição nos termos da alínea a) ou b) do parágrafo 1o do artigo 81, após o que poderá pronunciar-se sobre a sentença condenatória nos termos do artigo 83; c) O mesmo procedimento será aplicado sempre que o Tribunal, ao conhecer de recurso interposto unicamente da sentença condenatória, considerar haver fundamentos comprovativos de uma redução da pena nos termos da alínea a) do parágrafo 2o. (destaques do autor)

Em relação à manutenção da prisão do réu durante a apreciação do recurso, o mesmo artigo 81 prevê: 

3. a) Salvo decisão em contrário do Juízo de Julgamento em Primeira Instância, o condenado permanecerá sob prisão preventiva durante a tramitação do recurso; b) Se o período de prisão preventiva ultrapassar a duração da pena decretada, o condenado será posto em liberdade; todavia, se o Procurador também interpuser recurso, a libertação ficará sujeita às condições enunciadas na alínea c) infra; c) Em caso de absolvição, o acusado será imediatamente posto em liberdade, sem prejuízo das seguintes condições: i) Em circunstâncias excepcionais e tendo em conta, nomeadamente, o risco de fuga, a gravidade da infração e as probabilidades de o recurso ser julgado procedente, o Juízo de Julgamento em Primeira Instância poderá, a requerimento do Procurador, ordenar que o acusado seja mantido em regime de prisão preventiva durante a tramitação do recurso; ii) A decisão proferida pelo juízo de julgamento em primeira instância nos termos da sub-alínea i), será recorrível em harmonia com as Regulamento Processual. (destaques do autor)

Os recursos de decisões interlocutórias, a revisão da sentença condenatória ou da pena e a indenização do detido ou do condenado constam, respectivamente, dos art. 82, 84 e 85 do Estatuto de Roma.

Sob a perspectiva do Estado, um dos capítulos mais relevantes do Estatuto é o IX, que trata da cooperação internacional e do auxílio judiciário, pressupostos para o adequado exercício da jurisdição do tribunal e garantia do respeito à soberania dos Estados. A obrigação de cooperar e as disposições gerais sobre cooperação estão previstas, respectivamente, nos art. 86 e 87. O art. 88, por sua vez, determina que os procedimentos internos devem ser adequados à obrigação internacional de cooperar com o Tribunal. Um dos dispositivos mais relevantes é o art. 89, que trata da entrega:

Artigo 89 (Entrega de Pessoas ao Tribunal)

1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos. (destaques do autor)

Em caso de utilização dos tribunais nacionais para impugnação da entrega, prescreve-se:

2. Sempre que a pessoa cuja entrega é solicitada impugnar a sua entrega perante um tribunal nacional com base no princípio ne bis in idem previsto no artigo 20, o Estado requerido consultará, de imediato, o Tribunal para determinar se houve uma decisão relevante sobre a admissibilidade. Se o caso for considerado admissível, o Estado requerido dará seguimento ao pedido. Se estiver pendente decisão sobre a admissibilidade, o Estado requerido poderá diferir a execução do pedido até que o Tribunal se pronuncie. (destaques do autor)

Os Estados devem autorizar medidas de captura e de detenção, em conformidade com a legislação interna, a qual deverá ser adaptada a esses procedimentos:

3. a) Os Estados Partes autorizarão, de acordo com os procedimentos previstos na respectiva legislação nacional, o trânsito, pelo seu território, de uma pessoa entregue ao Tribunal por um outro Estado, salvo quando o trânsito por esse Estado impedir ou retardar a entrega; b) Um pedido de trânsito formulado pelo Tribunal será transmitido em conformidade com o artigo 87 (...); c) A pessoa transportada será mantida sob custódia no decurso do trânsito; d) Nenhuma autorização será necessária se a pessoa for transportada por via aérea e não esteja prevista qualquer aterrissagem no território do Estado de trânsito; e) Se ocorrer, uma aterrissagem imprevista no território do Estado de trânsito, poderá este exigir ao Tribunal a apresentação de um pedido de trânsito nos termos previstos na alínea b). O Estado de trânsito manterá a pessoa sob detenção até a recepção do pedido de trânsito e a efetivação do trânsito. Todavia, a detenção ao abrigo da presente alínea não poderá prolongar-se para além das 96 horas subsequentes à aterrissagem imprevista se o pedido não for recebido dentro desse prazo. 4. Se a pessoa reclamada for objeto de procedimento criminal ou estiver cumprindo uma pena no Estado requerido por crime diverso do que motivou o pedido de entrega ao Tribunal, este Estado consultará o Tribunal após ter decidido anuir ao pedido. (destaques do autor)

O conteúdo do pedido de entrega, a prisão preventiva e outras formas de cooperação estão previstos, respectivamente, nos artigos 91, 92 e 93 do Estatuto de Estatuto de Roma. Importante destacar que o art. 102 do Estatuto, a fim de evitar problemas com Estados que vedam determinadas formas de retirada compulsória de nacionais de seu território, estabelece clara distinção entre a entrega e a extradição, formalizando a diferenciação entre os dois conceitos penais.

Sobre o autor
Mauro Kiithi Arima Junior

Bacharel em Direito e Relações Internacionais pela USP. Especialista em Direito Político, Administrativo e Financeiro pela FD USP. Especialista em Política Internacional pela FESPSP. Mestre em Direito Internacional pela USP. Doutor em Direito Internacional pela USP. Advogado, professor e consultor jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Arima Junior. Genocídio sanitário no Brasil:: Por que Jair Bolsonaro deve ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6244, 5 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84408. Acesso em: 22 dez. 2024.

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