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O CARIMBADOR E O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Agenda 09/09/2020 às 20:48

Breve análise sobre o princípio da eficiência e a intrigante experiência pública de validação de notas fiscais de serviços no serviço público municipal.

Sempre é ideal dimensionar os fenômenos jurídicos em contraste com a realidade que nos cerca. Refletindo acerca do princípio da eficiência, que rege a Administração Pública, aquele mesmo do art. 37 da Constituição, lembrei-me de uma circunstância inusitada e comum a muitos municípios brasileiros: a do servidor carimbador de notas fiscais.

Longe de querer fazer anedota da situação historicamente vivenciada e muito menos impor um olhar pessoalizado para a questão, afinal é sempre mais fácil olhar para trás de modo mais crítico, gostaria de apenas contextualizar essa situação peculiar com a problemática da eficiência no serviço público, tantas vezes questionada e mal comparada com a iniciativa privada, considerando o propósito simples e objetivo de aprimoramento do serviço público. Com isso gostaria de incitar o leitor a imaginar o cenário.

Muitos devem se recordar da antiga validação de blocos de notas fiscais de prestação de serviços e de como servidores ficavam envencilhados a eles, pondo-se a bater carimbos freneticamente. Muitas vezes ficavam perfilados para o carimbaço emitindo sons que pareciam uma escola de samba mal ensaiada em um “pim-bum” “ri-pim-bum” de muita energia desperdiçada para um mau pagode. Era interessante notar não só a velocidade e habilidade que desenvolviam entre as batidas sequenciadas na almofada, para umidecer os carimbos, e depois nos documentos, mas também o volume de notas fiscais que carimbavam individualmente como registro de “prefeitura municipal”.

Antes mesmo de ingressar no serviço público meditava que estes servidores recebiam dos cofres públicos para dedicar-se quase que integralmente para validar impressão de blocos convencionais de nota fiscal, recebê-los das gráficas para conferir com o modelo padrão adotado pelo Município e, por fim, carimbar, uma a uma, as notas fiscais e, só assim, autorizar sua emissão pelo prestador de serviços. Isso tudo me parecia demasiadamente sem sentido.

É que na ânsia de receber o imposto de serviços mensalmente e controlar as emissões de notas fiscais, os municípios se envolveram em um problema de gestão, tornando a si mesmos irrazoavelmente ineficientes. Por quais razões haver-se-ia de carimbar cada nota fiscal? Pensem. Se um bloco desses tivesse cem notas fiscais e suas correspondentes vias e, se incontáveis empresas ainda emitiam notas fiscais em papel para ser redigido manualmente no momento da prestação dos serviços, isso bem antes da adoção de notas fiscais de serviço eletrônicas, por quanto tempo tinham que se dedicar? Nem cogito o fato das empresas estarem a esperar seus blocos ficarem prontos.

A alegação frequente é que com isso evitariam a falsificação de notas fiscais. No entanto, não raras vezes se ouvia falar que o próprio carimbo era falsificado quando a chancela era negada pelo órgão fazendário. As vezes era dificílimo diferenciar o original do falsificado. Recorde-se que a negativa era usada como método de cobrança do imposto atrasado em preferência a execução fiscal.

Por anos a fio, servidores de nível médio ou superior, entendam o drama, eram escalados para carimbar notas fiscais para conferirem a elas autenticidade. Muitos se dedicavam a esse serviço maior parte do tempo, pois a outra parte era gasta em atendimentos de autorizações de novos blocos, recebimento e devoluções deles. Será que não era possível validar por simples conferência do modelo padrão e registro, ainda que manual, destes blocos, cujas gráficas já estavam previamente credenciadas a imprimir?

O problema da eficiência no setor público não é, por essa razão, apenas uma questão semântica, ainda que a palavra “eficiência” possa, muitas vezes, ser compreendida de forma vazia e sem um significado útil. Má compreensão da eficiência? Pode ser o que estava acontecendo na mente dos gestores e dos servidores envolvidos com esse trabalho naquele momento.

Comentando o ingresso do princípio da eficiência em nosso ordenamento, fruto da Emenda Constitucional nº 19/1998, a qual teria a alcunha de “qualidade do serviço prestado”, Carvalho Filho diz que é um termo muito impreciso mesmo (2019). Pois, o que seria essa tal “eficiência”? Qual seria a atividade eficiente ou não? Mas o autor sedimenta a seguinte ideia:

Significa que a Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje adotados para obter a qualidade total da execução das atividades a seu cargo, criando, inclusive, novo organograma em que se destaquem as funções gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las. (2019, n.p).

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Ao ler esta pequena parte de sua obra passo a considerar detalhamentos importantes no fato narrado e o porquê gestores e servidores públicos precisam ser analíticos das atividades públicas que realizam no dia a dia. Até um carimbo pode se tornar irrelevante para o fim público de eficiência, quando não seja ele próprio um problema de ineficiência.

Com uma mesma entonação, Meirelles nos informa:

O princípio deve ser entendido e aplicado no sentido de que a atividade administrativa (causa) deve buscar e produzir um resultado (efeito) razoável em face do atendimento do interesse público visado. Por isso, o princípio da eficiência decorre do dever de eficiência [...] (2016, p. 105).

Em outra linha Di Pietro diz que o princípio teria dois aspectos, o primeiro ligado a como acontece a atuação do agente público na busca por um melhor desempenho possível e os melhores resultados, o segundo afeto ao “modo de organizar” a própria Administração Pública, tudo com o mesmo objetivo. Nos parece, no entanto, que esse segundo aspecto se relaciona em como os gestores devem constantemente refletir em como organizam o serviço e os servidores públicos (2019). Vê-se, portanto, a necessidade do gestor público (principalmente ocupante dos postos de comando) de conferir um propósito a cada atividade de rotina administrativa como uma tônica para o serviço eficiente.

O que se compreende a contento é que, como bem leciona Mello, citando Juarez Freitas, o que o princípio da eficiência está a dizer é que “a norma só quer a solução excelente”. Por isso em sua obra Mello o denomina como “princípio da boa administração”, apreendido do Direito Italiano (2008, pp. 122-123). É uma obviedade desejar que a Administração dê a melhor solução possível para os problemas do serviço público.

Certamente esses servidores cumpriam bem o seu dever em carimbar com velocidade invejável cada nota do bloco, e pensavam estar cumprindo a obrigação de modo satisfatório. Sem saber, contudo,  falhavam. Faziam isso por cumprirem cegamente a ordem administrativa que lhes havia sido dada, fruto de uma norma interna expedida sem uma boa reflexão sobre os reais propósitos e frutos a serem colhidos das ações administrativas. Se era economia o esperado, os gestores erravam porque os servidores custavam caro. Se era dever fiscal, erravam porque os prestadores simplesmente poderiam trabalhar sem emitir notas a aguardar indefinidamente por seu “carimbo”. Como dito alhures, falsificar o carimbo pareceria uma opção válida. O pior, o prestador de serviços bom emissor era penalizado todas as vezes que precisava emitir nota fiscal. Sobre ele recaiam os pesos de uma verificação fiscal burocrática.

Em algum momento se apercebeu do erro. São os custos e benefícios. E o resultado? Custos, benefícios e resultados parecem falas privatistas, porém não se engane, caro leitor. Imagine novamente! Servidores livres para atividades mais relevantes, uma melhor distribuição de atividades entre si e adoção de meios tecnológicos para controle de emissões de documentos fiscais.

A toda evidência, pode ocorrer uma mudança maior. Uma de perspectiva do serviço público, ou seja, aquela de identificação de propósito, o qual o serviço de repetição cega costuma suprimir. É que tornar o “princípio da eficiência” da Administração Pública em um elemento volitivo de mudanças gerenciais que transformem as rotinas administrativas para melhor é uma tarefa inerente do serviço público e exige do gestor o reconhecimento de que esse princípio atua em conjunto com os demais princípios que norteiam a Administração Pública. Enfim, movimenta o serviço para o melhor para a comunidade e para o próprio servidor público.

No entanto, não deve ser esquecido o que Di Pietro propala:

Vale dizer que a eficiência é princípio que se soma aos demais princípios impostos à Administração, não podendo sobrepor-se a nenhum deles, especialmente ao da legalidade, sob pena de sérios riscos à segurança jurídica e ao próprio Estado de Direito (2019, n.p)

Realmente, o enfrentamento dos problemas de ineficiência da Administração Pública não pode implicar em medidas que ofendam a legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade previstos expressamente no art. 37, da Constituição. Há aqui uma conexão inarredável de todos os princípios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos inferir que o princípio da eficiência não pode ser uma simples expressão inerte e sem sentido, mas deve ser um marco de contínua experimentação analítica nas rotinas públicas de modo que as inúmeras atividades tenham propósito e enfoque objetivo de conferir ao serviço público uma melhor qualidade em seus aspectos mais amplos possíveis, o que obriga ao gestor público um constante exame de qualidade das atividades desempenhadas e por parte dos servidores uma participação ativa na apresentação de ideias que melhorem o desempenho da Administração Pública.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal. Planalto.  Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 8 set 2020.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2019.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42º ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26º ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

Sobre o autor
Renato Luiz Barbosa Brandão

Advogado, Procurador Jurídico do Município de Jataí-Goiás, Pós-graduado em Direito e Direito Processual Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí-Goiás, Ex-Professor do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior de Jataí, membro da Comissão Especial de Regularização Fundiária do Município de Jataí.

Informações sobre o texto

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