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A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DO ESTADO

Agenda 09/08/2020 às 10:39

O ARTIGO DISCUTE SOBRE RECENTE DECISÃO DO STF EM MATÉRIA DE PRISÃO PROVISÓRIA.

A BANALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DO ESTADO  

Rogério Tadeu Romano  

I – O FATO  

Segundo o site da Folha de São Paulo, o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), mandou soltar o secretário dos Transportes Metropolitanos de João Doria (PSDB), Alexandre Baldy (PP). A decisão foi tomada na noite do dia 7 de agosto do corrente ano. 

O secretário foi preso, no dia 6 de agosto, em um desdobramento da Operação Lava Jato do Rio de Janeiro. 

"Defiro o pedido liminar para suspender a ordem de prisão temporária decretada em relação ao reclamante. Expeça-se alvará de soltura. Comunique-se com urgência", escreveu Gilmar. A decisão atendeu pedido formulado pelos advogados de Baldy, Pierpaolo Cruz Bottini e Igor Sant'Anna Tamasauskas. 

O processo estava sob segredo de Justiça, derrubado por Mendes nesta sexta. "Tendo em vista a ausência de decretação de sigilo e de seus pressupostos legais, retifique-se a autuação para retirar o segredo de justiça dos autos", escreveu o ministro. 

As suspeitas que motivaram a prisão são de período anterior à nomeação dele ao Governo de São Paulo.  

A defesa de Baldy apresentou uma reclamação, que serve para se queixar do descumprimento de um posicionamento do Supremo. No caso, eles argumentam que a decisão de Bretas feriu entendimento da corte sobre a inconstitucionalidade da condução coercitiva. 

Segundo Bottini e Tamasauskas, a ordem de Bretas trata-se "de condução coercitiva travestida de prisão temporária". Os advogados afirmaram ainda que o juiz determinou a prisão "sem fundamentação legal e em substituição à condução coercitiva". 

II – A INCONSTITUCIONAL CONDUÇÃO COERCITIVA  

O instrumento, que era usado pela Operação Lava Jato, foi declarado inconstitucional pelo STF em junho de 2018. 

Ainda de acordo com Bottini e Tamasauskas, na inicial cujo pedido foi atendido por Gilmar, os fatos investigados não são atuais, o que não justificaria a prisão. "Resta evidente que seu único escopo [prisão] foi a condução forçada do reclamante [Baldy] para oitiva, sem intimação prévia". 

A condução coercitiva é o meio pelo qual determinada pessoa é levada à presença de autoridade policial ou judiciária. 

Discute-se a realização desse procedimento em sede de inquérito policial ou ainda de processo judicial, onde o investigado, o réu, é notificado para comparecimento no objetivo de depor e não quer comparecer. 

Bem acentua Uadi Lammego Bulos (Constituição Federal Anotada, São Paulo, Saraiva, 6ª edição, pág. 325) que há um privilégio contra autoincriminação, que retrata o princípio de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. 

Sendo assim tal privilégio, inserido em verdadeira garantia constitucional, como se lê do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, é manifestação: 

  1. Da cláusula da ampla defesa (artigo 5º, LV, da Constituição Federal); 
  2. Do direito de permanecer calado (artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal); 
  3. Da presunção da inocência (artigo 5º, LVII, da Constituição Federal); 

    O direito do acusado ao silêncio assume, como revelam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal, São Paulo, Malheiros, 1992, pág. 67), uma dimensão de verdadeiro direito, cujo exercício há de ser assegurado de maneira plena, sem acompanhamento de pressões, seja de forma direta ou direta, destinadas a induzi-lo a prestar um depoimento. 

    Assim, a leitura que deve ser feita  do artigo 186 do Código de Processo Penal, quando exige do juiz, ao informar ao acusado sobre a faculdade de não responder às perguntas formuladas, leva a considerar inconstitucional a parte que, de forma velada, esclarece que seu silêncio pode ser interpretado em prejuízo da defesa. 

    Lúcida a opinião de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (Curso de Direito Processual Penal, Salvador, Editora Jus Podivm, 7ª edição, pág. 123) quando consideram a condução coercitiva do indiciado, na fase do inquérito policial, uma medida de duvidosa constitucionalidade, mercê da garantia fundamentada no silêncio, que torna sem propósito a condução daquele que não deseja participar do interrogatório. Para eles, caso a autoridade policial repute indispensável a oitiva do indiciado que recusou atender a notificação, deverá noticiar tal fato ao juiz, pleiteando a condução coercitiva. 

    Disse bem Luiz Francisco Carvalho Filho, em artigo denominado "A banalização do arbítrio", na Folha de São Paulo, de 16 de dezembro de 2017:   

    "É a banalização do arbítrio. A detenção é rápida, dura só algumas horas, mas seus efeitos, evidentemente menos drásticos do que os decorrentes das prisões cautelares, também são devastadores para a reputação das pessoas. 

    A passageira restrição à liberdade, promovida por agentes desnecessariamente agressivos e armados, fingindo existir uma situação de perigo, tal como se disseminou a partir da Lava Jato, não se justifica por dois motivos: é inconstitucional e inútil.".  

    E acrescentou:  

    "Como a Constituição assegura o direito ao silêncio, a condução coercitiva serve apenas para escândalo jornalístico, não para dar eficiência à investigação." 

    Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a condução coercitiva de réu ou investigado para interrogatório, constante do artigo 260 do Código de Processo Penal (CPP), não foi recepcionada pela Constituição de 1988. A decisão foi tomada no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 395 e 444, ajuizadas, respectivamente, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O emprego da medida, segundo o entendimento majoritário, representa restrição à liberdade de locomoção e viola a presunção de não culpabilidade, sendo, portanto, incompatível com a Constituição Federal. 
     

III – A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL 

 Daí a razão do ajuizamento da reclamação constitucional diante do evidente abuso cometido.  

 Em duas situações se pode falar em reclamação: nas hipóteses de preservação de competência e ainda na garantia da autoridade das decisões. Na primeira, se ocorrer um ato que se ponha contra a competência do STF, quer para conhecer e julgar, originalmente, as causas mencionadas no item I, do artigo 102 da Constituição Federal, quer para o recurso ordinário no habeas corpus, o mandado de segurança, habeas data ou mandado de injunção decididos em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão, quer para o recurso extraordinário quando a decisão em única ou última instância, contrariar dispositivo constitucional, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, ou julgar válida lei ou ato de governo local contestado perante a Constituição Federal, é cabível a reclamação. A segunda hipótese para ajuizamento de reclamação abrange a garantia da autoridade das decisões.  

Na correta lição de José da Silva Pacheco(O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas, ,2ª edição, pág. 435) há de se preservar a autoridade da decisão, quer seja proferida em instância originária, quer em recurso ordinário ou em recurso extraordinário pelo STF; ou em instância originária, em recurso ordinário ou em recurso especial, pelo STJ. 

IV – A PRISÃO CAUTELAR POR FATOS PRETÉRITOS  

De outro modo, a prisão cautelar tem em conta fatos pretéritos.  

Matheus Teixeira lembrou, na linha do ministro Gilmar Mendes que fatos antigos não autorizam a decretação de prisão preventiva, como se lê de “Presunção de Não culpabilidade”.   

Ali foi dito: “Ainda que graves, fatos antigos não autorizam a decretação de prisão preventiva, sob pena de esvaziamento da presunção de não culpabilidade". Com esse argumento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu Habeas Corpus a Jacob Barata Filho e Lélis Teixeira. Ambos são empresários e prestam serviço de transporte público no Rio de Janeiro.  

Segundo Gilmar Mendes, apesar da gravidade, os fatos são "consideravelmente distantes no tempo da decretação da prisão". 

Na matéria, destaco entendimento do Superior Tribunal de Justiça: 

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Insta consignar, inicialmente, que a segregação cautelar deve ser considerada exceção, já que tal medida constritiva só se justifica caso demonstrada sua real indispensabilidade para assegurar a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal, ex vi do artigo 312 do Código de Processo Penal. A prisão preventiva, portanto, enquanto medida de natureza cautelar e excepcional, não pode ser utilizada como instrumento de punição antecipada do indiciado ou do réu, nem tampouco permite complementação de sua fundamentação pelas instâncias superiores. (...) Na hipótese, o paciente foi denunciado em fevereiro de 2012, pelo suposto cometimento de homicídio qualificado ocorrido em outubro de 2007. Em 17/04/2015 foi impronunciado pela d. juíza de primeiro grau (...). Ocorre que apenas em 11/10/2017 a prisão cautelar foi determinada em v. acórdão exarado pelo eg Tribunal a quo. Assim, reconheço flagrante ilegalidade em virtude da ausência de contemporaneidade entre a medida cautelar extrema e os fatos ensejadores de sua decretação. Ante o exposto, concedo a ordem para cassar a decisão do eg. Tribunal a quo e revogar a prisão preventiva decretada em desfavor do paciente, salvo se por outro motivo estiver preso. Em substituição à prisão, devem ser impostas medidas cautelares diversas previstas no art. 319 do Código de Processo Penal, a critério do d. juízo de primeira instância. (HC n.º 449.012/SP, STJ, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 19/06/2018). 

Na hipótese, verifica-se a ausência de elementos concretos que possam justificar a custódia cautelar, para garantir a ordem pública e a instrução criminal, bem como evitar a reiteração delitiva, tendo em vista, sobretudo, que o paciente não mais exerce o cargo de Prefeito do Município de Igarapava/SP. Destaco, ainda, que, do que consta dos autos, as condutas delituosas imputadas ao paciente datam de 2013 a 2016, o que afasta a contemporaneidade do fato justificante da custódia cautelar e a sua efetivação, autorizando a conclusão, segundo entendimento desta Corte Superior, pela desnecessidade da prisão preventiva para garantia da ordem pública. (...) Concedo a ordem, de ofício, revogar a custódia preventiva do paciente, mediante a imposição das medidas alternativas à prisão previstas no art.3199, incisos I, V e VIII e IX, doCódigo de Processo Penall.” (HC n.º 414.485, STJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJ 17/10/2017). 

V – CONCLUSÕES  

Na lição de Aury Lopes Júnior(Fundamentos do Processo Penal, Introdução Crítica, 3ª Edição, 2017, Editora Saraiva Jur, p. 56), a prisão cautelar transformou-se em pena antecipada, com uma função de imediata retribuição/prevenção. A ‘urgência’ também autoriza (?) a administração a tomar medidas excepcionais, restringindo direitos fundamentais, diante da ameaça à ‘ordem pública’, vista como um perigo sempre urgente”. Após fazer críticas de que as medidas de urgência atualmente tornaram-se a regra, quando deveriam por sua natureza constituírem a exceção, o ilustre professor conclui que “na esfera penal, considerando-se que estamos lidando com a liberdade e a dignidade de alguém, os efeitos dessas alquimias jurídicas em torno do tempo são devastadores. A urgência conduz a uma inversão do eixo lógico do processo, pois, agora, primeiro prende-se para depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do processo (que somente poderia decorrer de uma sentença, após decorrido o tempo de reflexão que lhe é inerente), que jamais poderá ser revertido, não só porque o tempo não volta, mas também porque não voltam a dignidade e a intimidade violentadas no cárcere.” 

Há um privilégio contra autoincriminação, que retrata o princípio de que ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. 

Sendo assim tal privilégio, inserido em verdadeira garantia constitucional, como se lê do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, é manifestação: 

  1. Da cláusula da ampla defesa (artigo 5º, LV, da Constituição Federal); 
  2. Do direito de permanecer calado (artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal); 
  3. Da presunção da inocência (artigo 5º, LVII, da Constituição Federal).  

     O direito do acusado ao silêncio assume, como revelam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal, São Paulo, Malheiros, 1992, pág. 67) uma dimensão de verdadeiro direito, cujo exercício há de ser assegurado de maneira plena, sem acompanhamento de pressões, seja de forma direta ou direta, destinadas a induzi-lo a prestar um depoimento. 

    Por certo houve mais uma operação mediática e censurável, na medida em que não havia razões para tal prisão para averiguações que era uma forma de condução coercitiva para obter informações do investigado.  

    Será caso, outrossim, de correição para a medida judicial tomada independente de avaliação se houve, por parte do magistrado de primeiro grau, de abuso de autoridade.  

     

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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