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Direito dos militares e policiais de conversão em pecúnia de licenças especiais

Agenda 18/08/2020 às 21:12

Analisa peculiaridades do regime jurídico das carreiras dos militares das forças armadas, policiais e bombeiros militares e a conversão de suas licenças em pecúnia - novas tendências da jurisprudência

Muitas vezes existe alusão ao termo direito castrense para referência aos estatutos próprios dos regimes jurídicos militares – essa expressa surge no direito romano, em alusão ao modo de se obter a disciplina das tropas das Legiões Romanas – a alusão seria feita ao acampamento destas tropas do Exército Romano.

Militares tem peculiaridades no seu regime jurídico eis que tem o dever legal de por a própria vida em risco a serviço da pátria. Como sabido, nos termos do Código Penal Militar, a traição e a deserção, ou seja, a fuga deste dever implicará na imposição possível de pena de morte constitucionalmente aceita em nossa ordem jurídica.

O objeto de incidência deste ramo diferenciado do direito (direito militar) alcança tanto aos militares federais, que são os integrantes das Forças Armadas, Exército Brasileiro, Marinha de Guerra e Força Aérea Brasileira, como aos militares estaduais, que são os integrantes das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares.

Como visto o direito militar trata de uma categoria de funcionários públicos considerados especiais, com direitos e prerrogativas que na sua maioria são assegurados a funcionários civis. Militares, inclusive, levam vidas peculiares face ao funcionalismo civil – muitas vezes são alocados para locais sem qualquer infraestrutura, por vezes ficam ali, dois ou três meses e tem que levar família, ou não. Por vezes são deslocados por anos para zonas de guerra (veja-se a questão das missões de paz em que o Brasil participou auxiliando as Nações Unidas).

Ao mesmo tempo, os militares estaduais ou federais possuem direitos especiais e obrigações diferenciadas, como por exemplo, o sacrifício da própria vida no cumprimento de missão constitucional, (o chamado tributo de sangue ou tributus sanguinis). Não seria lícito ao Estado exigir tal sacrifício em outras funções – em tempos de pandemia de COVID isso ficou evidente quando começaram a surgir medidas liminares protetivas de profissionais da saúde expostos indevidamente a condições de trabalho potencialmente ofensivas à sua integridade física, vida e saúde.

Vai daí que o regime jurídico dos militares seria mesmo um regime diferenciado com alguns direitos que não são próprios dos funcionários públicos civis. No caso, o que se discute seria questão da conversão em pecúnia da chamada licença especial.

As chamadas licenças especiais, eram um direito dos militares que, a cada dez anos de serviços prestados, faziam jus as mesmas, na proporção de 06 (meses) de afastamento total do serviço, conforme Artigo 68 da Lei nº 6.880 de 09 de Dezembro de 1980.

Dito isso, passa-se a analisar uma questão que se daria em torno do direito de conversão em pecúnia de licenças não gozadas por servidores militares que vem experimentando voltas e reviravoltas na legislação e na jurisprudência, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, em mais de uma oportunidade, vem reconhecendo, até mesmo, a existência de uma garantia constitucional implícita, que seria o princípio da segurança jurídica (há mesmo quem aponte a necessidade de que os Tribunais validem a justified trust que se confia ao Poder Judiciário), por trás da preservação da coisa julgada e dos precedentes que são formados no seu bojo (artigo 926 CPC).

A respeito, as considerações tecidas pelo Ministro Celso de Mello, em julgamento realizado pelo Pretório Excelso em 26.03.2.010:

 “Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público, em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem, desse modo, situações administrativas já consolidadas no passado” ... Aponta-se ainda a “Proteção da Confiança”, segundo a qual “a fluência de longo período de tempo culmina por consolidar justas expectativas no espírito do administrado (cidadão) e, também, por incutir, nele, a confiança da plena regularidade dos atos estatais praticados, não se justificando – ante a aparência de direito que legitimamente resulta de tais circunstâncias – a ruptura abrupta da situação de estabilidade em que se mantinham, até então, as relações de direito público entre o agente estatal, de um lado, e o Poder Público, de outro”.

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Não obstante a segurança jurídica seja um valor juridicamente ponderável e reconhecido pela ordem constitucional, o fato é que os operadores do direito sabem o quanto tal segurança tem despontado como verdadeiro luxo. Operadores do direito por vezes não se sentem aptos a recomendar a seus clientes o que devem fazer por receio de que, num ajuste político este ou aquele Tribunal opte por interpretar as normas em seu aspecto pragmático rompendo com tendências jurisprudenciais estáveis (foi assim, por exemplo, com a questão da desaposentação – autorizada em todas as instâncias até ser desautorizada, depois de década, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal).

Convém, até mesmo que associações que congreguem servidores militares movimentem a máquina judiciária, eis que podem mover tais demandas, de modo coletivo, como forma de se precaverem contra os percalços dos ventos da jurisprudência (as questões de sucumbência acabam pondo certo receio aos servidores na hora de avaliar se tal ou qual ação deve ser movida), eis que tais entidades, nos termos dos artigos 81, inciso III e 82 IV e parágrafo 1º CDC podem atuar na defesa de seus associados ou da própria classe se detiverem representatividade adequada bem como podem, até mesmo, invocar prelados de gratuidade se não conseguirem, enquanto pessoa jurídica, ter patrimônio apto aos recolhimentos de custas compatíveis com os valores buscados.

Com o caso da conversão em pecúnia ainda há medo de algum tipo de reviravolta porque, num primeiro momento, a jurisprudência era muito tímida, mas agora vem se tornando mais robusta em favor do deferimento do benefício.

Até meados do ano de 2.018 não havia dúvidas no sentido de que este direito de pecúnia prescreveria a contar do lapso de cinco anos do registro da reserva no Tribunal de Contas da União. Sobre a questão decidia o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2017:

STJ - RECURSO ESPECIAL REsp 1634035 RS 2016/0279805-2 (STJ) Data de publicação: 09/08/2017 EMENTA MILITAR INATIVO. LICENÇA ESPECIAL NÃO GOZADA. CONTAGEM DO TEMPO EM DOBRO INEFICAZ PARA O INGRESSO NA RESERVA REMUNERADA. CONVERSÃO EM PECÚNIA. POSSIBILIDADE. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. ATO DA APOSENTADORIA. 1. A Corte Especial do STJ estabelece que, por se tratar a aposentadoria de ato administrativo complexo, o prazo prescricional da pretensão de converter em pecúnia a licença-prêmio não gozada tem início somente com o registro da aposentadoria no Tribunal de Contas. Precedentes. 2. Consoante a jurisprudência deste Tribunal Superior, é possível, para o servidor público aposentado, a conversão em pecúnia da licença-prêmio não gozada ou não contada em dobro para a aposentadoria, sob pena de enriquecimento ilícito da administração pública. 3. A Segunda Turma, no julgamento do AgInt no REsp 1.570.813/PR, reafirmou esse entendimento, registrando a inexistência de locupletamento do militar no caso, porquanto, ao determinar a conversão em pecúnia do tempo de licença especial, o Tribunal de origem impôs a exclusão desse período no cálculo do adicional por tempo de serviço, bem como a compensação dos valores correspondentes já pagos. 4. Recurso especial a que se nega provimento.

Havia até o entendimento no âmbito das Turmas Nacionais de Uniformização de Jurisprudência (órgão da Justiça Federal) no sentido deste prazo.

TRF-4 - RECURSO CÍVEL 50087655820174047200 SC 5008765-58.2017.4.04.7200 (TRF-4) Data de publicação: 27/06/2019 EMENTA MILITAR DA RESERVA. FÉRIAS NÃO USUFRUÍDAS. CONVERSÃO EM PECÚNIA. POSSIBILIDADE. TEMA 162 JULGADO PELA TNU. PRESCRIÇÃO. INÍCIO. PASSAGEM PARA RESERVA. O início do prazo prescricional para o ingresso de ação que busca a conversão em pecúnia de férias não usufruídas é a data da transferência do militar para a reserva. O Tema 162 foi julgado pela TNU. As férias não usufruídas pelo militar durante o período de atividade e não contadas em dobro para a sua aposentadoria devem ser indenizadas.

Mas o acórdão que se refere a este tema 162 é de março de 2.018 que fixou o prazo prescricional em cinco anos da reserva. Ocorre que, e aí o pessoal vem conseguindo as vitórias, dois meses depois, veio fato novo, em 24.05.2018, eis que foi editada a Portaria Normativa nº 31 do Ministério da Defesa, reconhecendo a possibilidade de conversão em pecúnia da Licença Especial não usufruída e não utilizada em dobro para fins de inatividade, inclusive nos casos em que os militares das Forças Armadas tivessem auferido vantagens financeiras decorrentes da permanência em atividade.

Tal portaria já se faz acompanhar de um modelo de requerimento e confere poderes ao inventariante para assinar o requerimento em caso de falecimento do militar inativo – pelo óbvio que se cuida de direito que se incorpora ao rol de posições jurídicas ativas do patrimônio do de cujus sucessiones agitur, não sendo perdido pelos seus herdeiros nos termos das regras de direito sucessório pelos parentes até o quarto grau, nos termos do artigo 1.829 e seus incisos do Código Civil.

Outra grande dúvida que se tem é que parece estar fomentando debates se dá em torno da nova interpretação da prescrição por conta do reconhecimento do direito pela União.  Antes se entendia que quem não tivesse intentando com pedidos administrativos ou judiciais num quinquênio perderia o direito – o princípio romano de que dormientibus non sucurrit jus – o direito não socorre aqueles que dormem em tradução literal e livre.

Ressalte-se que a superveniência da Portaria do Ministério da Defesa trouxe como consequência a renúncia à prescrição, que se dá quando se reconhece a existência de um direito após transcorrido o prazo prescricional.

O efeito prático disso é que o militar que se encontra na inatividade, seja por reforma ou transferência para a reserva remunerada há mais de 05 (cinco) anos, poderá receber as remunerações correspondentes as Licenças Especiais não usufruídas e que não foram utilizadas em dobro para a inatividade. E esse direito, de fato, já tem sido reconhecido em julgados posteriores do Superior Tribunal de Justiça:

STJ - AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgInt no AREsp 1497458 PE 2019/0127062-6 (STJ) Data de publicação: 11/10/2019 EMENTA MILITAR. LICENÇA-PRÊMIO NÃO GOZADA. CONTAGEM EM DOBRO DESINFLUENTE PARA A TRANSFERÊNCIA À RESERVA. CONVERSÃO EM PECÚNIA. POSSIBILIDADE. 1. É possível a conversão em pecúnia da licença-prêmio não gozada ou não contada em dobro para a aposentadoria, sob pena de enriquecimento ilícito da administração pública. 2. Muito embora o período da licença especial do militar tenha sido computado para a majoração do adicional de tempo de serviço e do adicional de permanência, admite-se o pagamento da indenização pleiteada quando estabelecida a compensação das vantagens financeiras já recebidas. Precedentes. 3. Agravo interno a que se nega provimento.

No mesmo sentido e já com fundamento na Portaria do Ministério da Defesa, entendimento de 2.020:

TRF-4 - APELAÇÃO CIVEL AC 50751044220164047100 RS 5075104-42.2016.4.04.7100 (TRF-4) Data de publicação: 18/02/2020 EMENTA MILITAR. RESERVA REMUNERADA. LICENÇA ESPECIAL NÃO GOZADA. CONVERSÃO EM PECÚNIA. COMPENSAÇÃO. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. 1. Possível a conversão em pecúnia, com base na remuneração percebida pelo militar na data da sua passagem para a inatividade, em virtude da edição da Portaria Normativa n.º 31/GM-MD, de 24/05/2018, que reconheceu o direito dos militares à conversão em pecúnia dos períodos de licença especial não usufruídos nem computados em dobro para efeito de inativação. 2. Quando da execução do julgado, os valores recebidos a maior a título da conversão da licença especial deverão ser compensados do montante devido. 3. Afastada a aplicação do art. 1º-F da Lei nº 9.494 /97, com a redação dada pela Lei nº 11.960 /09, com relação à correção monetária, determinando-se a incidência do IPCA-E.

Necessário, no entanto, que os militares não percam o novo prazo quinquenal desta portaria e assegurem o direito de obter os desdobramentos patrimoniais deste benefício antes de eventual revogação da Portaria ou antes que decorra novo lapso de cinco anos de sua edição.

No caso dos policiais militares há que se observar os estatutos próprios de cada Estado de Federação que dispõem sobre os regimes de seus policiais. No caso paulista há, por exemplo, possibilidade de conversão de licença prémio em pecúnia e mesmo policiais afastados dos cargos, que não tenham gozado férias ou licenças prêmios tem obtido o direito à conversão em pecúnia por presunção de que não se exerceu diretamente por conta de necessidade presumida da Administração que não pode ser beneficiada pelo enriquecimento sem causa.

Sobre a questão de se pedir vênia para destacar:

Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP - Apelação : APL 1010609-89.2015.8.26.0037, j.   6 de abril de 2017. Des. Rel. Heloísa Martins Mimessi DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. POLICIAL MILITAR EXPULSO DOS QUADROS DA CORPORAÇÃO. LICENÇA-PRÊMIO E FÉRIAS NÃO USUFRUÍDAS. CONVERSÃO EM PECÚNIA. POSSIBILIDADE. Presunção de que os benefícios não foram usufruídos por interesse da Administração - necessidade de serviço. Direito ao recebimento da vantagem, a fim de evitar o enriquecimento sem causa da Fazenda do Estado. Sentença de procedência reformada em parte. Alteração de ofício quanto à correção monetária. Recurso da Fazenda e reexame necessário providos quanto aos juros.

Quanto a este tema em particular aponta-se do Supremo Tribunal Federal:

EMENTA DIREITO ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. LICENÇA- PRÊMIO NÃO USUFRUÍDA. CONVERSÃO EM PECÚNIA. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO. ATO OMISSIVO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. ÓBICE DA SÚMULA 279/STF. EVENTUAL OFENSA REFLEXA NÃO VIABILIZA O MANEJO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ART. 102 DA LEI MAIOR. ACÓRDÃO RECORRIDO PUBLICADO EM 10.4.2006. O entendimento adotado pela Corte de origem não diverge da jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido da possibilidade da conversão de licença-prêmio não gozada em indenização pecuniária quando os servidores não mais puderem delas usufruir, a fim de evitar o enriquecimento sem causa da Administração. Entender de modo diverso demandaria a reelaboração da moldura fática delineada no acórdão de origem, o  que torna oblíqua e reflexa eventual ofensa, insuscetível, portanto, de viabilizar o conhecimento do recurso extraordinário. Desatendida a exigência do art. 102, III, a, da Lei Maior, nos termos da remansosa jurisprudência desta Corte. As razões do Agravo regimental não se mostram aptas a infirmar os fundamentos que lastrearam a decisão agravada. Agravo regimental conhecido e não provido. (ARE 832331 AgR / RS, Ministro ROSA WEBER, j. 04.11.2014).

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. LICENÇA-PRÊMIO. CONVERSÃO EM PECÚNIA. DESNECESSIDADE DE REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. PRINCÍPIO QUE VEDA O ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO. AGRAVO DESPROVIDO. - "É cabível a conversão em pecúnia da licença-prêmio e/ou férias não gozadas, independentemente de requerimento administrativo, sob pena de configuração do enriquecimento ilícito da Administração" (AgRg no AREsp 434.816/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 11/02/2014, DJe 18/02/2014). - Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 1167562 / RS, Ministro Ericson Maranho, j. 07.05.2015, Grifei).

Sobre o autor
Julio Cesar Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Faculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

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