A BUSCA E APREENSÃO EM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E UMA DECISÃO EXTRA PETITA
Rogério Tadeu Romano
I - REsp 1779751
Segundo o site do STJ, em 27 de agosto do corrente ano, para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), há julgamento extra petita (fora do pedido) na hipótese em que, acolhido o pedido de busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, o juiz, sem requerimento expresso do autor da ação, extingue o contrato firmado entre ele e o devedor.
Com base nesse entendimento, o colegiado deu provimento a recurso especial do banco credor para, por unanimidade, afastar a extinção do contrato de alienação fiduciária em garantia, mantendo apenas a decisão judicial de procedência do pedido de busca a apreensão do carro objeto do contrato.
A rescisão contratual foi declarada pelo juiz de primeiro grau no âmbito de ação de busca e apreensão ajuizada pela instituição financeira em razão da falta de pagamento do financiamento. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios confirmou a sentença.
No recurso ao STJ, o banco alegou que a rescisão do contrato o impediria de ajuizar outra ação para eventualmente receber algum débito remanescente.
II – A EXTINÇÃO DA PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA E DA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
A alienação fiduciária em garantia não é negócio fiduciário; suas estruturas são diversas substancialmente. A propriedade fiduciária decorrente da alienação fiduciária em garantia não se confunde com a propriedade que se transferiu ou se prometeu transferir através do negócio fiduciário propriamente dito.
O artigo 66 da Lei nº 4.728, em seu parágrafo primeiro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-lei nº 911/69, estabelece, de forma taxativa, que o contrato de alienação fiduciária em garantia conterá, além de outros elementos, os seguintes:
a) O total da dívida ou sua estimativa;
b) O local e a data do pagamento;
c) A taxa de juros, as comissões cuja cobrança for permitida e, eventualmente, a cláusula penal e a estipulação de correção monetária, com indicação dos índices a aplicáveis;
d) A descrição do bem objeto da alienação fiduciária e os elementos indispensáveis a sua identificação.
É ilícito o pacto comissório, estipulado ab initio ou ex intervalo, em qualquer das modalidades em que pode surgir, ou seja, o que, antes do vencimento da dívida, autoriza o credor a tornar-se proprietário pleno da coisa:
a) Pelo valor do débito;
b) Por preço ajustado; ou
c) Pelo valor que o credor estimar.
A alienação fiduciária em garantia não é negócio fiduciário; suas estruturas são diversas substancialmente. A propriedade fiduciária decorrente da alienação fiduciária em garantia não se confunde com a propriedade que se transferiu ou se prometeu transferir através do negócio fiduciário propriamente dito.
Fala-se na propriedade fiduciária.
A propriedade fiduciária, como as demais garantias reais, não é indivisível por natureza, mas, sim, por força da lei, para assegurar o cumprimento das obrigações.
A propriedade fiduciária, pendente o vencimento da dívida, significa para o devedor, seu direito expectativo à recuperação da propriedade. Nâo existe para o alienante apenas uma expectativa de direito. O alienante não é um proprietário sob condição suspensiva.
Disse o ministro Moreira Alves (Da alienação fiduciária em garantia, pág. 133/135): "É esta propriedade fiduciária uma nova garantia real que se não confunde com a propriedade que, através do negócio fiduciário, se transmite ao credor com escopo de garantia (e que os autores, em geral, também denominam propriedade fiduciária), nem com qualquer dos direitos reais limitados de garantia (penhor, anticrese ou hipoteca)".
Afirmou o ministro Moreira Alves (obra citada, pág. 39), ao contrário do que dissera Bulhões Pedreira, que a alienação fiduciária em garantia não se modelou pelo trust receipt, mas apresentou mais pontos de contato com outro instituto jurídico anglo-saxônico, o chattel mortgage, opinião que foi acolhida pelos Tribunais de Ohio e Illinois.
O chattel mortgage (hipoteca mobiliária) se prende, no fundo, ao penhor de propriedade conhecido no antigo direito dos povos germânicos, atentando-se que direito medieval inglês somente conheceu o penhor de coisas móveis, em que ao credor se transferia apenas a posse, mas, foi, no moderno direito anglo-saxônico que se desenvolveu essa espécie de garantia mobiliária.
A alienação fiduciária de coisas móveis entrou no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei 4.728/1965, como a primeira modalidade deste instituto, tendo como função a garantia do cumprimento das obrigações, por meio da transferência resolúvel da propriedade de um bem do devedor para o credor.
No Brasil, a partir da formalização da alienação fiduciária, independente da tradição da coisa móvel, há a transferência de propriedade do bem para o credor, como garantia real ao pagamento prometido pelo devedor: O contrato de alienação fiduciária é instrumento para constituição da propriedade fiduciária, modalidade de garantia real. A eficácia real decorrente do contrato torna-se palpável, porque a propriedade é transferida sem a entrega da coisa.
A alienação fiduciária, que tem raízes nos negócios fiduciários, cuja formulação moderna deve-se a Regelsberger, em 1890, é tão somente, o contrato que serve de título à constituição da propriedade fiduciária, que é a garantia real.
Enquanto não vence o débito, o proprietário fiduciário não desfruta de todas as faculdades jurídicas que se contém na propriedade plena, porque seria da natureza da propriedade fiduciária o desdobramento da posse, ficando o devedor como possuidor direto, podendo usar, desfrutar do bem. Se paga a dívida, o alienante (devedor) volta a ser titular, não da propriedade restrita que cabia ao adquirente (credor), mas do domínio pleno. Se vencida a dívida, e não paga, o credor entra na posse plena e tem o ônus de vender o bem. À luz da doutrina alemã, com Pagenstecher, “Lehrbuch der Pandekten”, costuma-se chamar este fenômeno jurídico de elasticidade da propriedade. Até o pagamento do débito, possui o alienante (devedor), ainda chamado de fiduciante, um direito expectativo à recuperação da propriedade passada ao credor (fiduciário) com a alienação fiduciária.
Há o que chamamos de “elasticidade da propriedade”, fenômeno jurídico que ocorre na ocorrência das hipóteses acima citadas. Surge um direito expectativo para o credor.
Posteriormente, o Decreto-Lei 911/1969 trouxe mecanismos processuais que permitiram a rápida obtenção do bem pelo credor, no caso da inadimplência do devedor, por meio da utilização da ação de busca e apreensão.
Hoje, além da legislação especial (Lei 4.728/1965 e Decreto-Lei 911/1969), a alienação fiduciária também é regulada pelos artigos 1.361 até 1.368 do Código Civil. Depois do ano de 2004, com a inclusão do artigo 1.368-A no Código Civil pela Lei 10.931/2004, o instituto da alienação fiduciária contempla tanto bens fungíveis, quanto bens infungíveis.
A Lei 10.931/2004 incluiu o artigo 66-B na Lei 4.728/1965, e consequentemente revogou os artigos 66 e 66-A desta mesma legislação. Nesta oportunidade, também ficou prevista na Lei 4.728/1965 a possibilidade de utilização da alienação fiduciária para coisas móveis fungíveis e infungíveis.
A matéria hoje está disciplinada pela Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014, que, em muito facilitou a busca e apreensão e a reintegração de posse, através de medidas nitidamente satisfativas, em caso de inadimplência para veículos financiados ou arrendados.
Com uma parcela em atraso o credor fiduciário poderá tomar providências de caráter executivo para reaver a posse do bem financiado.
O artigo 2º da Lei 13.043/14 disciplina:
“No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiros ,independentemente (g.n) de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato.
O credor possuía a seu favor: a busca e apreensão, a ação de depósito, a ação possessória. Sabe-se que, dentro da legislação da alienação fiduciária em garantia, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a prisão civil de depositário infiel (Súmula Vinculante 25). A ação de depósito perdeu seu caráter especial, passando a ser por rito ordinário. Mas se permite, via tutela imediata de evidência a prova do inadimplemento. Estabelece o art. 311, III, do Novo CPC que a tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito. Nestes casos, será decretada, liminarmente, a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa.
Consoante o artigo 2º, § 2º, da lei referenciada, assim que constatar o atraso no pagamento, a financeira, o credor no arrendamento mercantil ou o banco poderá enviar uma carta registrada com um aviso de recebimento, informando o débito e o pedido de retomada, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário. A assinatura poderá ser de qualquer pessoa da casa ou até do porteiro, por exemplo. Há, nesse ponto, uma nítida inconstitucionalidade, em afronta ao devido processo legal, uma vez que afronta-se ao direito de defesa.
A busca e apreensão aqui apresentada tem um nítido caráter executivo, não cautelar.
No passado, falava-se em ação executiva (títulos extrajudiciais) e ação executória (título judicial). Lembre-se que o Código de Processo Civil de 1939 manteve no processo a tradição de duas espécies de execução: a execução da sentença e a ação executiva para títulos executivos extrajudiciais. Essa situação foi objeto de alteração quando do Código de Processo Civil de 1973, quando se falou em execução forçada.
Ensinaram Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Restiffe (Garantia Fiduciária, 2000, pág. 507) que: “Por via de sentença que julga procedente a ação de busca e apreensão reúnem-se na pessoa do credor os direitos deste (posse indireta e domínio provisório) e os do alienante (posse direta). Nesta fase subsiste ainda o resíduo da natureza fiduciária da propriedade. A consolidação destina-se exclusivamente a propiciar ao credor condições de fato e de titularidade de direito para proceder à disposição da coisa através da venda de caráter satisfativo, em segurança do terceiro adquirente, que é alheio à relação fiduciária interna existente entre credor e devedor”.
Fala-se aqui na extinção dessa garantia real nos contratos de alienação fiduciária em garantia.
Dir-se-ia que ela ocorreria nas seguintes hipóteses:
a) Quando perde as qualidades essenciais, ou o valor econômico;
b) Quando se confunde com outro, de modo que se não possa distinguir;
c) Quando fica em lugar de onde não pode ser retirado.
A renúncia e a cessação do escopo de garantia em virtude de adjudicação, da remissão, da adjudicação (em caso de venda judicial), ou da venda extrajudicial), que é sempre admissível
Para que se extinga a propriedade fiduciária, não basta a ocorrência de uma das hipóteses indicadas. É preciso, ainda, que haja o cancelamento da transcrição. A necessidade de cancelamento decorre da circunstância de ser essa transmissão, ato constitutivo do direito real que é a propriedade fiduciária.
Surgida a propriedade fiduciária, o que importa é saber quando ela se extingue, pois, extinta, extinto estará o título que visa a sua constituição.
III – A AÇÃO EXECUTIVA
Mas, pode ocorrer que, em havendo a busca e apreensão, ainda reste um valor a ser pago.
Em vista da hipótese de a propriedade fiduciária se extinguir, persistindo, porém, o crédito que ela garanta, poderá o credor, apesar das circunstâncias, valer-se da execução por título executivo extrajudicial?
Ainda para o ministro Moreira Alves (obra citada, terceira edição, pág. 257) a resposta é afirmativa. Disse ele:
“Com efeito, embora a interpretação literal do artigo 5º, do Decreto-lei nº 911, possa conduzir a negativa, pois usa ele das palavras se o credor preferir, o que dá a impressão de que a execução por título extrajudicial só é cabível se o autor puder utilizar-se das ações de busca e apreensão e depósito para fazer valer a garantia representada pela propriedade fiduciária (que, portanto, deve existir, quando da propositura daquela ação), a interpretação lógica afasta, essa inteligência, uma vez que o objetivo do artigo é propiciar ao credor a melhor e mais ampla defesa possível, o de que ele necessita, mais intensamente, quando se deteriora ou parece.”
Ainda assim entendem Oswaldo e Silvia Optiz (Alienação fiduciária em garantia, pág. 92), para quem há interesse para o credor em usar a ação executiva.
O contrato nasce do crédito que tem valor de título executivo, e não o contrato de alienação fiduciária; e, assim sendo, não se lhes pode retirar esse valor - embora lhe advenha da constituição da garantia – sem que haja texto expresso que o condicione à permanência da propriedade fiduciária.
No caso da execução contra o fiduciante, como afirmou Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de direito civil, volume IV, 1974, pág. 373), no caso de execução contra o fiduciante poderá o credor fazer que a penhora incida em qualquer bem do devedor.
A extinção da obrigação, porque, sendo a propriedade fiduciária direito acessório, segue a sorte do principal. Com a extinção da obrigação cessa a garantia e a propriedade plena da coisa se resolve em favor do alienante.
O contrato que serve de título ao negócio fiduciário nos termos da Lei nº 9.514/1997, poderá ser extinto, com o seu integral cumprimento (extinção normal), pela retomada do bem pelo credor ou pela entrega do bem em pagamento da dívida (extinção anormal).
IV - REsp 1.462.210
Volto-me ao julgamento do STJ acima citado.
Segundo o relator, ministro Villas Bôas Cueva, ao julgar procedente o pedido de busca e apreensão, o magistrado permite que o credor se utilize dos meios legais para obter os valores a que faz jus em razão do contrato, conforme o artigo 2º, parágrafo 3º, do Decreto-Lei 911/1969.
Para o ministro, a reversão da propriedade plena (consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário) constitui apenas uma etapa da execução do contrato, não pondo fim a ele. "O contrato de alienação fiduciária em garantia de bem móvel não se extingue somente por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário", observou.
O relator lembrou situação análoga decidida anteriormente pela Terceira Turma (REsp 1.462.210), na qual ficou decidido que, em caso de alienação fiduciária de imóveis regida pela Lei 9.514/1997, o contrato não se extingue por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, mas sim pela alienação em leilão público do bem objeto da alienação, após a lavratura do auto de arrematação.
"Dessa forma, sem razão o tribunal local ao concluir que 'havendo o implemento da cláusula resolutiva, com a subsequente execução da garantia, tem-se que o contrato principal, de financiamento, deve ser resolvido'" – afirmou.
Desta forma “o contrato de alienação fiduciária em garantia de bem móvel não se extingue somente por força da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário.”
Esse contrato persiste em relação aos valores mutuados restantes não pagos.
V – DECISÃO EXTRA PETITA
Se o credor não pede essa extinção e o juiz considera, mesmo na hipótese de valores residuais a pagar, há a ocorrência de uma decisão extra petita.
Como ensinou Arruda Alvim (Manual de direito processual civil, volume II, 7ª edição, pág. 657) a sentença será extra petita quando se pronunciar sobre o que não tenha sido objeto do pedido. Haverá, pois, infração clara ao princípio dispositivo, consagrado como princípio medular do sistema processual.
A decisão extra petita poderá consistir num pronunciamento excedente sobre o tipo de ação (pedido imediato), como, ainda, será também extra petita, conquanto atendido o pedido, tal ocorra por outra causa petendi, isso porque embora esta não se identifique com o pedido, o identifica.
Trata-se de nulidade processual que deve ser declarada de oficio. Sendo assim, caberá ao tribunal expurgar a parte indevida da sentença que não foi objeto do pedido da parte autora, considerando-a nula.
Mas é mister distinguir a sentença ultra petita da extra petita.
Será ultra petita quando a sentença for além do pedido formulado, concedendo ou deixando de conceder expressamente mais do que tenha sido pedido. Já a sentença extra petita constitui-se em julgar coisa diversa do que fora pedida.
Em nome do princípio do aproveitamento ou da conservação, a sentença ultra petita deve ser cancelada apenas no que exceda o pedido (RePro 4/406, em. 193; RJTJSP 49/129 e ainda RT 592/219).
Seja a sentença extra petita, como a ultra petita, assim como a infra petita ou citra (que não aprecia todos os pedidos formulados pelo autor na demanda), tal é fenômeno que diz respeito a parte decisória da decisão judicial, pois que consiste em infração ao princípio da congruência do decisum com o pedido. Ele não diz respeito à parte argumentativa da fundamentação da sentença.