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A fraqueza normativa da Constituição

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Agenda 20/08/2020 às 15:10

A decisão do STF, na ADI 1.439, representou o reconhecimento dos limites normativos da Constituição na conformação jurídica de realidades e possibilidades econômicas, bem como revelou o caráter frágil da promessa normativa do salário mínimo.

Nossas leis, assim com a Constituição de 1988, são abundantes em garantias. O problema é que o irrealismo das promessas e reivindicações resulta no crescimento do mercado informal, à margem das leis. Isso enseja a formulação de uma nova lei sociológica: a redução do número de garantidos é diretamente proporcional à ampliação das garantias”

(Roberto Campos)

RESUMO: O presente texto tem como objeto analisar o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n. 1.439, feito no qual o Supremo Tribunal Federal analisou a compatibilidade do valor monetário do salário mínimo em face do art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, e reconheceu que esse valor não atende às expectativas constitucionais, frustrando as legítimas aspirações dos trabalhadores, com a erosão da normatividade do texto jurídico constitucional e com o abalo da respeitabilidade da eficácia das decisões judiciais, mormente em sede de direitos constitucionais dependentes de incrementos econômicos e financeiros. Nesse citado julgamento, tem-se um exemplo de fraqueza normativa da Constituição no sentido de que o texto normativo não pode, de per si, modificar a realidade.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. O julgamento da ADI 1.439; 3. A fraqueza normativa da Constituição; 4. Aspectos jurídicos e econômicos do salário mínimo; 5. Conclusões.


1 Introdução

O presente texto tem como objeto analisar o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade n. 1.439[1], feito no qual o Supremo Tribunal Federal analisou a compatibilidade do valor monetário do salário mínimo em face do art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, e reconheceu que esse valor não tem atendido às expectativas constitucionais. Tenha-se que a Corte também apreciou a ADI 1.458[2], aviada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS[3], que continha idêntica questão constitucional.

 A relevância desse julgado consiste no reconhecimento de que o aludido preceito (art. 7º, inciso IV) tem frustrado as legítimas aspirações dos trabalhadores, implicando a erosão da normatividade da Constituição e o abalo da respeitabilidade quanto à eficácia das decisões judiciais, mormente em sede de direitos constitucionais dependentes de incrementos econômicos e financeiros. Ademais, nesse julgamento, tem-se um exemplo de fraqueza normativa da Constituição no sentido de que o texto normativo não pode, de per si, modificar a realidade.

Para analisar esse aspecto da fraqueza normativa da Constituição lançaremos mão das clássicas categorias lançadas por Ferdinand Lassalle[4], Konrad Hesse[5] e Karl Loewenstein[6], que visitaram o tema da capacidade de o dever-ser (a norma) em moldar o ser (a realidade), de sorte que as promessas (expectativas) constitucionais se tornam ou possível esperança ou frustração ilusória. Como todos sabemos, Lassalle forjou a expressão “folha de papel” para rotular as Constituições que não conseguem se impor normativamente. Hesse procurou indicar caminhos possíveis transformar o miserável destino da “folha de papel” para que ela (Constituição) tenha força normativa. Na mesma toada os esforços intelectuais de Loewenstein discernindo a essência da Constituição em diálogo com cultura de uma determinada sociedade.

O pano de fundo é a questão do salário mínimo. Com efeito, todo aquele que ler o preceito contido no art. 7º, inciso IV, CF, percebe ser um mandamento extremamente ambicioso e que tem por finalidade alterar, para melhor, a realidade do trabalhador e de sua família que vem a receber como pagamento de seu trabalho valor de um salário mínimo. Todavia, há indiscutível divórcio entre o programa constitucional e a realidade social, visto que todas as vezes que os provimentos jurídicos desprezaram as complexas forças econômicas, houve enfraquecimento da normatividade jurídica, com graves prejuízos para os agentes econômicos. E, em vez de produzir paz e justiça, essas intervenções normativas desarmônicas com a reais possibilidades, provocam caos, iniquidades e frustrações. Em suma, deve o ordenamento jurídico (e a Constituição é parte integrante dele) viabilizar paz e justiça, por meio de promessas realistas e possíveis.


2 O julgamento da ADI 1.439

Nos autos da ADI 1.439, os partidos políticos PDT, PT, PC do B e PSB postularam[7] a inconstitucionalidade do art. 1º e respectivo parágrafo único da Medida Provisória n. 1.415, de 1996, por violação ao disposto no inciso IV do art. 7º, CF. Com efeito, em 29 de abril de 1996 foi editada a mencionada MPv 1.415, cujos preceitos impugnados tinham a seguinte redação:

Art. 1º O salário mínimo será de R$ 112,00 (cento e doze reais), a partir de 1º de maio de 1996.

Parágrafo único. Em virtude do disposto no caput deste artigo, o valor diário do salário mínimo corresponderá a R$ 3,73 (três reais e setenta e três centavos) e o seu valor horário a R$ 0,51 (cinquenta e um centavos). 

Segundo os requerentes, esse aludido preceito legal agredia o disposto no art. 7º, inciso IV, CF:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores rurais e urbanos, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

...

IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

Os requerentes relembraram à Corte que o salário mínimo que vigia, antes da edição da impugnada MPv 1.415, era no valor de R$ 100,00 (cem reais), e que o novo valor estabelecido (de R$ 112,00) aplicava um reajuste anual de 12%. Esse percentual de reajuste, segundo os requerentes, seria insuficiente para minorar a corrosão inflacionária do período. Em um intervalo inferior a quatro semanas, em 22 de maio de 1996, o Plenário do STF se reuniu para apreciar a medida cautelar da ação. Conquanto longa, segue a elucidativa ementa do acórdão:

DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER PÚBLICO.

- O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

SALÁRIO MÍNIMO - SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES VITAIS BÁSICAS - GARANTIA DE PRESERVAÇÃO DE SEU PODER AQUISITIVO.

 - A cláusula constitucional inscrita no art. 7º, IV, da Carta Política - para além da proclamação da garantia social do salário mínimo - consubstancia verdadeira imposição legiferante, que, dirigida ao Poder Público, tem por finalidade vinculá-lo à efetivação de uma prestação positiva destinada (a) a satisfazer as necessidades essenciais do trabalhador e de sua família e (b) a preservar, mediante reajustes periódicos, o valor intrínseco dessa remuneração básica, conservando-lhe o poder aquisitivo. - O legislador constituinte brasileiro delineou, no preceito consubstanciado no art. 7º, IV, da Carta Política, um nítido programa social destinado a ser desenvolvido pelo Estado, mediante atividade legislativa vinculada. Ao dever de legislar imposto ao Poder Público - e de legislar com estrita observância dos parâmetros constitucionais de índole jurídico-social e de caráter econômico-financeiro (CF, art. 7º, IV) -, corresponde o direito público subjetivo do trabalhador a uma legislação que lhe assegure, efetivamente, as necessidades vitais básicas individuais e familiares e que lhe garanta a revisão periódica do valor salarial mínimo, em ordem a preservar, em caráter permanente, o poder aquisitivo desse piso remuneratório.

SALÁRIO MÍNIMO - VALOR INSUFICIENTE - SITUAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO PARCIAL.

 - A insuficiência do valor correspondente ao salário mínimo, definido em importância que se revele incapaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e dos membros de sua família, configura um claro descumprimento, ainda que parcial, da Constituição da República, pois o legislador, em tal hipótese, longe de atuar como o sujeito concretizante do postulado constitucional que garante à classe trabalhadora um piso geral de remuneração (CF, art. 7º, IV), estará realizando, de modo imperfeito, o programa social assumido pelo Estado na ordem jurídica. - A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. - As situações configuradoras de omissão inconstitucional - ainda que se cuide de omissão parcial, derivada da insuficiente concretização, pelo Poder Público, do conteúdo material da norma impositiva fundada na Carta Política, de que é destinatário - refletem comportamento estatal que deve ser repelido, pois a inércia do Estado qualifica-se, perigosamente, como um dos processos informais de mudança da Constituição, expondo-se, por isso mesmo, à censura do Poder Judiciário.

INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO - DESCABIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR.

 - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de proclamar incabível a medida liminar nos casos de ação direta de inconstitucionalidade por omissão (RTJ 133/569, Rel. Min. MARCO AURÉLIO; ADIn 267-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), eis que não se pode pretender que mero provimento cautelar antecipe efeitos positivos inalcançáveis pela própria decisão final emanada do STF. - A procedência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, importando em reconhecimento judicial do estado de inércia do Poder Público, confere ao Supremo Tribunal Federal, unicamente, o poder de cientificar o legislador inadimplente, para que este adote as medidas necessárias à concretização do texto constitucional. - Não assiste ao Supremo Tribunal Federal, contudo, em face dos próprios limites fixados pela Carta Política em tema de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), a prerrogativa de expedir provimentos normativos com o objetivo de suprir a inatividade do órgão legislativo inadimplente.

IMPOSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, POR VIOLAÇÃO POSITIVA DA CONSTITUIÇÃO, EM AÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO (VIOLAÇÃO NEGATIVA DA CONSTITUIÇÃO).

 - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, fundada nas múltiplas distinções que se registram entre o controle abstrato por ação e a fiscalização concentrada por omissão, firmou-se no sentido de não considerar admissível a possibilidade de conversão da ação direta de inconstitucionalidade, por violação positiva da Constituição, em ação de inconstitucionalidade por omissão, decorrente da violação negativa do texto constitucional.

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No voto[8] condutor do julgamento, o relator do feito, ministro Celso de Mello, reconheceu que os índices de reajuste aplicáveis e que o valor estabelecido pela legislação infraconstitucional violava frontalmente os parâmetros estabelecidos no art. 7º, IV. Eis o que assinalou o referido magistrado:

Em suma: o valor mensal de R$ 112,00 – que corresponde a um valor salarial diário de R$ 3,73 – é aviltante e é humilhante. Ele, na verdade, reflete importância evidentemente insuficiente para propiciar ao trabalhador e aos membros de sua família um padrão digno de vida.

Esse entendimento restou sufragado pelos demais magistrados da Corte. Diante da constatação dessa realidade normativa, quais as consequências normativas possíveis? Declarar a inconstitucionalidade da nova legislação que estabeleceu o novo valor do salário mínimo, no que restabeleceria a legislação anterior, com um valor de salário mínimo mais baixo (e pior) ou não conhecer da ação e julgar prejudicados os pedidos deduzidos? Ou o Tribunal estaria autorizado a estabelecer qual seria o valor do salário mínimo que atenderia ao comando estabelecido no art. 7º, inciso IV, da Constituição?

A Corte, em um exercício de prudência judicial, optou por não conhecer da ação e julgou prejudicados os pedidos deduzidos. Tenha-se, no entanto, que na aludida ADI 1.458, o Tribunal decidiu por indeferir a cautelar requestada. A Corte não ousou usurpar dos Poderes Políticos (Legislativo e Executivo) a prerrogativa de estabelecer o valor do salário mínimo. Mas se acaso o Tribunal, imbuído de um genuíno entusiasmo social e com a melhor das intenções, tendo em vista o reconhecimento de que o valor do salário mínimo agredia, também, a dignidade da pessoa humana do trabalhador e de sua família, resolvesse estabelcer um valor constitucionalmente adequado, quais seriam as consequências e de quanto seria esse eventual valor estabelecido pelo STF?

Se acaso o Tribunal decidisse corrigir essa apontada injustiça constitucional, decidindo temerariamente qual deve ser o valor do salário mínimo, com efeitos gerais, tanto para a administração pública quanto para a iniciativa privada, muito provavelmente ocasionaria um abalo sísmico nas frágeis placas tectônicas das finanças públicas e provocaria um caos econômico na iniciativa privada. E a razão de existir de um Tribunal é evitar o caos, é garantir a ordem e viabilizar a paz, mediante a justiça legal.

Mas qual seria o valor do salário mínimo que atenderia milimetricamente o comando constitucional? Essa é uma tarefa complexa e o Tribunal não tem competência técnica, operacional e jurídica para essa finalidade. A Corte teria de se socorrer de outros expertos para esse mister: ou dentro da administração pública ou fora dela. Se acaso o Tribunal resolvesse buscar dentro da administração pública os expertos e os parâmetros financeiros para a sua decisão, muito provavelmente alcançaria os mesmos valores estabelecidos pelos Poderes Políticos (Legislativo e Judiciário). Ou se fosse buscar fora da administração pública os expertos e os parâmetros, poderia ou encontrar valores inferiores ou muito superiores ao estabelecido pela legislação. [9]

E seria verdadeiramente possível estabelecer um valor do salário mínimo capaz de atender ao comando constitucional do inciso IV do art. 7º? Ou estamos diante de uma situação reveladora da fraqueza normativa da Constituição? Ou seja, o STF reconhece a insuficiência do valor do salário mínimo e que esse valor estiola a dignidade da pessoa humana do trabalhador e de sua família e fica por isso mesmo? Não há nada que se possa fazer? A Constituição, nesse ponto, é “folha de papel” ou lhe resta alguma “força normativa”?


3 A fraqueza normativa da Constituição

A fraqueza normativa da Constituição consiste na situação de ausência de correspondência entre as promessas (expectativas) contidas no texto constitucional e a real possibilidade de satisfação adequada dessas promessas. O preceito constitucional é fraco se, uma vez reivindicado o seu efetivo e eficaz cumprimento, perante as competentes e legítimas instâncias, essa reivindicação não logrará êxito, porquanto dependente de uma série de outros fatores para que o mandamento constitucional se concretize em realidade palpável, como sucede, por exemplo, com as expectativas normativas do salário mínimo.

Com efeito, os legisladores constituintes, homens e mulheres cheios de ideais e de boas intenções, promulgaram um texto normativo repleto de promessas irresponsáveis e inconsequentes, criando expectativas e ansiedades exageradas no seio da sociedade brasileira. A Constituição de 1988 é um texto que possui uma série de preceitos normativamente fracos. Antídoto para essa patologia constitucional? Voltarmos a Ferdinand Lassalle, a Konrad Hesse e a Karl Loewenstein.[10]

Induvidosamente, Lassalle, Hesse e Loewenstein escreveram, em essência, a mesma coisa: o texto constitucional somente terá força normativa ou será força real se estiver em sintonia com a realidade e com as possibilidades culturais, econômicas, sociais, militares, científicas e tecnológicas de determinada sociedade. Daí que se o texto constitucional estiver divorciado das reais possibilidades, ao invés de ter força, terá fraqueza normativa. E, ao invés de trazer esperança animadora, trará desilusões desesperadoras, gerando ansiedade e frustração. Um texto normativo fraco não deve (nem consegue) ser levado a sério.

Para iluminar esse tema, recordemos, inicialmente, o magistério de Hesse. Esse autor formulou as seguintes indagações provocativas:

A questão que se apresenta diz respeito à força normativa da Constituição. Existiria, ao lado do poder determinante das relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, também uma força determinante do Direito Constitucional? Qual o fundamento e o alcance dessa força do Direito Constitucional? Não seria essa força uma ficção necessária para o constitucionalista, que tenta criar a suposição de que o direito domina a vida do Estado, quando na realidade, outras forças mostram-se determinantes?

Hesse criticou o formalismo estéril divorciado da realidade, porquanto regulador de inúteis abstrações hipotéticas, e assinalou que “se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital. A disciplina normativa contrária a essas leis não logra concretizar-se”.

Segundo Hesse, a vontade de Constituição pode prevalecer sobre a vontade do poder, desde que haja uma consciência constitucional ou cívica por parte dos principais interessados e responsáveis pela concretização da Constituição, ou seja, se governados e governantes assumirem um compromisso moral pelo integral respeito e cumprimento da Constituição.

Como é consabido, Hesse procurou responder a Ferdinand Lassalle, para quem a Constituição jurídica não passa de uma “folha de papel” inútil se divorciada dos fatores reais de poder (a Constituição real), de sorte a revelar uma contradição entre o Direito Constitucional e a própria essência da Constituição. A premissa de Lassalle repousa na tese segundo a qual os problemas constitucionais não questões jurídicas, e não se resolvem de acordo com as normas do direito, mas se cuidam de questões políticas, resolvidas com base nas conveniências, nos interesses e na força. A Constituição, segundo Lassalle, é o resultado dos fatores reais de poder de uma determinada sociedade.

Segundo Lassalle a Constituição é a lei fundamental proclamada pela nação, na qual baseia-se a organização do Direito do país. Lassalle reconhece a essência legislativa da Constituição, no sentido de que ela – a Constituição – é também uma Lei; mas nada obstante seja uma Lei, ela – a Constituição – é mais do que uma simples Lei, porquanto as alterações legislativas ordinárias não provocam as mesmas reações que provocam alterações constitucionais extraordinárias. A Constituição, segundo Lassalle, não é uma lei como as outras, por ser a lei fundamental da nação, ela possui uma essência distinta das demais leis.

E qual seria essa essência, indagou Lassalle:

Muito bem, pergunto eu, será que existe em algum país – e fazendo esta pergunta os horizontes clareiam – alguma força ativa que possa influir de tal forma em todas as leis do mesmo, que as obrigue a ser necessariamente, até certo ponto, o que são e como são, sem poderem ser de outro modo?

A essa indagação, Lassalle oferece a seguinte resposta:

Esta incógnita que estamos investigando apóia-se, simplesmente, nos fatores reais do poder que regem uma determinada sociedade.

Os fatores reais do poder que atuam no seio de cada sociedade são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas vigentes, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como elas são.

Nessa toada, segundo Lassalle, sempre que a Constituição jurídica desprezasse a Constituição real, ou seja, o modo de ser e de organizar materialmente uma determinada sociedade, e que não houvesse uma sintonia com os fatores reais de poder, a força ativa de determinada sociedade, essa Constituição jurídica não passaria de uma “folha de papel”. Ora a Constituição “folha de papel” é aquela que não tem força normativa, mas se revela um texto jurídico normativamente fraco. 

A preocupação quanto à normatividade da Constituição também assaltou ao espírito de Karl Loewenstein, como assinalamos. Segundo Loewenstein, o telos (a finalidade) da Constituição consiste em criar mecanismos institucionais que sirvam de limites ao exercício do poder político, especialmente em face dos abusos governamentais, e que permitam a participação legítima dos destinatários do poder no processo político. Loewenstein, após analisar a dinâmica das mudanças constitucionais, fere o tema do “sentimento constitucional”:

Com a expressão ‘sentimento constitucional’ (Verfassungsgefûhl) se toca um dos fenômenos psicológico-sociais do existencialismo político mais difíceis de captar. Se poderia descrever como aquela consciência da comunidade que, transcendendo a todos os antangonismos e tensões existentes político-partidários, econômico-sociais, religiosos ou de outro tipo, integra a detentores e a destinatários do poder no marco de uma ordem comunitária obrigatória, justamente a constituição, submetendo o processo político aos interesses da comunidade. Este fenômeno pertence ao imponderável da existência nacional e não pode ser produzido racionalmente, ainda que possa ser fomentado por uma educação da juventude [...] Sem embargo, a formação do sentimento de constitucionalidade depende amplamente dos fatores irracionais, da mentalidade e da experiência histórica de um povo, especialmente se a constituição tiver se saído bem em épocas de necessidade nacional.

Loewenstein divisou as Constituições em três categorias: normativas ou nominais ou semânticas. A Constituição é normativa na medida em que os detentores e os destinatários do poder observam e cumprem as normas dimanadas dela – a Constituição. O outro tipo de constituição é o nominal, que vem a ser aquele sistema jurídico válido, mas que ainda não tem força normativa suficiente para domesticar o processo político, de sorte que há uma clivagem entre o texto constitucional e a realidade social. Por fim, Loewenstein visitou o terceiro tipo de sistema constitucional, o semântico, que vem a ser aquela Constituição que, ao invés de controlar e limitar os abusos governamentais, é utilizada para justificar, dando uma aparência de legalidade constitucional, os abusos políticos. É uma Constituição paradoxal, pois a essência de toda Constituição é frear o abuso político, mas a semântica torna o poder sem peias e sem amarras.

A Constituição semântica é típica dos regimes políticos antidemocráticos ou autoritários. A nominal é típica dos países em desenvolvimento social, econômico e político, que têm pouca tradição democrática ou recém saídos do autoritarismo. E a normativa é própria dos países mais desenvolvidos, com instituições mais estáveis e com a sociedade civil melhor organizada.

Loewenstein chama a atenção para o simbolismo constitucional e para as aparências de constitucionalidade, e critica uma ingenuidade otimista do mundo ocidental que apostou todas as suas esperanças nos textos constitucionais escritos, e fala dos perigos em torno da erosão da consciência ou do sentimento de constitucionalidade decorrente dessas imensas expectativas depositadas nas Constituições, muitas vezes divorciadas da realidade social de cada povo e nação. Essas frustrações constitucionais, segundo Loewenstein, podem atrair panacéias escatológicas das “flautas mágicas dos caçadores de ratos”, com o surgimento de salvadores da pátria, com fortes tendências autoritárias, pois, continua Loewenstein, a crise de normatividade da constituição escrita se reflete na crise do próprio Estado democrático constitucional do futuro.

Segundo Loewenstein, a normatividade constitucional passa necessariamente por uma consciência constitucional dos governantes e dos governados. Essa é praticamente a mesma tese de Hesse. E inclusive de Lassalle, na medida em que o povo deve ser o principal fator real de poder integrante de uma Constituição. Mas o que se deve (ou pode) fazer diante da fraqueza normativa da Constituição? Para evitar essa fraqueza normativa e para viabilizar ou restaurar a força normativa constitucional se faz necessário um exercício de realismo político e de pragmatismo jurídico. [11]

Ser realista e pragmático, em sede de direito constitucional, significa ler a Constituição não como um documento onírico ou poético, mas como um texto vocacionado ao equilíbrio social. O realista e pragmático está consciente de que para todo bônus há um ônus correspondente, ou seja, para todo direito há um dever. E, também há um custo a ser suportado ou pelo pagamento de tributos ou pelo pagamento de preços, posto que todos os direitos implicam custos, seja para efetivá-los, seja para protegê-los ou para sancionar e punir quem lhes viola.

Nessa perspectiva, ser realista e pragmático significa entender que somente devem ser positivados em textos normativos, sobretudo no texto da Constituição, aquilo que pode ser reivindicado perante as competentes instituições e que eventual descumprimento ou desobediência aos comandos constitucionais enseja uma pronta e imediata sanção (consequência negativa) aos responsáveis. Se a promessa normativa for de difícil concretização, deixa de ser um direito para se tornar um desejo ou um sonho (ou pesadelo?). Se for de razoável concretização, aí pode ser direito. Para um realista pragmático, em um texto normativo deve haver menos sonhos, menos desejos, menos quimeras e deve haver mais possibilidades, factibilidades e viabilidades.

A rigor, o realista pragmático não ilude o cidadão pagador de tributos e de contas com promessas irresponsáveis e inconsequentes. Não promete o “Paraíso” para justamente não lhe presentear com o “Inferno”. Já o onirismo jurídico-constitucional, com as suas utópicas promessas de um mundo perfeito, com a sua engenharia social e moral paradisíaca, com a sua arquitetura de bondade e bom-mocismo romântico, normalmente provoca decepção e frustração, pois há um profundo e intransponível fosso entre o texto normativo e a realidade concreta. O direito há de ser um dever-ser possível e factível.

É fora de toda a dúvida que já passou da hora de o legislador e o jurista brasileiros abandonarem a magia e a fantasia, pois os indivíduos concretos (as pessoas humanas) necessitam de um Estado que seja capaz de lhes viabilizar, sem intervencionismo desarrazoado e desproporcional, o indispensável equilíbrio social para que todos possam viver as suas respectivas vidas com paz, prosperidade e justiça, e que cada indivíduo possa realizar todos os seus projetos existenciais dignos, em harmonia com os projetos existenciais dignos alheios.

Alcançar essa harmonia não tendo sido uma tarefa fácil, afinal os indivíduos são seres concretos e imperfeitos, com características e circunstâncias que lhos diferenciam de outros indivíduos. Há gente de todos os tipos, pois a fauna humana é demasiadamente rica e complexa.

Os indivíduos (espécies) são homens e mulheres, de carne e osso, com almas e emoções, com vícios e virtudes, com necessidade e desejos, com recordações de passado, com perspectivas de presente e expectativas de futuro, que vivem e sonham, com alegrias e frustrações, com felicidades e tristezas, ou seja, somos todos demasiadamente humanos. E cada indivíduo, pessoa humana, é um universo de possibilidades existenciais, e cada um consiste em uma experiência existencial única e irrepetível no tempo e no espaço, e todos somos moralmente iguais, conquanto sejamos desiguais na natureza, nos talentos, na fortuna, no caráter, na competência, nas ambições e em quase tudo o mais. Daí que o valor moral e social do trabalho humano não tem direta relação com o valor econômico desse trabalho, nem com o eventual grau de sofisticação ou de especialização do trabalhador. A moralidade é uma questão ética, enquanto que o salário (o preço que se paga pelo trabalho humano) é uma questão econômica.

Daí que os parâmetros de harmonização ou de solução dos conflitos devem privilegiar o que não seja juridicamente proibido, moralmente inaceitável, socialmente inadequado, politicamente inconveniente, economicamente ineficiente, tecnologicamente ineficaz e cientificamente inviável. É preciso respeitar e considerar a realidade e o contexto, inclusive para modificar essa realidade e esse contexto.

Em verdade, no processo constitucional, há de se levar em consideração o pré-texto, o texto, o contexto e o pós-texto. E, no caso específico da promessa do salário mínimo, os legisladores, imbuídos do ardente desejo de transformar uma triste realidade em feliz idealidade, esqueceram desses quatro aludidos elementos, visto que, segundo o próprio STF, o valor do salário mínimo não atende ao comando constitucional nem viabiliza a dignidade do trabalhador nem a de sua família. Podemos concluir que o art. 7º, inciso IV, CF, é um preceito normativo juridicamente emasculado e que o STF nada pode fazer diante dessa situação. Nem o Judiciário, nem o Legislativo e tampouco o Executivo, que são Poderes produtores de normas, podem transformar magicamente a realidade econômica, pois o Estado pode muito, mas não pode tudo.

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A fraqueza normativa da Constituição: ineficácia da folha de papel a partir do julgamento da ADI 1.439. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6259, 20 ago. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/84596. Acesso em: 21 nov. 2024.

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