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Inconstitucionalidade do artigo 1º da lei 11.460/2007 e cultivo de organismos geneticamente modificados em terras indígenas, violações ao usufruto constitucional indígena e aos artigos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho

Agenda 19/08/2020 às 23:55

Os organismos geneticamente modificados (OGMs) em terras indígenas são proibidos pela lei 11.460 de 2007. Entretanto, o usufruto constitucional indígena e a Convenção 169 da OIT possuem regras e princípios que permitem o cultivo dos mesmos.

BREVE HISTÓRICO


O cultivo ou o manejo da terra desde os tempos mais longínquos, sempre despertou o interesse na raça humana de modo que a mesma pudesse se afixar de forma mais duradoura nos terrenos por onde passou. É possível afirmar de forma categórica que à agricultura é a identidade da humanidade, pois a partir dela foi também possível desenvolver diversas tecnologias, gerar divisas, organizar povoamentos, cidades e da mesma maneira criar condições e tempo para que o homem aprimorasse suas atividades intelectuais.


Conforme registros históricos, botânicos e arqueológicos, a saga humana no ramo da agricultura surgiu há vinte e três mil anos (23.000) em uma tentativa de cultivo na Galileia, norte de Israel, na região conhecida como Crescente Fértil, Oriente Médio, considerada o “Berço da Civilização”. Naquele período, pretendeu-se cultivar cevada, trigo e erva daninha, bem como instrumentalizar tais cultivos com ferramentas bastante rudimentares. Depois do período de onze mil anos (11.000), a iniciativa humana deixa de ser tentativa e se consolida através de técnicas, perícias e habilidades mais perenes no manuseio da terra.


Conforme publicado pelo site: https://veja.abril.com.br/ciencia/agricultura-e-mais-antiga-do-que-se-acreditava-certifica-estudo/ “A descoberta foi feita em um assentamento na Galileia, no norte de Israel, na região conhecida como Crescente Fértil, no Oriente Médio, considerada o “Berço da Civilização”. 

Ali, os nômades se tornaram sedentários e se estabeleceram em comunidades agrícolas. Em 1989, uma seca revelou Ohalo II, um sítio arqueológico onde viveram caçadores, pescadores e agricultores há 23.000 anos. Foi nesse lugar que o grupo interdisciplinar de arqueólogos, botânicos e ecologistas das universidades israelenses de Bar-Ilan, Haifa e Tel Aviv, em parceria com a americana Harvard, encontrou cevada e trigo cultivados de 23.000 anos. A presença dos vegetais do tipo cultivado é maior que o selvagem, de acordo com as técnicas de análise genética empregadas pelos cientistas.”


ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS –  SÍNTESE DOS ANTECEDENTES NO MUNDO E NO BRASIL.


A introdução dos organismos geneticamente modificados (OGMs) no mundo ocorreu no início da década de oitenta, o primeiro organismo geneticamente modificado transgênico criado foi à bactéria Escherichia coli, que sofreu adição de genes humanos para a produção de insulina. Depois desse primeiro experimento, surgiu à primeira planta transgênica produzida em 1983. Os cientistas cruzaram o gene de um vaga-lume com a planta do tabaco. O resultado foi um pé de fumo que brilha no escuro.


No Brasil, o tema sempre foi alvo de polêmicas, contudo, a conjuntura política vencedora consolidou a entrada dessa evolução da biotecnologia agrária em nosso país de tal modo que marcos legais foram necessários para balizar tal questão. A partir de então, foi criado no fim dos anos 90 a CTNBIO (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), entidade balizadora do tema. A título de curiosidade, o então presidente daquela comissão, o engenheiro agrônomo graduado pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Luiz Antônio Barreto de Castro afirmou: "Está aqui meu RG; se alguém passar mal comendo essa soja, eu quero ser preso", conta o pesquisador, um dos pioneiros da biotecnologia no Brasil. "Estou solto até hoje."


ORGANISMOS GENETICAMENTE MODFICADOS EM TERRAS INDÍGENAS


A entrada de organismos geneticamente modificados em terras indígenas sempre foi alvo de intermináveis discussões criadas no claro intuito de atrasar perspectivas de desenvolvimento econômico das etnias indígenas do Brasil. Os melhores exemplos encontramos nos casos da etnia Pareci, na Terra Indígena Utiariti, Estado do Mato Grosso e na etnia Kaingáng, Terra Indígena Xapecó, Estado de Santa Catarina. Existem outros bons exemplos, mas por ora, ênfase nos dois casos.


São duas terras indígenas que mesmo em distintas unidades da federação, com realidades de clima, solo e circunstâncias históricas distintas, pautam-se pelo empreendedorismo de plantio de grãos e outras iniciativas econômicas que os integram dentro do sistema produtivo brasileiro. Em ambos os casos, dificuldades residiam no embaraço de realizar o plantio em si, sem levar em conta propriamente a especificidade dos organismos geneticamente modificados (OGMs).


Mesmo após medidas administrativas, acordos judiciais draconianos e constante extenuação argumentativa por parte das comunidades indígenas no sentido de empreender suas lavouras, outro problema passou a lograr contornos jurídicos dificultosos contra as já citadas terras indígenas. O plantio de organismos geneticamente modificados passou a ser mais um obstáculo no que concerne ao desempenho das atividades produtivas de larga escala em terras indígenas do Brasil.

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A FLAGRANTE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1º DA LEI 11.460/2007


Assim expressa o artigo 1º da lei 11.460/2007:


Art. 1º - Ficam vedados a pesquisa e o cultivo de organismos geneticamente modificados nas terras indígenas e áreas de unidades de conservação, exceto nas Áreas de Proteção Ambiental.


A lei em questão é inconstitucional, uma vez que viola o princípio do usufruto exclusivo lavrado no artigo 231 da Constituição Federal, além do mais, transgride o próprio sistema hierárquico das leis consolidado na já conhecida pirâmide de Kelsen. Vejamos primeiro o que reza os parágrafos §1º§2º do artigo 231 da Constituição Federal de 1988 que em seu texto evidencia:


§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

Como se pode notar, em nenhum momento o texto magno de 1988, condiciona o plantio de lavouras em terras indígenas, em ser ou não com sementes geneticamente modificadas. Assim sendo, o artigo 1º da Lei 11.460/2007 é mais um mecanismo jurídico perverso que necessita ser derrotado nas instâncias administrativas, no legislativo e judiciário. Infelizmente, o Estado brasileiro comete grave equívoco ao negar o direito ao desenvolvimento das comunidades indígenas, relegando-as a uma situação permanente de vulnerabilidade social e pobreza extrema.


A pirâmide de Kelsen é de grande importância estrutural para o sistema jurídico brasileiro, com base nesse argumento, é possível afirmar que o artigo 1º da Lei 11.460/2007, tão densamente citado, viola frontalmente o usufruto constitucional indígena (artigo 231 §1ºe §2º), a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outros princípios constitucionais correlatos à temática indígena.


A Lei 11.460/2007 possui como característica ser uma lei federal, à vista disso, pode ser classificada como lei ordinária na pirâmide hierárquica de Kelsen. Vejamos:

VIOLAÇÃO DA CONVENÇÃO 169 DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT) E OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS VIOLADOS PELO ARTIGO 1º DA LEI 11.460/2007.


A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) entrou em vigor no Brasil no ano de 2004 e desde então se fez realidade no Poder Judiciário, no Poder Legislativo e no Poder Executivo.


O referido diploma legal possui status de Emenda Constitucional uma vez que obedece aos critérios estabelecidos no artigo 5º §2º §3º da Constituição Federal de 1988.


TÍTULO II

DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS


CAPÍTULO I


DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS


Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:


§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.


§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.


Conforme consta no site da Controladoria Geral da União (CGU), pertinentes questionamentos foram realizados em 22/08/2017 através do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC):
Saudações, estou realizando uma pesquisa para fins de incluir este dado estatístico em minha dissertação de mestrado. Preciso saber exatamente: .Quantos e quais tratados internacionais de Direitos Humanos o Brasil ratificou entre 1988 e 30 de dezembro de 2004?


Resposta: Prezado Senhor, seguem, anexas, as listas dos atos multilaterais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil (i) de 01/01/1988 a 30/12/2004 e (ii) de 31/12/2004 até esta data.

Convenção nº 169 da OIT Relativa aos Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes Organização Internacional do Trabalho – OIT – Política do Trabalho Direitos Humanos 999527/06/1989 – Em Vigor.


A pergunta e a resposta podem ser encontradas no site:


http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/Lists/Pedido/Item/displayifs.aspx?List=0c839f31%2D47d7%2D4485%2Dab65%2Dab0cee9cf8fe&ID=591800&Web=88cc5f44%2D8cfe%2D4964%2D8ff4%2D376b5ebb3bef 


A simples leitura da Carta Magna em seu artigo 5º e seus parágrafos 2º e 3º confirma o status de Emenda Constitucional da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), para melhor se assegurar de tal realidade jurídica, a resposta dada ao cidadão brasileiro por um órgão de controle estatal corrobora o status legal da mencionada Convenção e fornece a clara ideia da inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 11.460/2007.


No texto mais alongado da Convenção 169 da OIT, podemos encontrar artigos mais específicos com status jurídico superior e que permitem aos indígenas brasileiros questionar com veemência o artigo 1º da lei exaustivamente mencionada. Eis as especificações:


Artigo 4º

3. O gozo sem discriminação dos direitos gerais da cidadania não deverá sofrer nenhuma deterioração como consequência dessas medidas especiais.


Artigo 7º


1. Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas, próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.


Artigo 19º

Os programas agrários nacionais deverão garantir aos povos interessados condições equivalentes às desfrutadas por outros setores da população, para fins de:


b) a concessão dos meios necessários para o desenvolvimento das terras que esses povos já possuam.


Artigo 23º


2. A pedido dos povos interessados, deverá facilitar-se aos mesmos, quando for possível, assistência técnica e financeira apropriada que leve em conta as técnicas tradicionais e as características culturais desses povos e a importância do desenvolvimento sustentado e equitativo.


Artigo 34º


A natureza e o alcance das medidas que sejam adotadas para pôr em efeito a presente Convenção deverão ser determinadas com flexibilidade, levando em conta as condições próprias de cada país.


Artigo 35º


A aplicação das disposições da presente Convenção não deverá prejudicar os direitos e as vantagens garantidos aos povos interessados em virtude de outras convenções e recomendações, instrumentos internacionais, tratados, ou leis, laudos, costumes ou acordos nacionais.


Como notado, resta patente a inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 11.460/2007, visto que a mesma fere de forma flagrante os artigos 5º parágrafos 2º e 3º e 231 parágrafos 1º e 2º ambos da Constituição Federal de 1988. Da mesma maneira, infringe a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho em seus artigos 4º, 7º, 19º, 23º, 34º e 35º. Ademais, quebranta a estrutura das normas hierárquicas brasileiras expressas no escalonamento da pirâmide de Kelsen.


É factível exigir dos poderes da República que mexam suas estruturas para corrigir essa grande injustiça cometida contra os indígenas do Brasil. Como já dito anteriormente, resta inequívoca a inconstitucionalidade da lei 11.460/2007 podendo tal fato ser remediado através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) ou aprovação do Projeto de Lei 191/2020.

Sobre o autor
Ubiratan de Souza Maia

Indígena da etnia Wapichana do Estado de Roraima, advogado desde o ano de 2005, consultor de empresas e assessor em Direito Comercial Internacional, assessor de comunidades indígenas que possuem iniciativas empreendedoras.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

O motivo da elaboração do presente estudo se deve ao fato de que muitas comunidades indígenas do Brasil desejam se integrar ao contexto da economia de mercado e para tanto, desejam de uma vez por todas fazer parte de todos mecanismos sociológicos e jurídicos que possibilitem tal ascensão.

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