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Direitos Fundamentais como Trunfos Hermenêuticos na obra de Ronald Dworkin: uma leitura da Justiça Constitucional.

Agenda 23/08/2020 às 19:43

A hermenêutica jurídica dos Direitos Fundamentais soba a ótica de Ronald Dworkin, aponta que mais do que métodos e princípios especiais, estamos diante de categoria diferenciada, verdadeiros trunfos hermenêuticos.

 

1. Introdução; 2. Aspectos Gerais sobre a Justiça Constitucional e seus antecedentes; 3. Supremacia da Constituição e Direitos Fundamentais como fundamentos do Estado Democrático de Direito; 4. Hermenêutica dos Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional; 5. Direitos Fundamentais como Trunfos Hermenêuticos; 6. Conclusão; 7. Referencias

 

1. Introdução

A consolidação do Estado Democrático de Direito é o resultado de longo processo histórico, político e jurídico que buscou conquistar paulatinamente a colocação do ser humano cada vez em uma posição de centralidade na sociedade e no campo político. Assim, a evolução das instituições democráticas redunda necessariamente no crescimento gradual do respeito aos Direitos Fundamentais como vetor a ser observado.

Desta forma, a ascensão do constitucionalismo ao trazer consigo a Constituição como documento primordial na defesa da sociedade, não pode prescindir da existência de elementos que proporcionem a defesa e garantia de seu texto e conteúdo, com especial relevância para a preservação dos Direitos Fundamentais. É esperado que os poderes do Estado na defesa de seus interesses, ou da conveniência de seus membros, busquem eventualmente atacar a Constituição, o que poderia levar ao enfraquecimento, ou mesmo à aniquilação, de alguns Direitos Fundamentais.

Neste sentido avulta em prestígio a Justiça Constitucional como instrumento de tutela dos Direitos Fundamentais no Estado Democrático de Direito, cabendo destacar que a institucionalização de um sistema de controle de constitucionalidade das leis se tornou assunto de especial relevância considerando a inserção das Declarações de Direitos nas constituições.        

Os ensinamentos de Ronald Dworkin, filósofo político e jurídico norte-americano falecido em 2013 na seara da Teoria Geral do Direito, em especial sobre o alcance e efetividade de princípios, regras e políticas, possui especial importância para a hermenêutica dos Direitos Fundamentais na Justiça Constitucional. Em especial em sua tese dos direitos como trunfos hermenêuticos estudada pela doutrina mais aceita, conforme apresentaremos nas linhas abaixo.

 

2. Aspectos Gerais sobre a Justiça Constitucional e seus antecedentes

Ao estudarmos a história do Estado percebemos que parcela respeitável da doutrina nos indica que este se encontra vinculado um conjunto de normas básicas, escritas ou não, que lhe conferem fundamento e que tratam sobre sua organização, estrutura, atividades e finalidades. Na época medieval, em razão da força dos vínculos feudais e senhoriais não havia o que atualmente se entende por Estado Nacional.

Com o passar do tempo ganhou força a ideia de soberania e organização do poder, mormente na obra de Jean Bodin, e com a paulatina evolução destes conceitos, temos a delineação dos contornos do constitucionalismo moderno, sustentado por diversas correntes filosóficas do contratualismo, individualismo e iluminismo, tendo como baluartes Locke, Montesquieu e Rousseau, por exemplo[1].

Temos como ponto de inflexão neste sentido a Revolução Francesa realizada entre 1789 e 1799, sem que se despreze as influências da Revolução Industrial inglesa no século XVIII e da Revolução Norte Americana de 1776, cabendo especial destaque para os textos constitucionais das colônias norte americanas que podem ser encarados como as primeiras constituições escritas. A partir do século XIX ganha importância o papel da Constituição como texto fundamental de organização do Estado, com o fortalecimento do conceito de Estado Constitucional.

Não importando a qualificação ou conceito que se adote, a doutrina mais autorizada entende que atualmente só se concebe o Estado como Estado Constitucional, o qual é dotado de determinadas características identificadas pelo constitucionalismo moderno que o formatam como Estado de Democrático de Direito. Assim, estas duas características são inerentes à qualificação do Estado: o Estado de Direito e o Estado Democrático.

O Estado Constitucional Democrático de Direito tem o condão de criar uma ligação primordial entre democracia e estado de direito tendo como ponto de conexão o respeito pelos Direitos Fundamentais. Nesta toada, o Estado Constitucional Democrático de Direito está baseado em uma ampla diversidade de circunstâncias e elementos históricos, sendo primordial destacar que este momento da evolução da sociedade demonstra a grande importância da Constituição para a organização das atividades das instituições, das pessoas, e da atividade público-política.

Em consonância com este momento da evolução do Estado em Estado Democrático Constitucional, ganha impulso a criação de instrumentos que proporcionem a proteção, a defesa e a garantia da higidez da ordem constitucional, o que guarda relacionamento intrínseco com o controle judicial da Constituição e com a Jurisdição Constitucional. Assim, mostra-se coerente falarmos em Supremacia da Constituição e no Tribunal Constitucional como órgão encarregado de sua defesa.

A concepção de defesa e garantia da Constituição, dessa forma, tornam-se mais encorpados face à necessidade de protegê-la dos demais órgãos do poder estatal, justificando a ascensão de ideias que se mostraram essenciais para a manutenção das Constituições como textos centrais da ciência jurídica. Uma dessas técnicas é o estabelecimento de processos especiais para a alteração do texto constitucional, bem como a existência de limites jurídico-materiais para sua modificação.

 

3. Supremacia da Constituição e Direitos Fundamentais como fundamentos da Justiça Constitucional

O princípio da Supremacia da Constituição, assim, cresce em relevo como corolário da Teoria da Estrutura em Escalas do Ordenamento Jurídico, conforme defendido por Hans Kelsen[2], onde cada aplicação de uma norma jurídica implica na criação ou produção de outra, o que mitiga as possíveis contradições no ordenamento legal.

Nesta direção as normas inferiores da ordem jurídica se apresentam como atos de aplicação do direito em relação às normas que lhe são imediatamente superiores, determinando estas, o conteúdo, a validade, a efetividade e alcance das primeiras, até que se atinja a Constituição, que na qualidade de cúspide do sistema jurídico e de produto da criação primária do poder constituinte originário confere fundamento a todo o sistema legal.

Importante destacar ainda que ao Tribunal Constitucional incumbe, além da defesa das garantias da legalidade democrática, outra função extremamente nobre e relevante no sistema legal, qual seja: a fiscalização abstrata e concreta da constitucionalidade das leis e dos demais atos infraconstitucionais público-jurídicos.

Parte substancial da doutrina defende interessante tese sobre o que chama de novo constitucionalismo do pós-1945 do século XX, que compreende a inclusão de declarações de direitos nas constituições, com a institucionalização de um direito jurisdicional de controle de constitucionalidade das leis e de demais atos normativos em face da Constituição. Tal contexto pediu uma revisão do modelo kelseniano de Justiça Constitucional da década de 20 do século XX, o que levou a uma maior interação entre as cortes constitucionais e o Poder Legislativo, em um processo de judicialização do sistema de governo europeu[3].

Uma análise mais detalhada da história da fiscalização da constitucionalidade das leis mostra que foram desenvolvidos dois modelos que podem ser compreendidos como principais, sendo um deles descentralizado e voltado primordialmente para a análise de casos concretos, como se dá no modelo norte americano, ou o modelo concentrado e abstrato, conhecido como método austríaco.

O modelo de Justiça Constitucional europeu é mais adequado a realidade dos países deste continente por ter melhor se adaptado ao sistema parlamentar adotado pela maior parte dos países, ao contrário da organização peculiar dos Estados Unidos da América do Norte.

As modificações geopolíticas na dinâmica europeia partir da década de 70 do século XX levaram a uma onda de surgimento de tribunais constitucionais pela Europa, o que levou ao aumento da influência do Poder Judiciário. Até a Segunda Guerra Mundial a maioria das constituições europeias não contemplava, sequer, o processo judicial de controle de constitucionalidade das leis, o que somente começou a surgir de forma tímida com o fim da Primeira Grande Guerra.

A partir de 1945, os Direitos Fundamentais começam a ser introduzidos nas constituições com vindo a lume na mesma ocasião a instituição de órgãos judiciais específicos de controle de constitucionalidade das leis. Esse movimento se inicia com a constituição austríaca de 1945, e prossegue com as constituições italiana de 1948 e a francesa de 1958. A criação de tribunais constitucionais europeus ganha impulso, ainda, com a criação dos tribunais constitucionais espanhol em 1978, e português em 1982, com a onda ligada à extinção dos regimes socialistas do centro e leste europeus.           

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Tal fenômeno veio atrelado à expansão do princípio da responsabilidade, onde as cortes constitucionais começaram a levar em consideração nas suas decisões os potenciais efeitos que da atividade judicial poderiam advir à sociedade e à economia, o que termina por desprivilegiar as interpretações reducionistas do tradicional princípio da Separação de Poderes, o qual restringe a atividade judiciária a uma interpretação silogística da lei, no esquema lógico-subsuntivo.

Desta forma, com o passar do tempo temos a depuração e o aperfeiçoamento dos regimes constitucionais e o crescimento em importância da dimensão axiológica do Princípio da Supremacia da Constituição, sendo os tribunais constitucionais cada vez mais investidos da função de obstar os ataques à lei maior pelos Poderes Legislativo e Executivo.

Assim, temos que a Constituição não é somente uma pluralidade de ordens e diretivas voltadas ao legislador que, por conseguinte, concretizaria tais comandos em normas jurídicas que regulam a sociedade. A Constituição com a evolução do Estado de Direito Democrático e com a expansão da democracia além de ser também o fundamento de validade do Estado passa a ser percebido, também, como o repositório das normas mais importantes da ordem jurídica, cuja finalidade maior é racionalizar, delimitar e dividir o poder político[4]. Tais acontecimentos marcam a ascensão do constitucionalismo e da supremacia da constituição como norma jurídica.

Neste sentido vemos uma crescente institucionalização da submissão do estado soberano moderno ao espectro de atuação de cortes constitucionais de tutela dos Direitos Humanos, bem como a vinculação dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados à tratados e acordos internacionais sobre esses temas.

Percebemos, também, a expansão da defesa dos direitos fundamentais pelos Estados não somente em favor dos cidadãos nacionais, mas sim das pessoas sobre as quais é exercida a jurisdição[5].

Desta maneira a supremacia da Constituição e a necessidade preservar ao máximo a efetividade dos Direitos e Garantias Fundamentais mostram-se como elementos primordiais para o constitucionalismo contemporâneo e para a evolução da democracia.

É essencial recordar que a doutrina mais aceita entende que não existem Direitos Fundamentais sem Constituição, compreendida esta como o produto do constitucionalismo moderno do Século XVIII e como documento de cunho político-jurídico que exerce a função primordial de refundar ou inaugurar um ordenamento legal, sistematizador das normas e do poder em uma comunidade[6].

A vista disso, a definição de valores e princípios como o princípio da supremacia da constituição, possui como corolário natural a existência de uma Justiça Constitucional cuja hermenêutica se paute pela efetividade dos Direitos Fundamentais, e que lhe assegure ao máximo a integridade.

Portanto, a Justiça Constitucional se mostra como o resultado esperado de um sistema de controle de constitucionalidade que sirva de garantia político-jurídica dos princípios axiológicos basilares da Democracia Constitucional, tais como os Direitos Fundamentais.

 

4. Hermenêutica dos Direitos Fundamentais na Justiça Constitucional

De uma maneira ampla temos que a hermenêutica é a ciência de cunho filosófico que possui regras e princípios que lhe são peculiares destinados a interpretação de textos.

Por meio da atividade hermenêutica o intérprete extrai normas jurídicas de textos normativos com vistas a viabilizar sua aplicabilidade em situações concretas. A atividade hermenêutica possui, assim, uma finalidade de construção, em especial na interpretação constitucional[7].

Trata-se então, a hermenêutica, da teoria ou da arte da interpretação e compreensão, e que possui a função de descrever o processo interpretativo-compreensivo. Além deste caráter teórico-descritivo possui uma dimensão prescritiva, uma vez que busca estabelecer um conjunto de regras e métodos para interpretar e compreender corretamente os textos que compõem o mundo jurídico e seus textos de leis, decretos e jurisprudências[8].      

A hermenêutica constitucional e dos direitos fundamentais se vale, assim, de diversos princípios e métodos os quais devem ser aplicados de forma conjunta, sendo possível afirmar que temos regras de interpretação gerais e tradicionais, como as indicadas pela doutrina mais tradicional, cabendo destaque para o método jurídico ou hermenêutico clássico, do método tópico-problemático, do método hermenêutico-concretizador, método científico-espiritual, método normativo-estruturante e método da comparação constitucional. Desta forma, para os estudiosos que observam a hermenêutica jurídica clássica, a Constituição em sua forma essencial tem a natureza de uma lei, devendo, portanto, ser interpretada segundo as regras tradicionais de interpretação constitucional[9].

          Não podemos negar, todavia, que a hermenêutica pode adquirir cores específicas a depender da área do direito em tela, ou do bem jurídico examinado, com a existência de princípios específicos e métodos próprios, e a seara dos Direitos Fundamentais e da Justiça Constitucional possui algumas peculiaridades.

Se destacam, então, as diversas formas de manifestação da Justiça Constitucional como instrumento de tutela dos Direitos Fundamentais e como uma das dimensões estruturantes do Estado Democrático de Direito.

          Não se pode ignorar, neste sentido, que a complexidade do Direito Constitucional e o desempenho da Justiça Constitucional se evidenciam de maneira especial no âmbito da hermenêutica e da defesa dos Direitos Fundamentais.

As normas jurídicas atinentes aos Direitos Fundamentais possuem algumas peculiaridades relevantes em relação aos demais ramos da ciência jurídica, como por exemplo, conteúdo de caráter aberto e fragmentário que se manifesta por meio de sua imprecisão semântica[10]. Cabe destacar ainda que a referida abertura semântica abrange estruturalmente conceitos de natureza moral com destaque para parte da doutrina que entende que os Direitos Fundamentais seriam direitos morais positivados ou direitos humanos constitucionalizados.

          Com a consolidação do constitucionalismo restou amplamente definido que toda constituição deve, necessariamente, possuir uma declaração de direitos fundamentais sem a qual não se pode entender que se trata de texto constitucional[11]. A melhor doutrina leciona que se trata de um fenômeno definido como “constitucionalização”, o qual opera a incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formais subtraídas da esfera de disponibilidade do legislador ordinário.

Assim, a constitucionalização apresenta como sua mais importante característica a proteção dos Direitos Fundamentais pela Justiça Constitucional, sendo aqueles reconhecidos pela ordem jurídica interna como normas jurídicas vinculativas e não como preceitos meramente orientativos[12].

          A inserção das declarações de direitos nas constituições tem clara intenção de moderar a tensão entre a vontade das maiorias e a defesa das minorias, considerando a limitação do exercício do princípio majoritário, uma vez que o Poder Legislativo, constituído sob a égide da Lei Fundamental do Estado não pode dispor sobre os Direitos Fundamentais sem subverter e aniquilar a ordem constitucional.

Desta forma, temos que a premissa básica da Justiça Constitucional se baseia no fato de que a atuação do Poder Legislativo se submeter a limites intransponíveis na Constituição no que pertine aos Direitos Fundamentais.

Não se trata, é bom esclarecer, de submissão cega da vontade democrática dos legisladores aos interesses do Poder Judiciário, cujos membros sequer foram escolhidos por meio do voto popular, mas sim, de preservar as condições do pacto social firmado no texto constitucional. É um caso de aplicação prática do conceito de constitucionalização explicado acima, onde a Justiça Constitucional assegura as condições estabelecidas no texto constitucional que vincula aos legisladores, os quais exercem seu mandato conforme as balizes estabelecidas pelo poder constituinte originário[13].   

Esta é a posição dominante entre os doutrinadores do Direito Constitucional e da Teoria Política, posto que rejeitam a redução do regime democrático às decisões do regime de governo pelo voto pelo princípio majoritário, entendendo que os Direitos Fundamentais ocupam a posição de condição de existência de um Estado Democrático de Direito[14].

Certamente, os Direitos Fundamentais possuem uma relação simbiótica com a democracia e com o Estado Democrático de Direito, em face do reconhecimento insofismável do princípio da igual dignidade de todas as pessoas, o qual se vincula aos vetores de liberdade, igualdade e dignidade do indivíduo, sem os quais não haverá Estado de Direito.

Nesta toada, as regras tradicionais da hermenêutica são insuficientes para a interpretação jurídica dos Direitos Fundamentais, uma vez que estes possuem semanticamente conceitos abertos e juridicamente indeterminados (tais como intimidade, honra, dignidade), os quais podem ainda colidir entre si no momento da análise no âmbito da Justiça Constitucional.

Portanto, é preciso atentar para o fato de que a interpretação dos Direitos Fundamentais deve obedecer, segundo parte prestigiosa da doutrina, a dois vetores hermenêuticos básicos: incialmente sua superioridade normativa, posto que não existem normas a elas superiores, e a sua força expansiva, que determina que todos os aspectos da vida social sejam impregnados pela tutela dos Direitos Fundamentais[15].

Importante destacar também o entendimento pelo qual os Direitos Fundamentais não são herméticos e fechados, sendo antes o resultado de um processo de conciliação de interesses desenvolvido para a promoção da dignidade humana em um contexto histórico e social.

Desta forma, são os Direitos Fundamentais vividos, interpretados e reinterpretados constantemente pela sociedade tanto nas relações horizontais (entre indivíduos) quanto verticais (indivíduos e Estado)[16].

Assim, podemos esposar a tese de que os Direitos Fundamentais, na categoria de princípios estruturantes do Estado, em especial de princípios fundantes da dignidade da pessoa humana, calçados nos valores da igual importância objetiva da vida de cada um, e o da responsabilidade pessoal de cada um pelo sucesso da própria vida, elevariam os Direitos Fundamentais a categoria especial de trunfos hermenêuticos, conforme defendido por exímios doutrinadores como Dworkin e Novais, posições que serão estudadas em detalhes adiante.  

      

5. Direitos Fundamentais como Trunfos Hermenêuticos

Levando-se em conta os entendimentos analisados acima relacionados à hermenêutica jurídica dos Direitos Fundamentais na Justiça Constitucional, os quais defendem a insuficiência técnica dos métodos clássicos de interpretação nesta seara, cabe agora examinar o posicionamento paradigmático de Ronald Dworkin, que criou a metáfora dos direitos como trunfos na hermenêutica jurídica[17].

Trata-se de tese de fundamental importância para a hermenêutica dos Direitos Fundamentais na Justiça Constitucional, podendo ser invocada como tese de extrema relevância para os cidadãos, para os julgadores, para o Estado, para os legisladores, enfim: para todos os atores sociais envolvidos na defesa de normas neste campo.

Em vista disso, esclarece a doutrina que para Dworkin, a metáfora dos trunfos significa que as situações jurídicas individuais baseadas no direito moral à igualdade de consideração e respeito que o Poder Público deve conferir a cada indivíduo, possuem a relevante função de trunfos, ou seja, de vantagens interpretativas em face de preferências externas. Tais trunfos operam, em especial, contra eventuais pretensões do Estado tendentes a restringir seu poder de autodeterminação, considerando valores alheios e que por razões circunstanciais pretende-se superior respeito[18].

Portanto, os Direitos Fundamentais podem ser interpretados como trunfos que que blindam os bens jurídicos de diferenciada importância em uma sociedade, tais como a liberdade e a autonomia individual em face da intromissão de atuações do Poder Legislativo e das decisões políticas de uma forma geral.

 Assim, em Dworkin, a despeito de sua colaboração nos estudos de filosofia jurídica sobre as naturezas e distinções entre regras, princípios e políticas[19], conforme lecionado por Novais[20], não há verdadeiramente uma formula geral de apreciação de ponderação de bens políticos ou jurídicos que apresente uma solução para a apreciação eventual de pesos relativos dos Direitos Fundamentais em cotejo com os interesses das maiorias. No mesmo sentido, não é proposta uma teoria geral sobre as condições a serem observadas nos processos nos quais possa ocorrer a restrição a Direitos Fundamentais.

Tal explicação advém, conforme indicado pela doutrina mais aceita, dos entendimentos de Dworkin sobre a inexistência de conflitos verdadeiros e de cunho estrutural entre democracia e Direitos Fundamentais, devendo o intérprete realizar uma integração positiva entre os vetores da democracia, igualdade, e liberdade, não se procedendo a uma comparação de pesos axiológicos.

Deve o operador do direito, em sua análise hermenêutica de um eventual conflito, conforme lecionado pelo jus-filósofo, realizar uma composição positiva dos valores axiológicos básicos levando em conta a melhor leitura moral da Constituição, considerando a regra da interpretação extensiva dos Direitos Fundamentais[21].

A tese dos Direitos Fundamentais como trunfos hermenêuticos na Justiça Constitucional começa a ficar mais clara quando passamos a estudar a dignidade da pessoa humana como um dos pontos mais fortes da teoria dos referidos Direitos Fundamentais.

Assim, os Direitos Fundamentais são encarados como trunfos contra as maiorias pelo fato de seus fundamentos residirem, basicamente, na dignidade da pessoa humana, fundamento de existência de qualquer Estado, inicialmente. No mesmo sentido, esta fundamentação levou o Estado Democrático e Constitucional de Direito a atribuir aos Direitos Fundamentais uma força normativa e hermenêutica superior às demais normas do ordenamento jurídico, como opção do constituinte originário. Tais fundamentos fazem com que os Direitos Fundamentais estejam protegidos das flutuações do poder político.

Cria-se assim, como princípio unificador a indisponibilidade dos Direitos Fundamentais no Estado Democrático de Direito, sendo estabelecida a vinculação dos poderes da República à sua observância, mesmo que os detentores dos Poderes Legislativo, Executivo, ou Judiciário, detenham legitimidade popular para exprimir a vontade democrática da maioria da população[22].

Mostra-se pertinente, neste momento, tecer alguns comentários sobre as relações entre os Direitos Fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que estes são indicados de forma praticamente unânime pela doutrina jurídica como fundamento da ordem jurídica dos Estados de cunho democrático.

O princípio da dignidade da pessoa humana é o vetor que confere simultaneamente unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional, ou seja: dota a Constituição de um sentido e de valor de unidade, fazendo da pessoa o fundamento e o fim do Estado[23].

Conforme já indicado pela doutrina, a dignidade da pessoa humana é o valor maior do sistema de liberdades constitucionais, e portanto, dos Direitos Fundamentais[24]. Não por acaso, parcela respeitável da doutrina entende que o respeito aos direitos humanos pode ser encarado como critério aferidor de legitimidade de um determinado ordenamento jurídico constitucional, conforme lecionado por Sarlet[25]. Como defende o referido doutrinador, todos os Direitos e Garantias Fundamentais encontram seu fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, do qual são concretizações, não sendo desarrazoado afirmar que existe uma relação forte entre estes institutos.

Portanto, na hermenêutica da Justiça Constitucional podemos defender a tese da função instrumental e integradora do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que este se presta a operar como parâmetro de aplicação, interpretação e integração dos Direitos Fundamentais e das demais normas constitucionais, bem como de todo o ordenamento jurídico.

O princípio da dignidade da pessoa humana termina desta forma por ser o fundamento material da concepção dos Direitos Fundamentais como trunfos hermenêuticos, uma vez que da necessidade do Estado de observar a igual dignidade para todos resulta o direito de cada um seguir seus próprios e pessoais planos, independente da maior ou menor aceitação social dos demais, respeitados os demais valores constitucionais[26].

Daí cresce em importância a ideia da renúncia na ordem constitucional sobre as posições juridicamente protegidas pelos Direitos Fundamentais, uma vez que estes foram subtraídos à disponibilidade dos poderes públicos, residindo na autonomia da vontade de cada titular a possibilidade de exercer seu direito, ou de consentir na sua limitação.

Por esse motivo, é estabelecida constitucionalmente a inadmissibilidade de a maioria política, mesmo que democraticamente estabelecida e organizada, de impor ao indivíduo suas próprias convicções e vontades às minorias e indivíduos em situação de vulnerabilidade democrática.             

Portanto, a tese de Dworkin de Direitos Fundamentais como trunfos hermenêuticos na Justiça Constitucional deita suas raízes inexoravelmente no princípio da dignidade da pessoa humana e nas concepções modernas de constitucionalismo democrático.

 

6. Conclusão       

Nos itens acimas estudamos os Direitos Fundamentais como trunfo hermenêutico na Justiça Constitucional, na ótica de Ronald Dworkin, abordando ensinamentos de Ingo Wolfgang Sarlet, Jorge Reis Novais, Jorge Miranda, dentre outros doutrinadores.

Vimos que a hermenêutica dos Direitos Fundamentais possui métodos, princípios e regras peculiares em relação às demais matérias jurídico-políticas pela razão de tutelar valores de distinta importância no Estado Democrático de Direito.

Estudamos, ainda, que os Direitos Fundamentais possuem um valor axiológico superior dentro do arcabouço estatal, uma vez que são imbricados com o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual é o fundamento de validade e existência do Estado constitucional.

Portanto, a Justiça Constitucional possui uma relação de unidade incontestável com os Direitos Fundamentais, fazendo com estes sirvam como trunfo hermenêutico na análise e interpretação no Estado Democrático de Direito.

Trata-se, por conseguinte, de tema de alta relevância para os estudiosos do direito e que merece ser aprofundado pela comunidade acadêmica pelas suas relevantes implicações no dia a dia da sociedade.

            

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[1] MIRANDA, Jorge. Curso de Direito Constitucional. p. 105.

[2] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. p.168/169.

[3] QUEIROZ, Cristina. Justiça Constitucional. p. 4

[4] QUEIROZ, Cristina. Justiça Constitucional. p. 7.

[5] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional. p. 63.

[6] MIRANDA, Jorge. Curso de Direito Constitucional. Vol.1. p. 229

[7] BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. p. 270.

[8] STRECK, Lênio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. p.262  

[9] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. p. 155.

[10] MOTA, Marcel Moraes.Tutela Jurisdicional dos Direitos Fundamentais e Concepções Democráticas. p. 4059.

[11] CANOTILHO. Op. Cit. p. 379.

[12] CANOTILHO. Op. Cit. p. 378.

[13] MOTA, Marcel Moraes. Op. Cit. p. 4061.

[14] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional. p. 24.

[15] RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. p.93

[16] HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. p. 15.

[17] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. p.305

[18] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional. p. 43.

[19] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. p. 35

[20] Op. Cit. p. 46.

[21] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional. p. 48

[22] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional. p. 50.

[23] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. p.95.

[24] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. p.180.

[25] Op. Cit. p. 96.

[26] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Fundamentais e Justiça Constitucional. p.53.

Sobre o autor
Marcus Vinicius Macedo Pessanha

Advogado especializado em Direito Público, Regulatório e Econômico com forte atuação em processos junto a Administração Pública Direta e Indireta, assim como junto ao CADE e ao TCU em assuntos envolvendo licitações e contratos administrativos, permissões e concessões de serviços públicos, parcerias público privadas, obras públicas e infraestrutura e contratações no regime diferenciado de contratação (RDC), nos setores de energia e transporte público. Formado na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2002, pós-graduado (especialização) em Direito da Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (2004), pós graduado (especialização) em Direito Empresarial e dos Negócios na UGF (2006), Extensão em Direito Contratual na Universidade Candido Mendes (2009), Extensão em Direito Urbanístico e Municipal na Universidade Cidade de São Paulo (2010), Extensão em aspectos regulatórios da navegação marítima brasileira no SINAVAL (2011). Pós Graduando em Ciência Política (especialização) nas Faculdades Integradas AVM.

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