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Resenha do filme Crimes de família

Agenda 25/09/2020 às 19:41

Resenha do filme argentino Crimes de Família (2020)

O filme Crimes de Família (Crímenes de Familia, no original em espanhol) é uma produção do cinema argentino, lançado em agosto de 2020, e que já está fazendo muito sucesso nos países latinoamericanos, inclusive no Brasil, e em outras partes do planeta.

Disponível na Netflix e no CineAr (plataforma online de cinema argentino), Crimes de Família é baseado em histórias reais, e traz à tona diversas questões interessantes para o mundo jurídico, como o acesso substancial à justiça, a corrupção, a situação laboral das empregadas domésticas, e o próprio sistema processual penal argentino, entre outros temas, que poderiam embasar bons estudos de direito comparado.

Sebastián Schindel, diretor, roteirista e produtor do filme, havia já recebido grande reconhecimento por seus trabalhos anteriores, principalmente pelos filmes El patrón (“O patrão”, em tradução livre) e El hijo (“O filho”), razão pela qual atraiu a atenção da Organização Internacional do Trabalho e da ONU Mulheres, que patrocinaram a produção do longa metragem.

Para criar a trama de Crimes de Família, em 2014 Schindel pediu a alguns amigos advogados que lhe enviassem casos de crimes de violência de gênero, feminicídio e violência no trabalho. Depois de analisar vários casos, selecionou dois deles, retratados no filme, e que não tinham qualquer relação um com o outro, criando na trama alguns personagens e fatos fictícios para unir as histórias, e dar consistência à obra.

Em todo o filme, fica claro que o grande tema é a mulher (até por conta do patrocínio da ONU). E, mesmo sem escancarar ou mencionar o feminismo, certas bandeiras desse movimento ganham espaço, notadamente a violência contra a mulher. Várias faces dessa violência são apresentadas no filme de forma natural na narrativa, sem nenhum tom panfletário. E, de fato, os problemas femininos abordados no filme não são exclusivos da sociedade argentina, o que faz do filme uma obra universal.

A violência contra a mulher é retratada em várias de suas formas: desde  olhares e comentários o corpo da mulher, o divórcio como forma de abandono, a rejeição de de amigas após mudança de status social, a morosidade e ineficiência da proteção judicial às mulheres, chegando a golpes físicos e ao estupro.

Outro ponto chave, e que guia a narrativa, é a maternidade, retratada nas três protagonistas femininas. Os três protagonistas masculinos são o filho mimado de uma família abastada, o pai cansado dos erros do filho e da esposa que o encoberta, e o filho de três anos da empregada doméstica.

Por outro lado, as três mães da trama mostram, cada uma à sua maneira e desde sua posição social e familiar, suas forças e também (porque não?) suas fraquezas. Mas, apesar de tudo, se mantém unidas de certa forma.

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Alicia (interpretada por Cecilia Roth) é uma mulher da classe alta de Buenos Aires, e mãe superprotetora que arrisca tudo, até seu casamento, seu dinheiro e seu prestígio social para defender seu filho, mas que sacrifica mesmo esse amor incondicional em nome da justiça. Marcela (Sofía Castiglione), acusa Daniel (Benjamín Amadeo), seu ex-marido e filho de Alicia, de maus tratos, violência física e psicológica, e estupro. Paralelamente ao julgamento desse caso, Gladys (Yanina Ávila), a empregada doméstica semianalfabeta de Alicia, e que é interpretada por uma ex-empregada doméstica, é julgada por “homicídio agravado pelo vínculo”, revelando ao final um segredo que muda os rumos da narrativa e de nosso julgamento acerca dos personagens.

Para o autor desta resenha, o que mais impressiona, contudo, é a capacidade que a película tem de chocar os conhecedores do direito, mesmo de um direito estrangeiro ao do local da trama.

Aprendemos, desde as primeiras lições de introdução ao estudo do direito que o direito é um mecanismo de controle social, é uma técnica de pacificação e resolução de conflitos, etc. Mas, até que ponto isso é real ou efetivo? Até onde vai o poder do direito de resolver conflitos e criar paz social?

Como demonstrado em Crimes de Família , os sistemas jurídicos (normativos e organizacionais) não são suficientes para “resolver” ou “solucionar” conflitos sociais. E muitas vezes não são capazes de fazer com que esses conflitos sejam sequer conhecidos.

Colocando o problema de outra forma, que norma jurídica abstrata e kelseniana poderia devolver a Alícia a vida confortável que tinha ao início da narrativa? Que juiz seria capaz de sentenciar no sentido de que Gladys possa voltar no tempo e não viver a infância de exploração e a maturidade de limitações econômicas e intelectuais? Poderia o direito “solucionar” os conflitos sofridos por Marcela?

No entanto, Crimes de Família encerra com esperança. Deixa um pouco de esperança em que é possível lutar na justiça. Lutar pela justiça. Abrindo mão de privilégios pessoais. Abrindo mão da própria liberdade. Abrindo mão da intimidade. Não é o direito que, por si, irá resolver os conflitos. O direito não perdoa, o direito não ama, o direito não se sacrifica pelo próximo, o direito não tem empatia, nem luta. Mas essas mulheres sim o fazem, e por isso o filme traz alguma esperança.

Alguns conflitos sim se resolvem. De outros não sabemos, já que o filme acaba antes de ser julgado o recurso de apelação de um dos casos julgados na trama. E também há conflitos com os quais as três mães e seus filhos terão que conviver, talvez para sempre. Ainda assim, sempre há esperança.

 

Sobre o autor
Renan Apolonio

Advogado, formado pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Especialista em Direito Constitucional, em Direito Público e em Direitos Humanos pela Faculdade Legale. Estudando especialização em Política Internacional. Defensor da Liberdade Religiosa, estusiasta do Direito e Literatura, da língua espanhola.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Publicado originalmente no Migalhas: https://www.migalhas.com.br/depeso/333840/resenha-do-filme-crimes-de-familia

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