A discussão sobre a materialidade de incidência do ICMS sobre as operações de transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa (o deslocamento físico sem relevância econômica) é antiga e desafiava a comunidade jurídica, matéria que suscitava contenciosos administrativos e judiciais.
De um lado, tem-se a Lei Complementar n. 87/96, que dispõe sobre o ICMS a nível nacional, que autoriza esta incidência. Esta Lei não elenca estas operações de transferência no seu rol de incidências do ICMS, mas as presume ao dispor sobre o critério temporal da ocorrência do fato gerador do imposto, no seu art. 12, I, in verbis:
“Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I - da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”. (Grifo nosso).
No entanto, este entendimento, lastreado na literalidade da lei, contrastava com o princípio axiológico de qualquer tributo, motivado sempre pela capacidade contributiva nas suas diversas variações.[i] No caso do ICMS, o simples deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, não tem relevância econômica e não se ajusta ao arquétipo do imposto, que incide sobre operações de circulação jurídica ou econômica, formando o ciclo produtivo e de comercialização do produto.
Com base nesta materialidade conceitual de incidência do imposto, o Poder Judiciário se posicionava pela não incidência nestas transferências, e o STJ havia firmado a Súmula 166, com o seguinte teor: “Não constitui fato gerador de ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”
Esta mesma posição foi ratificada por aquela Corte no Recurso Especial representativo de controvérsia, segundo o art. 543-A, do CPC no REsp 1125133/SP, DJe 10/09/2010.
Mesmo diante desta posição firme do Poder Judiciário, as administrações tributárias continuavam a reconhecer a incidência tributária nestas transferências, e os tribunais administrativos confirmavam as exigências via lançamento de ofício, sob a justificativa de que a vinculação da lei não seria afastada pela jurisprudência, ainda que consolidada.
O fato é que esta tributação não causava maiores reações dos contribuintes, de maneira geral, porque na análise global da empresa não se verificava prejuízo, visto que, sob a regência do princípio da não cumulatividade, o mesmo valor do ICMS debitado no estabelecimento de origem gerava crédito no destino, preservando a desejada neutralidade do sistema.
Ao mesmo tempo, tributar estas transferências representava uma solução prática para os fiscos estaduais com relação à técnica de apuração do imposto, com débito e crédito, tanto no estabelecimento remetente, como no destinatário. Havia certos exageros, é claro. Por exemplo, a tributação, por alguns Estados, de operações de transferência de materiais de uso e consumo. Excesso de zelo, talvez.
É neste cenário que veio a decisão do STF, no ARE 1255885, em repercussão geral, tema n. 1099, declarando, definitivamente, a inexistência de materialidade de incidência do ICMS no simples deslocamento físico de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, fixando a seguinte tese:
“Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia.”
A decisão é coerente com a regra matriz de incidência do imposto. Há duas condições básicas para que se configure a materialidade de incidência do ICMS-mercadorias: 1) circulação jurídica (mudança de titularidade) ou econômica [ii] e 2) condição de mercadoria do bem objeto da circulação. De forma resumida e simplista, o ICMS alcança as operações de comercialização. Certamente, toda esta discussão não se formaria, não fosse a inadvertida referência feita pela LC 87/96 a estas transferências, ao tratar do momento da ocorrência do fato gerador no artigo já mencionado. Uma atecnia legislativa, certamente.
No entanto, a solução judiciária, embora acertada juridicamente, irá causar reflexos um tanto perturbadores no plano operacional, relacionado ao novo tratamento tributário nestas transferências, que, provavelmente, exigirá uma solução conjunta dos Estados e do Distrito Federal para disciplinar este novo cenário tributário.
Pelo regime anterior, em que era tributada a transferência interestadual, o estabelecimento do Estado remetente registrava o débito do ICMS pela saída, gerando crédito no estabelecimento destinatário, fechando o ciclo com a venda da
mercadoria. Não havia desencontros com relação ao débito e crédito do imposto nos estabelecimentos envolvidos.
A não tributação desta transferência resulta na ausência de débito no estabelecimento remetente, o qual já registrou o respectivo crédito pela entrada da mercadoria, causando um prejuízo ao Estado remetente, que suportará um crédito sem débito. Certamente, o Estado de origem exigirá o estorno do crédito,[iii] o que afrontará o princípio da não cumulatividade, se analisado o fato no âmbito do contribuinte e não do estabelecimento de forma isolado.
O desajuste operacional também ocorrerá no estabelecimento destinatário. Ora, não sendo tributada a transferência, o destinatário não terá direito ao crédito do imposto [iv], de modo que este suportará um débito sem crédito correspondente, situação desalinhada com o princípio da não cumulatividade, tomando como ponto de observação o contribuinte como um todo. Tal situação atípica representaria uma vantagem para o Estado de destino, em desfavor do contribuinte.
Paradoxalmente, a indevida tributação praticada antes da decisão em foco, representava uma solução relacionada à apuração do imposto envolvendo as operações de transferência entre estabelecimentos da mesma empresa, cumprindo fielmente o princípio da não cumulatividade, e sem causar prejuízos ao contribuinte de maneira geral. A convivência com esta tributação indevida era, de certa forma, pacífica, pois não representava desvantagens econômicas no âmbito da empresa de forma global.
A decisão judicial reproduzida na mencionada tese desconstruiu esta forma de tratamento tributário nas transferências, reclamando das administrações tributárias de cada Estado uma resposta normativa para as acomodações operacionais ajustadas à nova ordem judicial.
Um ponto é indiscutível: a nova orientação judicial deve ser assimilada e cumprida sem embaraços na aplicação concreta da não cumulatividade do imposto no contexto geral. A solução pode ser produzida por cada Estado individualmente, promovendo os ajustes normativos necessários para equacionar a forma de apuração do imposto, sem prejuízo para os contribuintes e para os Estados envolvidos. Se é legítimo que o Estado de origem exija o estorno do crédito referente à mercadoria transferida sem débito, caberá, no entanto, ao Estado de destino, reconhecer este crédito, mesmo sem destaque do imposto no documento fiscal, lembrando que a Constituição Federal permite esta ressalva legislativa para o reconhecimento de crédito decorrente de operação anterior não tributada (art. 155, § 2º, II, “a”).
Um segundo plano de ação, mais recomendado, seria a realização de um ajuste interestadual para uniformizar a nova sistemática de apuração do imposto, envolvendo as transferências interestaduais, agora sem tributação, visando a uma uniformização e maior simplicidade do sistema, com reflexos na indispensável segurança jurídica dos contribuintes, princípio tão caro em nosso complexo sistema tributário nacional.
Por fim, não havendo uma regulamentação do fisco, há de se considerar a hipótese de os contribuintes, que assim desejarem, continuarem tributando as operações interestaduais, na forma como operavam antes da decisão judicial, postura que não deverá suscitar qualquer questionamento do Estado remetente, tampouco pelo Estado destinatário, porquanto no geral, considerando a empresa de forma global, com todos os seus estabelecimentos, ocorrerá a compensação do imposto em perfeita consonância com o princípio da não cumulatividade, que não poderá ser violado sob nenhuma circunstância, muito menos em razão de dificuldades operacionais.
Evidentemente, esta opção somente será possível diante da anuência, ainda que tácita, dos Estados evolvidos. Concluindo, a decisão acabou por criar um novo problema, tanto para os Estados, como para os contribuintes, para o qual haverá de se buscar uma solução.
Notas
[i] A capacidade contributiva tem sua fundamentação jurídica no art. 145, § 1º, da CF/88, segundo o qual, “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
[ii] Há situações em que o fato gerador do ICMS ocorre sem mudança de titularidade, como é o caso de uma empresa de transformação em seus diversos estabelecimentos, com entrada de matéria-prima e saída de produto industrializado, tudo numa mesma empresa, mas com diversas etapas de transformação, envolvendo diversos unidades (estabelecimentos).
[iii] Art. 155, § 2º, II, “b”, da CF/88: “ II - A isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação: b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;”
[iv] Art. 155, § 2º, II, “a”, CF/88: “ II - a isenção ou não incidência, salvo determinação contrária da legislação: a) não implica crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes;”