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Isolamento social e lockdown são constitucionais?

Uma análise jurídica sobre a constitucionalidade de tais medidas.

Agenda 21/08/2020 às 09:58

No presente estudo iremos construir uma análise jurídica e responder se a adoção das medidas de isolamento social, proibição de reunião de pessoas e o lockdown ferem os direitos fundamentais garantidos na Constituição/88.

EXIGÊNCIA DE ISOLAMENTO SOCIAL E LOCKDOWN SÃO CONSTITUCIONAIS?

Uma análise jurídica sobre a constitucionalidade de tais medidas.  

           

Em tempos de pandemia e de calamidade pública brasileira – e mundial – somados à politização das medidas de restrição e isolamento populacional e das consequências destas para o mercado de trabalho e economia do país, várias questões vêm à baila:

1) Até que ponto os direitos e garantias constitucionais da liberdade de locomoção e reunião de pessoas pode ser suprimida frente ao combate da pandemia (COVID-19)?

2) As medidas de isolamento social, proibição de reunião de pessoas e o lockdown agridem os fundamentos constitucionais dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa?

Estas são questões atuais e que tentaremos responder, sempre, sob o aspecto constitucional e não político – bom avisar desde logo.

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) estabelece como fundamentos, dentre outros: os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, isto quer dizer, nas palavras de ALEXANDRE DE MORAES(1): “ é através do trabalho que o homem garante sua subsistência e o crescimento do país”.

Sabemos que tais fundamentos ressoam por diversos artigos da constituição, citamos os art. 5º, XIII, 6º, 7º, 8, 194-204, valendo lembrar que a constituição apesar de dar especial proteção ao emprego (art. 7º), utiliza a expressão “trabalho” e “livre iniciativa”, o que nos remete também aos autônomos e ao empregador, não apenas ao empregado subordinado.

Ainda, afirma o art. 3º da constituição que constitui como objetivo fundamental da república federativa do brasil: garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Quanto ao último, somente a título de curiosidade, a emenda constitucional 31/2000, criou o fundo de Combate e Erradicação da pobreza, possibilitando que até 2% das arrecadações do ICMS sobre os produtos e serviços supérfluos, nos moldes da LEI COMPLEMENTAR Nº 111, DE 6 DE JULHO DE 2001.

Seguindo.

O art. 5º da constituição estabelece diversas garantias individuais e coletivas, que para efeito do presente estudo, citamos:

“XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;

V - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar.”

Acontece que tais garantias constitucionais podem – e devem – ser relativizadas para evitar distorções nas próprias garantias, a ponto de tais direitos servirem de égide para a prática de atividades ilícitas e/ou afastamento da responsabilidade civil e criminal de seus agentes.

Pode-se afirmar que os direitos e garantias individuais e coletivos não são ilimitados, encontrando limites quando chocarem-se diretamente com outros dispositivos legalmente constituídos.

Com as devidas homenagens à teoria dos princípios de Robert Alexy (2), afirmamos que diante do choque entre dois ou mais direitos individuais e coletivos, deve o interprete utilizar-se da concordância prática ou da harmonização, que nada mais é que balancear de forma razoável e proporcional os direitos ao ponto de evitar a completa supressão de um em relação ao outro.

Podendo, inclusive, afastar a aplicação de um direito ou princípio em relação ao outro, sem que isso implique, necessariamente, a exclusão do princípio destoante. Isto não quer dizer que em ocasião futura e semelhante, aquele direito ou princípio não possa assumir o lugar deste e afastá-lo, como outrora foi afastado.

Nesse esteio emerge o direito à vida, como o mais fundamental de todos os direitos, cabendo ao Estado assegurá-lo com todas as suas forças, tanto no sentido de manter-se vivo, assim como garantir a vida digna, garantindo a subsistência da pessoa, seja por medidas institucionais que garantam o sustento, assim como medidas que garantam à saúde do indivíduo, adotando todas as medidas que garantam a proteção contra riscos a ela.

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Vale frisar que sem vida, não se pode falar em qualquer outro direito!

A partir deste ponto, podemos incluir as atuais políticas públicas do isolamento social e lockdown, como medidas de garantir à vida.

Antes, só esclarecendo que no lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados, farmácias, etc e trabalharem em atividades essenciais.

Ao revés disto, a constituição ainda garante o direito de reunião ( art. 5º, XVI), afirmando que todos tem o direito de se reunirem pacificamente, sem o uso de armas, em locais abertos e públicos, independente de autorização, sendo apenas exigido prévio comunicação à autoridade competente.

Veja que o texto legal apenas exige previa comunicação e não autorização pela autoridade competente. Sendo esta comunicação prévia, não uma condição para a realização da reunião, mas, somente, uma forma de garantir à segurança dos participantes e demais membros da sociedade, a exemplo: desvio de trânsito, segurança policial, etc. (4).

Dentro dos direitos sociais, podemos afirmar que o direito ao emprego e, consequentemente, à renda é de especial importância constitucional, visto que o emprego garante o sustento do trabalhador (valores sociais do trabalho), além de atender as suas necessidades vitais básicas e às de sua família como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

Contudo, dentro do rol dos direitos sociais (art. 7º) a constituição federal deixou de abarcar o autônomo (livre iniciativa), cabendo as leis ordinárias (infra-constitucionais) legislarem a respeito.

Porém, já vimos que dentro do conceito do fundamento constitucional dos “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, inclui-se os autônomos (livre iniciativa), visto que o conceito de trabalho é mais amplo que o conceito de emprego ( vincula somente os trabalhadores subordinados com registro em Carteira de Trabalho – CTPS).

Bom. Daí questiona-se: como ficam os referidos direitos frente ao atual estado de calamidade pública, reconhecido pelo decreto legislativo nº 6, DE 2020, advindo do combate ao coronavírus (Covid-19), que utiliza medidas de isolamento e quarentena como método de garantia do direito à vida?

Pois bem.

Todos estes direitos e garantias mencionados acima, encontram seus limites, apenas, nos casos de Estado De Defesa (art. 136, §1º, I, a) e do Estado de Sítio (art. 19, IV)

Como dito, a CRFB prevê, excepcionalmente, duas medidas para a restauração da ordem em momentos de anormalidade: Estado de Defesa e Estado de Sítio. Ambos, possibilitam maior intervenção Estatal, inclusive, com a suspensão temporária de determinadas garantias constitucionais.

O Estado de defesa é a forma mais branda de medida de emergência pelo chefe do poder executivo, não necessitando de autorização pelo congresso nacional, podendo se dar mediante decreto, que deve determinar prazo de duração, especificando as áreas abrangidas e determinar as medidas coercitivas, nos limites legais.

Já o Estado de Sítio consiste em medida emergencial de maior gravidade, consistindo em suspensão temporária e localizada de garantias constitucionais, prescindindo de autorização pelo congresso nacional, com aprovação por maioria absoluta pelas duas casas.

Em termos gerais, o Estado de defesa é utilizado nos casos de: 1) ameaça à ordem pública ou paz social, 2) instabilidade institucionais e 3) calamidade natural. Já o Estado de Sítio: 1) declaração de guerra, 2) resposta à agressão armada estrangeira, 3)ineficácia do estado de defesa.

O decreto do legislativo de nº 6, DE 2020 que reconheceu o estado de calamidade pública, aproximando-se daquilo que foi definido pela constituição federal como estado de defesa, porém, tecnicamente não o é, vez que não emanou do poder executivo.

Conforme se depreende do próprio decreto legislativo, o mesmo possui como objetivo principal, tão somente, flexibilizar a situação fiscal do país, possibilitando ao executivo adotar medidas extremas de cunho financeiro frente à emergência de saúde pública de importância internacional relacionada ao coronavírus (Covid-19), podendo direcionar recursos para as áreas mais afetadas com a pandemia, a exemplo da saúde.

Assim todas as garantias constitucionais permanecem incólumes, não se podendo falar em suspensão ou supressão de garantias constitucionais.

Diante deste panorama, em face de necessidade de isolamento da população para conter o avanço da pandemia e as garantias constitucionais da liberdade de locomoção e o direito de reunião, é que o STF vem se posicionando favoravelmente às medidas estatais para conter a circulação e reunião de pessoas.

Em recente decisão, de relatoria do ministro Marco Aurélio, na ADI 6.341 ficou sedimentado a competência concorrente, em termos de saúde, dos Estados e Municípios em adotarem as medidas que julgarem necessárias ao combate da pandemia, entre elas: restrição da liberdade de locomoção e reunião de pessoas.

Contudo, com dito anteriormente, estes direitos poderiam ser suprimidos, somente, nos casos de estado de defesa e estado de sítio, o que ainda não é o caso.

Mas, compreendemos que tal decisão do Colendo STF, resguarda a autonomia estadual e municipal de auto-organização, auto-governo e administração e normatização própria. Sendo que existem competências comuns à todos os entes federados, o que chamamos de federalismo cooperativo, entre elas: 1) zelar pela guarda da constituição, das leis e instituições democráticas e 2)cuidar da saúde e assistência pública (5).

A grande questão que se coloca é a seguinte: A exigência do isolamento social e lockdown violam os direitos constitucionais de locomoção, reunião e os fundamentos dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa?

Chegamos ao questionamento final e trataremos à luz de tudo que discorremos acima.

Acreditamos que as políticas de isolamento e lockdown violam os direitos constitucionais de locomoção, reunião e os fundamentos dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Contudo, quando se está em jogo o direito à vida, há um choque entre os princípios acima, devendo prevalecer, sempre, o de maior importância, que no caso é a vida.

Porém, não podemos deixar de mencionar que legalmente, os referidos direitos só podem sofrer quaisquer limitações mediante duas medidas para a restauração da ordem em momentos de anormalidade: Estado de Defesa e Estado de Sítio.

Como no caso, nenhuma das medidas foi adotada, qualquer restrição ou limitação aos direitos de locomoção, reunião e os fundamentos dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, são inconstitucionais.

Há quem defenda o contrário, Pedro Estevam Serrano(5), professor de Direito Constitucional da PUC-SP, afirma que o lockdown e/ou a proibição de circulação e reunião de pessoas independente da decretação do Estado de Sítio ou Estado de Defesa, visto que, em suas palavras: “tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e comprometimento da ordem pública, e não são necessários em crises sanitárias.

De certo que a crise atual brasileira é sanitária, porém, suas repercussões se dão em diversas outras áreas, como economia, social, etc. e vemos que as políticas do lockdown e isolamento social são medidas restritivas de direitos fundamentais.

Sobre o prisma da legalidade, por mais brandas que sejam as medidas restritivas de direito, estas devem guardar consonância com a Constituição, e nela há previsão de que nesses casos, deveria ser adotada o Estado de Sítio ou Estado de Defesa, pois só assim, a própria carta magna, autorizaria a limitação/restrição de direitos fundamentais.

Portanto, limitar diversos direitos fundamentais em prol do direito à saúde e vida, por mais que pareça proporcional, não guarda consonância com a carta magna, que exige a decretação do estado de sítio ou de defesa para que ocorram tais restrições.

BIBLIOGRAFIA:

(1)MORAES, Alexandre de/ DIREITO CONSTITUCIONAL. 21. Ed. – São Paulo ; Atlas, 2007.

(2)ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.

(3)“O entendimento do Supremo sobre a liberdade de reunião e manifestação” https://www.conjur.com.br/2019-jan-11/direitos-fundamentais-entendimento-stf-liberdade-reuniao-manifestacao, acessado em 12/08/2020

(4)Federalismo cooperativo exige reciprocidade entre entes federativos, https://www.conjur.com.br/2018-jul-09/constituicao-poder-federalismo-cooperativo-exige-reciprocidade-entre-entes-federativos , acessado em 12/08/2020.

(5)https://www.conjur.com.br/2020-mai-09/restricoes-lockdown-nao-dependem-estado- sitio#:~:text=Restri%C3%A7%C3%B5es%20do%20lockdown%20n%C3%A3o%20dependem%20de%20estados%20de%20defesa%20ou%20s%C3%ADtio&text=Ainda%20que%20restrinja%20os%20direitos,de%20defesa%20ou%20de%20necessidade.&text=Nesse%20regime%2C%20h%C3%A1%20limita%C3%A7%C3%A3o%20de%20alguns%20direitos%20fundamentais. acessado em 20/08/2020.

             

  

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