Caros(as) leitores(as).
Não se assustem com o descompasso entre o tema que proponho e a situação atual. É que comecei a escrever este texto antes da pandemia e das convulsões sociais, e me preocupava com a banalização de um princípio constitucional. Num apelo academicista, pretendia convidar a todos a aderir ao uso estritamente necessário do princípio da dignidade humana nas peças jurídicas cotidianas.
Refletindo sobre a ideia nesses dias, ainda pretendo a mesma coisa.
Para tanto, inicio ilustrando três situações reais, pois afinal elas me inspiraram a chegar até aqui. Percebam que estou tentando persuadi-los(as) com uma abordagem não academicista. Acompanhem.
A primeira situação que descrevo ocorreu pouco antes de começar a redigir este artigo (antes de tudo), ao ler uma apelação à qual eu deveria contrarrazoar. Nas razões do recurso, utilizou-se o princípio da dignidade humana como fundamento para o pedido de danos morais relativos ao atraso na entrega de um imóvel, cujos metros quadrados são uns dos mais caros da cidade em que é situado.
O outro exemplo pode explicar o fenômeno que observei nessa apelação. Certa vez alguém, ao exercer o magistério superior, disse em tom jocoso aos seus alunos que quando o direito do cliente fosse muito “difícil”, que na fundamentação deveria ser utilizado o princípio da dignidade da pessoa humana.
Por fim, acabo de apresentar-lhes a última e transbordante gota d'água que motivou a escrita deste artigo. Peço desculpas aos leitores(as) acostumados(as) à preciosa linguagem jurídica.
Brincadeiras à parte, não posso deixar de comentar, como recorrentemente faço quando falo sobre esse tema, que uma das notas de rodapé mais curiosas que já li está no livro “Dignity: Its History and Meaning” (“Dignidade: História e Significado”), do autor estadunidense Michael Rosen[1]. Ao tratar dos usos mais variados da dignidade humana no discurso jurídico, Rosen cita ironicamente o famoso caso (no Brasil, e aí está a peculiaridade da nota) de Geisy Arruda, tristemente humilhada por colegas de faculdade porque trajava um vestido cor-de-rosa justo.
A partir dos exemplos que citei e das experiências que relatei, seria possível concluir que muitos pensam que a dignidade humana é a panaceia para todas as violações de direitos.
Ledo engano. E é precisamente sobre isso que pretendo discorrer.
Antes de tudo, não quero dizer que a dignidade humana é um conceito inútil, como acusa-se ter afirmado Ruth Macklin no célebre, porém controverso, “Dignity is a useless concept”[2] (“Dignidade é um conceito inútil” – na ética médica), com o qual eu concordo em grande parte, pois compreendo a peculiaridade do contexto tratado pela autora.
Apenas ouso dizer que nós, operadores (ou operários?) do direito, ao aplicarmos o princípio sem critérios mínimos, acabamos provocando a invenção de novos significados e, a fim de manter alguma coerência nisso, acabamos aceitando todos os significados colocados sob alguma justificativa singela, desprendida de investigação mais séria.
Não por acaso, o Supremo Tribunal Federal tem como posicionamento não aceitar a mera invocação da dignidade humana, embora seja um princípio constitucional expresso, como critério suficiente ao reconhecimento da repercussão geral, no caso dos recursos extraordinários. Em suma, é necessária uma fundamentação constitucional própria[3]. É preciso, afinal, citar uma norma constitucional.
Eis o ponto de encontro entre o título que propus e o texto que o inspira, de Katharina Sobota[4]. Em síntese muito apertada, a autora conclui que existe uma retórica própria dos textos jurídicos, em especial as decisões, consistente em omitir premissas maiores, e aponta que esse procedimento resulta na (ou é produto da) ilusão de que há um sistema normativo coerente e uma aplicação silogística da norma. Trata-se, portanto, de uma crítica à tentativa falha de esconder as inconsistências do sistema jurídico.
Por outro lado, entender que a fundamentação de uma decisão não é sempre verdadeiramente jurídica e que, portanto, não interessaria de qualquer modo buscar a fundamentação correta, é postura de um certo ceticismo há muito superado.[5]
A ciência jurídica é necessária, e a consequência disso é a imperatividade de se tratar mais seriamente o princípio da dignidade humana.
Em tempo, a dignidade humana, que teve seu renascimento no triste cenário pós-Segunda Guerra[6], quando ganhou espaço nos textos constitucionais, tomou sentidos diversos no interior de cada ordenamento jurídico[7], e até mesmo divergentes dentro de um mesmo ordenamento, como ocorre também no Brasil.[8]
Uma das conclusões a que se chegou acerca da multiplicidade de sentidos empregados sobre a dignidade humana é de que se trata de uma noção flexível preenchida por valores e posicionamentos políticos e culturais variáveis[9]. A observação desse fenômeno, o que é de grande valia, contudo, não pode ser completamente passiva.
Uma possível solução para a dificuldade da aplicação da dignidade humana na prática seria a adoção da postura minimalista judicial, pela qual o Poder Judiciário não iria além do necessário para a resolução do caso que lhe é apresentado, seja sob o ângulo da extensão daquilo sobre o que se pronuncia, seja sob a perspectiva da profundidade das razões empregadas. Vale dizer que a crítica a essa perspectiva é feita por quem entende que direito e moral são campos distintos, contudo não independentes, como Ronald Dworkin, segundo explica Daniel Sarmento em uma das obras mais didáticas sobre o assunto no Brasil[10]
Essa questão, contudo, envolve o tema da legitimidade dos atores jurídicos, pois se o Parlamento é convocado para dissolver os clamores sociais em um texto normativo, por que o Judiciário não raramente é provocado pela mesma razão? Esse é um dos maiores problemas da teoria do direito, mas deixo a proposta de reflexão.
Retornando à dignidade humana, outra solução, ainda em desenvolvimento, seria contemplar sempre um diálogo entre a dignidade humana, a igualdade e a liberdade, a fim de evitar posturas paternalistas e moralistas quando da aplicação da primeira[11]. Nesse sentido, para alguns autores[12], por vezes a dignidade humana é instrumento de interpretações restritivas da liberdade individual, como por exemplo nos casos extremos de Janaína[13] (justiça comum) e de Glória Treviño (STF)[14].
Disso tudo se conclui que tratar do princípio da dignidade humana requer não somente entender as suas origens filosóficas e evolução no contexto jurídico, mas também compreender a complexidade da atividade hermenêutica.[15]
Até que eu mesma tenha cumprido a tarefa, proponho apenas que tenhamos o máximo cuidado ao mencionar a dignidade humana nas nossas petições, decisões ou pareceres de cada dia, sob consequência de contribuirmos para o congestionamento semântico e o esvaziamento retórico de um princípio constitucional da maior relevância.