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O espelho ingrato

Agenda 19/08/2020 às 11:19

As bases metafísicas da Constituição não podem ser esquecidas. Afinal, o esquecimento desses pressupostos pode levar o próprio constitucionalismo à destruição.

O espelho ingrato.

O Império Brasileiro adotava a religião católica como a oficial, de modo que protegia todas as religiões em âmbito privado e a católica em âmbito público. Preconizava o artigo 4º da Constituição de 1.824: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”.

Nos últimos séculos, entretanto, cada vez mais a religião cristã está saindo do âmbito público. E não só isso, a Igreja está sendo perseguida em razão de sua crença e costumes. Não apenas no Brasil, mas em âmbito mundial. Igrejas foram atacadas no Vietnã; a China retirou as imagens das casas dos cristãos; na Romênia, a exemplo de diversos outros países, criou-se uma lei para coibir a perseguição aos cristãos; ataques violentos foram registrados em Moçambique; na Índia, houve assassinatos pela simples condição de cristão. Esses são exemplos que se perdem em meio a diversos outros, estimando-se a fundação americana “Ajuda à Igreja que Sofre” que 1 a cada 5 cristãos no mundo vive em países onde há perseguição, e 80% das pessoas que sofrem perseguições por conta da fé são cristãs. Esses dados não contabilizam a perseguição na seara cultural e nem a difamação pela infiltração de falsos fiéis.

Hoje, o Estado brasileiro é laico (sem religião oficial). Contudo, não se pode descon­siderar que a nação que nele vive é eminentemente religiosa, notadamente de raiz judaico-cristã. Desta forma, haja vista que a laicidade estatal existe justamente para proteger a liberdade de crença, não se deve deturpá-la para o contrário, isto é, a exemplo de outros lugares do mundo, usá-la para perseguir cristãos ou seus costumes.

Verificando-se o modus operandi, o primeiro passo para o encalço cristão é, contra ele, sem nenhum motivo, “levantar a bandeira” do laicismo estatal. Levanta-se uma bandeira legítima para um fim espúrio. E no mais das vezes essa investida política é acompanhada do discurso de “autoridade da Constituição”, como se de algum modo pudesse se contrapor aos valores cristãos.

Porém, em verdade, os valores cristãos foram os responsáveis direto pela manutenção da justiça e solidariedade no ocidente por mais de 2.000 anos. Foram os cristãos que, através do empréstimo de seus valores milenares, viabilizaram o constitucionalismo moderno, tanto para limitar o poder do Estado, quanto para, em momento histórico posterior, requisitar-lhe auxílio. Bem assim, foram eles que propiciaram a nova visão de constitucionalismo após a 2ª grande guerra, reemprestando seus valores virtuosos para a reaproximação da moral ao direito.

Para ilustrar, a filosofia com base cristã que alterou o eixo axiológico do direito:

“A razão refere assim toda máxima da vontade, concebida como legisladora universal, a toda outra vontade, e também a toda ação que o homem ponha para consigo: procede assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura, mas levada pela idéia da dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída por ele próprio. No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade” (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant).

Não apenas no constitucionalismo, mas a contribuição jurídica cristã também ocorreu na teoria dos direitos mais básicos. Foram os teóricos cristãos que construíram as bases dos direitos da personalidade. Foram eles que estabeleceram que a simples condição de humano ou pessoa já é capaz de gerar uma gama de direitos.

O pensamento cristão e sua noção de dignidade deu base a todos os demais direitos fundamentais dos ordenamentos jurídicos constitucionais. Para ilustrar tal noção:

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“Cada indivíduo transporta em si mesmo a imagem de Deus (imago dei), facto que constitui o fundamento último e transcendente da sua especial dignidade” (Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, Jonatas Machado).

Deste modo, é impensável – ou ao menos ingrato – que se possa utilizar a Constituição para extinguir os valores cristãos. Sob olhar histórico, todas as normas constitucionais tradicionais relacionadas com as garantias do povo são um reflexo dos valores bíblicos.

As constituições tradicionalmente relevantes são baseadas em uma hipotética vontade – do povo ou de detentores do poder político –, já a Bíblia, é baseada em valores erigidos num dado momento histórico e definidos pelo homem como o “bem” noutro; os quais, faticamente, mantiveram a consciência de justiça e solidariedade entre os homens ocidentais até o presente; e, diante de uma guinada do que fora considerado “mau”, sempre por poderes políticos antropocentristas, assegurou a esperança da humanidade, através do dogma reiteradamente testado de que o “bem” sempre vence o “mau”.

Portanto, perseguir o cristianismo pela laicidade estatal, além de incoerência jurídica, seria o reflexo tentando apagar o arquétipo – a Constituição ilidindo a Bíblia. Porém, sem arquétipo não há reflexo; sem Bíblia não há Constituição.


REFERÊNCIAS

Fundação ACN promove Dia de Oração pelos Cristãos Perseguidos. AciDigital. 29 abr. 2020. Disponível em: <https://www.acidigital.com/noticias/fundacao-acn-promove-dia-de-oracao-pelos-cristaos-perseguidos-41385>

Sobre o autor
Matheus Lima Pedroso

Advogado especialista em Direito Público e em Tutela Coletiva

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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