Enunciado 17 da I Jornada de Direito Administrativo (CEJ/CJF): Será absoluta a vedação de aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93?
O Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), no início do mês de agosto de 2020, realizou a I Jornada de Direito Administrativo. De um total de 743 propostas de enunciados encaminhadas, houve a seleção de 222, as quais, após apreciação pelas seis comissões de trabalho instituídas, foram levadas ao Plenário, onde, por fim, houve a aprovação de 40 enunciados[1].
Dentre esses enunciados, aquele que traz o questionamento deste artigo é o de número 17: “Os contratos celebrados pelas empresas estatais, regidos pela Lei n. 13.303/16, não possuem aplicação subsidiária da Lei n. 8.666/93. Em casos de lacuna contratual, aplicam-se as disposições daquela Lei e as regras e os princípios de direito privado.”.
Quanto à forma, aponte-se, de passagem, que a redação do dispositivo não parece a melhor, gramaticalmente, pois indica que os agentes da ação verbal seriam os contratos, que “não possuem aplicação subsidiária da Lei n. 8.666/93”, quando, em realidade, é a Lei que se aplica, ou não, aos contratos, sendo redação gramática-jurídica mais precisa, algo como: “Aos contratos celebrados pelas empresas estatais, regidos pela Lei n. 13.303/16, não se aplica subsidiariamente a Lei n. 8.666/93 [...]”.
De qualquer maneira, independente da redação que se adote, quanto ao conteúdo, o que se questiona é: Será absoluta a enunciada vedação de aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93?
É pertinente o questionamento, pois, ao contrário do que fez a Lei nº 12.462/11, ao dispor sobre o Regime Diferenciado de Contratações – RDC[2], a Lei das Estatais (cujos procedimentos são símiles aos da RDC) não afastou expressamente as normas contidas na Lei nº 8.666/93.
Doutrinariamente há entendimentos diversos em relação ao tema:
De um lado, Edgar Guimarães e José Anacleto Abduch, em obra de 2017, propõem que: “Diante da omissão da lei das Estatais, é de se sustentar que não há aplicação subsidiária à Lei nº 8.666/93.”[3].
De outro, Marçal Justen Filho, em obra de 2016, defende que, mesmo não sendo possível se estabelecer a aplicação subsidiária da Lei nº 8.666/93 como um pressuposto[4]:
Isso não implica negar a possibilidade de que, como exceção e em situações específicas, a Lei 8.666 seja aplicada para suprir uma omissão, nos casos em que existir identidade de pressupostos, de finalidade e de conteúdo das situações disciplinadas.
Em outros casos, há identidade entre as regras das Leis 8.666 e 13.303/2016, o que pode autorizar a aplicação da Lei das Estatais segundo o entendimento já consagrado relativamente à Lei de Licitações. Assim se passa nos casos de dispensa de licitação referidos no art. 29 da Lei 13.303/2016.
No mesmo sentido dessa segunda corrente, há recentíssimo julgado do Plenário do Tribunal de Contas da União[5] fundamentado da seguinte maneira:
10.41. Nada mais razoável do que complementar as lacunas de um estatuto com as disposições de outro, mais geral, que trata do mesmo assunto, desde que compatíveis. À luz desse critério, é perfeitamente possível que se considere extensível ao regime da Lei 13.303 a restrição da Lei 8.666 à “exigência de comprovação de atividade ou de aptidão com limitações de tempo ou de época ou ainda em locais específicos” como requisito de qualificação técnica.
10.42. Além disso, tal restrição não passa de detalhamento da aplicação dos citados princípios da competitividade e da isonomia. É claro, pois, considerando-se a sujeição dos dois estatutos referidos a esses princípios, que esse comando da Lei 8.666, cuja pertinência é facilmente perceptível, complementa de forma compatível os requisitos de habilitação técnica da Lei 13.303.
Concluindo, em resposta ao questionamento inicialmente formulado, tem-se que a melhor interpretação para o novel Enunciado 17 inclina-se em ser aquela que vindica seu caráter relativo, pois, ainda que na maior parte das lacunas aparentes entre a Lei das Estatais e a de Licitações a aplicação subsidiária seja incompatível, existirão situações específicas em que, via integração analógica, ela será possível, ocorrendo o mesmo nos casos de identidade entre regras dos dois diplomas legais, em que entendimentos jurisprudenciais e doutrinários já consagrados em relação a algum dispositivo da Lei nº 8.666/93 poderão ser utilizados no manejo da Lei n 13.303/16.
[1] https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2020/08-agosto/i-jornada-de-direito-administrativo-aprova-40-enunciados
[2] Art. 1º É instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), aplicável exclusivamente às licitações e contratos necessários à realização:
[...]
§ 2º A opção pelo RDC deverá constar de forma expressa do instrumento convocatório e resultará no afastamento das normas contidas na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, exceto nos casos expressamente previstos nesta Lei.
[3] GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José Anacleto Abduch. Lei das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei nº 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 123.
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. A contratação sem licitação nas empresas privadas. Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 288.
[5] ACÓRDÃO 739/2020 – PLENÁRIO. Relator BENJAMIN ZYMLER. Processo 006.959/2019-9. Data da sessão 01/04/2020. Número da ata 10/2020 - Plenário