5. SUBSÍDIOS E DIREITOS ADQUIRIDOS
A Constituição Federal, no art. 5º, inciso XXXVI, enuncia: "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
Ensinam-nos Carlos Ayres Britto, ora emprestando seu brilho à Excelsa Corte, e Valmir Pontes Filho que os direitos adquiridos são manifestação do princípio maior da segurança jurídica [14].
José Afonso da Silva, em parecer encomendado pela AMPERJ e AMB, sintetiza o ensinamento sobre esses institutos:
"Ou seja, se o direito subjetivo não foi exercido, vindo lei ou emenda constitucional nova, ele se transforma em direito adquirido, porque já incorporado no patrimônio do titular. Se, porém, o direito subjetivo já foi exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica definitivamente constituída (direito satisfeito, direito realizado, extingui-se a relação jurídica que o fundamentava). Exemplo, quem tinha o direito de aposentar-se, aposentou-se, seu direito foi exercido, consumou-se; lei nova ou emenda constitucional nova não tem o poder de desfazer o direito assim exercido; não pode desaposentar o aposentado nem pode retirar os efeitos jurídicos da aposentadoria já consumada, só porque estabeleceu regras diferentes para ela. Aqui o direito subjetivo recebeu consagração definitiva por meio de um ato do Poder Público, gerando uma situação jurídica mais forte do que o direito adquirido, porque se dá o encontro entre o direito subjetivo, direito já incorporado no patrimônio do titular, e um ato jurídico do Poder Público que o consagra em definitivo, ato jurídico esse que, expedido regularmente, consolida definitivamente a situação jurídica subjetiva de vantagem no patrimônio do titular com força inderrogável do ato jurídico perfeito e acabado."
Tais garantias constituem-se cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º, IV, c/c o art. 5º, XXXVI) insuscetíveis de afastamento até mesmo por emenda constitucional, como já decidiu a Suprema Corte na ADI 939/DF, Plenário, Min. SYDNEY SANCHES, DJU 18/3/1994, página 5165 (no mesmo sentido: ADI 829/DF, Pleno, Min. MOREIRA DJU 16-09-1994 PP-24278). Mais recentemente, no multicitado julgamento do MS 24875, o STF reafirmou a possibilidade de confrontar direitos adquiridos com a Emenda Constitucional, no caso a de número 41.
A imutabilidade alcança tanto a garantia abstrata dos direitos adquiridos, ou seja, a previsão do art. 5º, XXXVI, como os próprios e concretos direitos individuais que são qualificados com o adjetivo adquirido.
É verdade que a Emenda Constitucional n. 41/2003, no art. 9º, mandou aplicar o disposto no art. 17 do ADCT "aos vencimentos, remunerações e subsídios dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza". Porém, como reconhecido no julgamento do MS 24875, não é possível restaurar a eficácia deste dispositivo transitório que se exauriu com a promulgação da Constituição Federal em 1988, fazendo com que os valores percebidos acima dos limites então estabelecidos pelo Legislador Constituinte Originário fossem reduzidos. O que quer a Emenda Constitucional n. 41/2003 agora é afrontar o preceito fundamental do direito adquirido, cláusula pétrea, que não pode ser excetuado nem mesmo por dupla Emenda Constitucional.
José Afonso da Silva, corroborando a doutrina hoje corrente, ensina (parecer mencionado, p. 16-17, grifamos):
"18. O art. 5º, XXXVI, como visto acima (n. 10), estatui que a lei não poderá prejudicar direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ninguém duvida de que, embora fale em lei, a garantia constitui também limitação ao poder de emenda: poder constituinte derivado, por ser uma forma de poder constituído ou instituído, é poder regrado, condicionado e limitado. Nada mais é do que uma competência instituída, na Constituição, para a produção de normas constitucionais derivadas, de acordo e dentro dos limites estabelecidos pela própria constituição. Disso decorre que se trata de um poder limitado por via de normas da própria Constituição que lhe impõem procedimento e modo de agir, dos quais não pode arredar-se sob pena de sua obra sair viciada, ficando mesmo sujeita ao sistema de controle de constitucionalidade, como outras normas jurídicas. Esse tipo de regramento da atuação do poder de reforma constitucional configura limitações formais. Além dessas limitações que são da essência do sistema, assinalam-se outras específicas que a doutrina costuma distribuir em três grupos: temporais, circunstanciais e materiais (explícitas e implícitas). Aqui só interessam as limitações materiais explícitas, porque aqui é que se situam os fundamentos das conclusões a que chegaremos neste parecer. Pois, entre as cláusulas imodificáveis por reforma constitucional, o art. 60, § 4º da Constituição vigente, está a vedação de proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (inc. IV).
19. Antes dessa norma não era raro encontrarem-se afirmativas no sentido de não haver direito adquirido contra norma constitucional sem nenhuma distinção. Era uma doutrina pertinente ao poder constituinte originário, mas, se antes se poderia ter dúvidas de que o direito adquirido limitava o poder constituinte derivado, essas dúvidas não podem mais prevalecer em face da vedação, hoje expressa, de apresentação de propostas de emendas tendentes a abolir direitos e garantias individuais. E ninguém duvida de que se configura como uma típica garantia individual a regra constante do inc. XXXVI do art. 5º da Constituição de 1988, segundo o qual a lei não pode prejudicar o direito adquirido. O argumento é irretorquível, como um entimema: a reforma constitucional não pode abolir direito adquirido porque se trata de uma garantia individual. Ou se quiser em forma de um silogismo: a reforma constitucional não pode abolir direitos e garantias individuais; o direito adquirido é uma garantia individual expressa no art. 5º, XXXVI; logo, a reforma constitucional não pode abolir o direito adquirido. Ou ainda, por outra forma: os direitos e garantias individuais são imodificáveis por emenda constitucional; o direito adquirido é uma garantia constitucional; logo, o direito adquirido é imodificável por emenda constitucional."
No mesmo sentido Alexandre de Moraes [15]:
"Note-se que a alterabilidade constitucional, embora possa traduzir-se na alteração de muitas disposições da Constituição, sempre deverá conservar um valor integrativo, no sentido de que deve deixar substancialmente idêntico o sistema originário idealizado pelo legislador originário. Nelson Sampaio, citando Cooley, afirma que ‘as emendas constitucionais não podem ser revolucionárias; elas devem estar em harmonia com o corpo do documento’. Não é outro o entendimento exposto por Carl Schmitt, ao afirmar que a possibilidade da Constituição ser reformada, não ‘quer dizer que as decisões políticas fundamentais que integram a substância da Constituição possam ser suprimidas e substituídas por outras quaisquer pelo Parlamento’.
(...) Ressalte-se que a Emenda constitucional somente permanecerá no ordenamento jurídico se em sua edição tiver respeitado as limitações expressas e implícitas decorrentes do art. 60 da Constituição (Cf. Capítulo 11, item 4)."
E conclui o eminente autor na edição já atualizada com a Emenda Constitucional n. 47/2005 [16]:
Uma das regras obrigatórias para o Congresso Nacional no exercício do poder constituinte derivado reformador é a observância das chamadas cláusulas pétreas, verdadeiras limitações materiais ao poder de alteração constitucional e, dentre elas, os chamados direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4º, IV).
Os direitos e garantias individuais [entre eles o direito adquirido], portanto, constituem um núcleo intangível da Constituição Federal, no sentido de preservação da própria identidade da Carta Magna, impedindo sua destruição ou enfraquecimento..."
O entendimento da doutrina encontra ressonância no Supremo Tribunal Federal:
"Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b", "c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua e de guarda da Constituição (art. 102, I, "a", da C.F.). (...)." (ADI 939/DF, Plenário, Min. SYDNEY SANCHES, DJU 18/3/1994, página 5165, grifamos No mesmo sentido: ADI 829/DF, Pleno, Min. MOREIRA DJU 16-09-1994 PP-24278).
Portanto, a instituição do subsídio em parcela única não pode afastar as vantagens regular e licitamente incorporadas ao patrimônio jurídico dos Membros do Ministério Público e da Magistratura.
Tal impossibilidade é ainda mais flagrante em relação às que, nos termos do julgamento da ADI 14, estavam imunes ao teto definido na redação original da Carta de 1988, como as vantagens pessoais decorrentes da aposentadoria e da incorporação de gratificações (quintos/décimos).
Ademais o escalonamento decorrente da instituição do subsídio para as categorias funcionais abaixo do Procurador-Geral da República e dos Ministros do STF não se confunde com subtetos. A parcela única para os cargos iniciais da carreira, por exemplo, não faz coincidir a noção de piso e teto intermediário. Ao contrário disso, o art. 37, XI, da Constituição – o que foi corroborado no julgamento do MS 24875 – prevê expressamente a coexistência do subsídio, parcela única, com vantagens pessoais, ao dispor:
"a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos" (grifamos).
Portanto, a fixação do teto no patamar do subsídio dos Ministros do Supremo Tribunal Federal permite que os agentes públicos, incluindo os Membros da Magistratura e do Ministério Público, continuem percebendo as chamadas vantagens pessoais pelo menos até o teto.
Esse é o entendimento da doutrina constitucional brasileira, coligido no parecer supracitado do Professor José Afonso da Silva. É também a conclusão que se colhe do Mestre Alexandre de Moraes, eminente Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça [17]:
"Em conclusão, entendemos inadmissível qualquer interpretação seja da EC nº 19/98, seja da EC nº 41/03 que possibilite o desrespeito aos direitos adquiridos dos servidores públicos, às vantagens pessoais incorporadas regularmente aos seus vencimentos, e conseqüentemente, integrantes definitivamente em seu patrimônio, em face de desempenho efetivo da função ou pelo transcurso do tempo, como por exemplo anuênios ou qüinqüênios. Irrefutável a argumentação do saudoso Hely Lopes Meirelles, quando afirma que ‘vantagens irretiráveis do servidor só são as que já foram adquiridas pelo desempenho efetivo da função (pro labore facto), ou pelo transcurso do tempo (ex facto temporis).
Em relação a essas vantagens, consubstanciou-se o fator aquisitivo, configurando-se a existência de direito adquirido, pois conforme salienta Limongi França, ‘a diferença entre a expectativa de direito e direito adquirido está na existência, em relação a este, de fato aquisitivo específico já configurado por completo’. Ora, aqueles que, de forma lícita e reconhecida juridicamente, tenham seus vencimentos atuais superiores ao futuro teto salarial do funcionalismo, previsto no inciso XI, do art. 37, da Constituição Federal, pela EC nº 41/03 – auto-aplicável, em face do art. 8º da citada emenda, conforme já analisado -, e correspondente ao subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, (...), de forma alguma poderão sofrer redução salarial, sob pena de flagrante desrespeito à proteção aos direitos adquiridos" (grifamos).
É imprescindível notar que a Emenda Constitucional n. 19/98 instituiu o subsídio para os agentes políticos, que constituem o patamar mais elevado da Administração Pública. Estes, como os demais servidores públicos, estão submetidos ao teto remuneratório instituído pelo art. 37, XI, da Carta Magna e são remunerados por parcela única. Ocorre que a preservação das vantagens pessoais somente para os servidores públicos não remunerados por subsídio, o que se admite só para argumentar, faria com que houvesse uma subversão da normal organização administrativa, permitindo que tais servidores fossem remunerados até o teto, mas Magistrados e Membros do Ministério Público percebessem somente a parcela única decorrente do escalonamento determinado pelo art. 93, V, da Constituição. Tal aplicação literal do art. 39, § 4º, da Carta seria por demais iníqua e contrária ao sistema de organização administrativa.