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Delineamento do dano ambiental:

o mito do dano por ato lícito

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Agenda 01/07/2006 às 00:00

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. MEIO AMBIENTE E RECURSOS AMBIENTAIS: 2.1.MEIO AMBIENTE COMO BEM AUTÔNOMO; 2.2 OS RECURSOS AMBIENTAIS; 2.3 – REGIME JURÍDICO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS AMBIENTAIS - 3. DANO AMBIENTAL EM SENTIDO AMPLO (AO MEIO AMBIENTE) E DANO AOS RECURSOS AMBIENTAIS (SENTIDO ESTRITO) - 4. DANO AMBIENTAL PRIVADO - 5. A QUESTÃO DO DANO AMBIENTAL POR ATO LÍCITO: RESOLUÇÃO PELO PRINCÍPIO DA TOLERABILIDADE: 5.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS; 5.2. PRINCÍPIO DA TOLERABILIDADE; 5.3. PRINCÍPIOS QUE INFLUENCIAM NA INTERPRETAÇÃO DA TOLERABILIDADE: 5.3.1. Princípio da Indisponibilidade do Meio Ambiente; 5.3.2. Princípio do Desenvolvimento Sustentável; 5.3.3. Princípio da Prevenção; 5.3.4. Princípio do Limite; 5.4. O MITO DO DANO AMBIENTAL POR ATO LÍCITO - 6. CONCLUSÃO


RESUMO

Neste trabalho foi enfrentada, com base nos princípios de Direito Ambiental a questão do dano ambiental por ato lícito, visando demonstrar que em verdade, por força da Constituição Federal, não há que se falar em licitude nas ações que venham a romper o equilíbrio do meio ambiente mediante atos danosos.

Para tanto, fez-se a diferenciação do meio ambiente como bem autônomo, dos recursos ambientais, analisando-se separadamente os danos causados a cada um destes elementos autônomos.

Por fim, utilizando-se do princípio da tolerabilidade, dentre outros, defendeu-se a tese de que, uma vez rompido o equilíbrio ambiental, ocorre a ilicitude decorrente diretamente do Texto Constitucional.


1. INTRODUÇÃO

O presente estudo visa traçar considerações e delineamento sobre o dano ambiental, principalmente no que diz respeito à questão do dano por ato lícito.

Para enfrentamento do tema é necessário que se estabeleça com precisão o conceito de meio ambiente e recursos ambientais, dano ambiental em sentido amplo (dano ao meio ambiente), estrito (dano aos recursos ambientais) e dano ambiental privado ou a terceiro (dano em ricochete), traçando-se como linha mestra do raciocínio o princípio da tolerabilidade do meio ambiente, pautado este pelos princípios constitucionais da indisponibilidade, do desenvolvimento sustentável, da precaução/prevenção e princípio do limite.

Com esteio nestes princípios, pretender-se-á sustentar que, em verdade, a questão do dano ambiental por ato lícito ou autorizado é um mito, pois, uma vez extrapolados os limites aqui apontados, necessariamente o ato lesionador do meio ambiente deverá ser considerado ilícito, não gerando controvérsia sobre a indenização do dano.


2. MEIO AMBIENTE E RECURSOS AMBIENTAIS

2.1.MEIO AMBIENTE COMO BEM AUTÔNOMO

A primeira questão a ser enfrentada é o conceito de meio ambiente como bem autônomo, além de deixar-se evidenciado sua diferenciação do conceito de recursos ambientais.

Como em qualquer matéria no ramo do Direito, o ponto inicial para o estudo da questão deve necessariamente ser a Constituição Federal, que em seu art. 225 estabelece, que todos ‘têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida....".

Percebe-se do Texto Maior que o Constituinte erigiu o meio ambiente como bem autônomo eminentemente relacional, pois ao mencionar ser direito de todos tê-lo ecologicamente equilibrado reconheceu a necessidade de interação entre os seus elementos (recursos ambientais, como ar, água, solo, fauna, flora, cultura, trabalho, etc.) de forma a ser mantida a qualidade ambiental como condição da qualidade de vida, objetivando repelir qualquer agressão que proporcione desequilíbrio deste bem.

Também deste artigo retiram-se outras considerações de extrema importância para compreensão do tema, as quais são muito bem apontadas por Fiorillo (2002, p. 103), decorrentes da sistematização constitucional da matéria:

"O dispositivo estabelece quatro concepções fundamentais no âmbito do direito constitucional ambiental, a saber:

a) indica o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos;

b) estabelece a natureza jurídica do bem ambiental como sendo de uso comum do provo e essencial à sadia qualidade de vida, criando, portanto, pela primeira vez em nosso país, um terceiro gênero de bem que não é público e muito menos privado;

c) determina tanto ao Estado (Poder Público) como à sociedade civil (coletividade) o dever, para ambos, de preservar, bem como defender os bens ambientais;

d) assegura não só para quem está vivo nos dias de hoje (presentes gerações) como para aqueles que virão (futuras gerações) a existência real dos bens ambientais em nosso país." (grifos do autor)

Note-se que a Constituição Federal não chegou a definir o que é meio ambiente – a não ser de forma indireta. Mas, em nosso ordenamento jurídico infraconstitucional, já havia esta definição, estabelecida pelo art. 3º da Lei nº 6.938/1981, que foi integralmente recepcionada pela nova ordem, dispondo ser este "o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;".

Extrai-se do artigo citado que a noção legislativa de meio ambiente seguiu a mesma esteira da Constituição Federal e estabeleceu este como bem eminentemente relacional, decorrente da interação de vários elementos existentes (físicos, químicos e biológicos) e das condições, leis, interações e influências destes no abrigo, permissão e regulação da vida em todas as suas formas.

Em uma primeira leitura, chega-se a ter a impressão que a definição legal levou em conta tão-somente o meio ambiente natural, esquecendo-se do meio ambiente cultural, artificial e também do trabalho. Contudo, impõe-se levar em consideração que ao ser estabelecido em lei que o meio ambiente "permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas", é perfeitamente englobável neste conceito as demais facetas de meio ambiente, por serem decorrência das relações humanas, já que o homem é uma das formas de vida existente no planeta.

Ademais, a conjugação da Lei nº 6.938/81 com a Lei nº 7.346/85 e art. 225 da Constituição Federal, levam à conclusão de que o meio ambiente não tem somente o aspecto natural (os bens naturais, como o solo, a atmosfera, a água, a vida), mas também o artificial (espaço urbano construído) e cultural (a interação do homem ao ambiente, como urbanismo, o zoneamento, o paisagismo, os monumentos históricos, o meio ambiente do trabalho, assim como os demais bens e valores artísticos, estéticos, turísticos, paisagísticos, históricos, arqueológicos, etc.) (MAZZILLI, 2001, p. 133).

Infere-se, assim, que foi reconhecido o meio ambiente como bem autônomo, baseado justamente em sua característica relacional e ultrapassando a noção de mera soma dos recursos ambientais, sejam naturais (solo, água, fauna, flora, etc.) ou artificiais (patrimônio histórico, cultural, etc.).

Esclareça-se que ao ser mencionada a questão relacional nestas definições, pretende-se afirmar que ela consiste justamente na característica principal do meio ambiente: a relação entre seus vários elementos (recursos naturais, artificiais, culturais, etc.), buscando-se sempre o equilíbrio (art. 225, da CF: ‘Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado...’), não se confundindo o todo com as partes que o compõem.

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Na busca desta noção do meio ambiente como bem autônomo, é de extrema importância que seja feita a diferenciação entre este e os recursos ambientais. Para isto, optou-se por utilizar a terminologia adotada por Milaré (2001, p. 68) denominando-se os seus componentes (água, solo, fauna, flora, prédio histórico, etc.) como recursos ambientais e não bens ambientais, já que este segundo termo é ambíguo e utilizado na doutrina ora para denominar o meio ambiente como bem autônomo, ora para denominar seus componentes (como fauna, flora, ar, etc.).

Sob nossa ótica, ao adotar-se a terminologia de recursos ambientais não se desconhece que estes, em si mesmos, podem e são bens jurídicos – pois protegidos/tutelados por uma norma jurídica. Mas, visa-se com isto apenas a depuração na linguagem evitando-se a adoção de termo ambíguo, o que deve ser evitado ao máximo em qualquer ciência, não sendo diferente no estudo do Direito.

Na diferenciação entre estes dois conceitos – meio ambiente e recursos ambientais – é esclarecedora a lição de Benjamim (1993, p. 75):

"(...) o meio ambiente, embora como interesse (visto pelo prisma da legitimação para agir) seja uma categoria difusa, como macrobem jurídico é de natureza pública. Como bem – enxergado como verdadeira universitas corporalis – é imaterial, não se confundindo com esta ou aquela coisa material (floresta, rio, mar, sítio histórico, espécie protegida etc.) que o forma, manifestando-se, ao revés, como o complexo de bens agregados que compõem a realidade ambiental (Carlos Dorta). Assim, o meio ambiente é bem, mas bem como entidade que se destaca dos vários bens materiais em que se firma, ganhando proeminência, na sua identificação, muito mais o valor relativo à composição, característica ou utilidade da coisa do que a própria coisa (Paolo Maddalena). Uma definição como esta de meio ambiente, como macrobem, não é incompatível com a constatação de que o complexo ambiental é composto de entidades singulares (as coisas, por exemplo) que, sem si mesmas, também são bens jurídicos: é o rio, a casa de valor histórico, o bosque com apelo paisagístico, o ar respirável, a água potável"

Desta forma, percebe-se com clareza da lição do mestre que o meio ambiente é um macrobem autônomo em relação aos demais recursos ambientais, não se confundindo com estes e possuindo regime jurídico e tutela própria.

Na mesma esteira de entendimento e também com grande propriedade é a lição de Antunes (2002, p. 200), que estabelece ser o meio ambiente um bem jurídico autônomo e unitário, não confundível com os recursos ambientais, não sendo um simples somatório destes. O meio ambiente resulta da supressão de todos os seus componentes e adquire uma particularidade jurídica que é derivada da própria integração ecológica destes elementos.

Portanto, o meio ambiente não é um bem corpóreo; ao contrário é incorpóreo e imaterial (MIRRA, 2002, p. 12), além de indisponível, detendo regime jurídico próprio e autônomo em relação aos recursos ambientais que o compõem.

Neste sentido é a lição de Rui Carvalho Piva, ao sustentar que o bem ambiental (que preferimos denominar meio ambiente) é um valor difuso e imaterial, sendo que a imaterialidade afasta qualquer tipo de bem material da discussão em torno da identificação deste bem (PIVA, 2000, p. 152).

Encerrando-se estas considerações, pode-se adotar como conceito de meio ambiente aquele elaborado por José Afonso da Silva, que, ao nosso ver, é o mais completo e adequado (2002, p. 20): "O meio ambiente é, assim, a integração do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas."

2.2 OS RECURSOS AMBIENTAIS

O legislador pátrio ao tratar sobre ‘recursos ambientais’ no art. 3º, V, da Lei nº 6.938/81 dispôs serem eles "a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora."

Ao invés de definir, o legislador elencou quais são os recursos ambientais, e dentre eles incluiu a ‘atmosfera’ e ‘os elementos da biosfera’. Ora, levando-se em conta que a biosfera é a "zona de transição entre a terra e a atmosfera, no interior da qual as formas de vida da terra são comumente encontradas. Consiste na porção externa da geosfera e na parte mais baixa da atmosfera." (Dicionário de Direito Ambiental, 2003, p. 89) e que a atmosfera é a massa de ar que envolve a terra, é fácil verificar que tudo o que existe entre "o céu e a terra" – usando-se a expressão popular – pode ser considerado recurso ambiental.

E este deve ser mesmo o enfoque, pois, por ser o meio ambiente um macrobem relacional (superando os recursos ambientais em si e relacionando-os de forma equilibrada), tudo o que influencie nesta relação, permitindo, abrigando e regendo a vida em todas as suas formas deve ser considerado como bem ambiental.

Desta forma, devem ser considerados bens ambientais: o prédio de valor histórico ou arquitetônico (meio ambiente artificial); o animal silvestre (meio ambiente natural); o maracatú nordestino ou a capoeira (meio ambiente cultural), dentre inúmeros outros que poderiam aqui ser elencados.

Conforme será desenvolvido no próximo item, os recursos ambientais, dependendo do caso – ao contrário do meio ambiente, que é incorpóreo/imaterial e indisponível – podem ser corpóreos/materiais (árvore, animal silvestre, etc.) ou incorpóreos/imateriais (ecossistema), disponíveis (árvore com autorização de corte) ou indisponíveis (caça de animal silvestre).

Para que não haja dúvida da necessidade de separação entre tais conceitos – meio ambiente e recursos ambientais – observe-se a seguinte lição de Piva (2000, p. 138):

"A separação dos conceitos de bem ambiental e de recursos ambientais, que aqui vamos considerar como sendo todos os demais bens jurídicos, de qualquer natureza, ou seja, privados, públicos, coletivos, materiais e imateriais, capazes de proporcionar equilíbrio ecológico ao meio ambiente, representa uma vigorosa particularidade técnica da aplicação da norma neste particular ramo do direito, que é o Direito Ambiental."

Arriscando um conceito sobre a matéria, pode-se dizer que recursos ambientais são bens jurídicos naturais, artificiais ou culturais, corpóreos ou incorpóreos, que integrem ou tenham qualquer relação, influência ou interação com o meio ambiente.

2.3 – REGIME JURÍDICO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS AMBIENTAIS

Ao tratar sobre meio ambiente na Constituição Federal, o art. 225 dispõe ser este ‘bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida’, além de impor ao ‘Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

Como o constituinte utilizou a expressão ‘bem de uso comum do povo’, prevista no Código Civil de 1916 e replicada no de 2002, impõe-se verificar qual o regime jurídico deste tipo de bem naquele primeiro diploma que estava em vigor à época da promulgação da Carta Magna.

Caio Mário da Silva Pereira (1997, p. 280) ensina que os bens de uso comum do povo são aqueles que embora pertencentes a um ente público, estão franqueados a todos, tais como mares, rios, estradas, ruas, praças, sendo inalienáveis e imprescritíveis. Via de regra, podem ser utilizados de forma franqueada, sem restrições e sem ônus, embora a realização de pagamento não descaracterize esta natureza (p. ex: pedágio cobrado nas estratadas).

Ora, da simples leitura do referido artigo percebe-se que a Constituição quando tratou do meio ambiente atribuiu a titularidade a todos indiscriminadamente e a ninguém particularmente, nem mesmo ao Poder Público e muito menos a qualquer pessoa física ou jurídica de direito privado. Nem mesmo a coletividade deste momento histórico é proprietária deste bem, sendo ela mera detentora em prol das presentes e futuras gerações.

Impõe-se, assim, tomar cautela para não fazer uma interpretação retrospectiva, de forma a interpretar a Constituição com base nos conceitos previstos na legislação anterior, inovando o mínimo possível, conforme adverte Luiz Roberto Barroso (1996, p. 66 e 67) ao mencionar que se deve "rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo (...)"

Portanto, parece-nos que pretender aplicar ao meio ambiente a visão privada do Código Civil, seja o de 1916, seja de 2002, é um equívoco, pois esta não se coaduna com a visão moderna da teoria dos direitos difusos que ganhou força com a Constituição Federal de 1988.

É esta a lição de Fiorillo (2003, p. 49-50):

"Dessa forma, em contraposição ao Estado e aos cidadãos, ao público e ao privado, iniciou-se no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, uma nova categoria de bens: os bens de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida. Esses bens não se confundem com os denominados bens públicos, tampouco com os denominados bens particulares (ou privados).

Sob esse enfoque, surge a Lei Federal n. 8.078, de 1990, que, além de estabelecer nova concepção, vinculada aos direitos das relações de consumo, cria, a partir da orientação estabelecida pela Carta Magna de 1988, a estrutura infraconstitucional que fundamenta a natureza jurídica de um novo bem, que não é público e não é privado: o bem difuso.

Criado no plano mais importante do sistema jurídico, como já aludido, pela Constituição Federal de 1988, o direito difuso passou a ter clara definição legal, com evidente reflexo na própria Carta Magna, configurando nova realidade para o intérprete do direito positivo.

Aludido bem, definido como transindividual, tendo como titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato (art. 81, parágrafo único, I, da Lei n. 8.078/90), pressupõe, sob a ótica normativa, a existência de um bem ‘de natureza indivisível’, ou seja, um bem que ‘não pode ser fracionado por sua natureza, por determinação de lei ou por vontade das partes’, conforme nos ensina a ilustre Profa. Maria Helena Diniz."

Não se pode, desta forma, atribuir ao bem difuso a qualidade de bem público propriamente dito, pois este não está no patrimônio de qualquer ente público, ao contrário, é pertencente à toda coletividade, e não só das presentes, mas também das futuras gerações.

Fiorillo (2003, p. 53) traça como critério diferenciador entre o bem público e o bem difuso a titularidade, sendo que o primeiro tem como titular o Estado (ainda que deva geri-lo em função e em nome da coletividade), ao passo que o de natureza difusa repousa a sua titularidade no próprio povo, tanto que eventuais indenizações decorrentes de lesões a estes bens têm natureza diversa: a indenização do bem público volta-se aos cofres do ente prejudicado; a indenização do bem difuso, ao fundo de defesa dos direitos difusos (Lei n. 7.347/85, art. 13).

Em assim sendo, o primeiro elemento do regime jurídico do meio ambiente é de que o mesmo é um bem difuso, não pertencente nem ao Estado, nem ao particular, mas sim à coletividade, representada pelas presentes e futuras gerações, sendo todos estes detentores de tal bem.

Outro elemento caracterizador deste regime jurídico é o da indisponibilidade, matéria esta que será desenvolvida com maior profundidade mais adiante.

Também característica do meio ambiente é sua insuscetibilidade de apropriação, seja pelo próprio Estado, seja pelos particulares, fato este decorrente diretamente do princípio da indisponibilidade.

Em conclusão, o regime jurídico do meio ambiente como bem autônomo – sem prejuízo de outras características a serem mais exploradas – é o de bem difuso de uso comum do povo, incorpóreo, indisponível e insuscetível de apropriação.

Situação diversa é a que diz respeito do regime jurídico dos recursos ambientais, pois, neste caso, cada um considerado individualmente pode ter um regulamento próprio, não havendo necessariamente um regime jurídico único para todos eles, tendo como único traço comum a impossibilidade de seu uso ser lesivo ao meio ambiente como bem autônomo.

Ocorre que, os recursos ambientais individualmente considerados podem ter regime inclusive de direito privado, como é o caso das árvores que, segundo o Código Civil (art. 79) são consideradas bens móveis e assim que removidas – com o devido licenciamento – podem ser livremente comerciadas.

De igual maneira um prédio histórico ou com valor arquitetônico relevante – ainda não tombado – não perde sua condição de propriedade particular, podendo ser alienado, hipotecado, locado, usado, desde que isto não influencie em sua característica histórica ou arquitetônica.

Ora, é possível afirmar-se que uma árvore, isoladamente, ou um conjunto restrito delas ou ainda o prédio histórico mencionado, é bem de uso comum do povo, indisponível, insuscetível de apropriação, etc.? A resposta é negativa, pois ambos – mesmo considerados como recursos ambientais – têm regime de direito privado com titularidade pertence a uma pessoa – física ou jurídica – particular.

Essencial, assim, a diferenciação entre meio ambiente e recursos naturais, pois somente o primeiro é difuso, de uso comum do povo, indisponível e insuscetível de apropriação, e os demais seguem regime jurídico próprio a ser analisado caso a caso.

Desta maneira, alguns recursos ambientais são plenamente apropriáveis e utilizáveis – desde que esta apropriação não leve à apropriação individual (exclusiva) do meio ambiente – nos termos da lição de Mirra (2002, p. 38):

"Na mesma ordem de idéias, não podem os particulares pretender apropriar-se do meio ambiente como bem imaterial, ou seja, como conjunto de condições, relações e interdependências que condicionam, abrigam e regem a vida. O que pode eventualmente ser apropriado, o que pode eventualmente ser utilizado pelos particulares, sobretudo para fins econômicos, são determinados elementos corpóreos que compõem o meio ambiente e os bens ambientais (como as florestas, os solos, as águas, em certos casos os exemplares da fauna e da flora, determinados bens móveis e imóveis integrantes do patrimônio cultural) e, mesmo assim, como se verá a seguir, de acordo com condicionamentos, limitações e critérios previstos em lei e desde que essa apropriação ou utilização dos bens materiais não leve à apropriação individual (exclusiva) do meio ambiente como bem imaterial."

Nada obsta, portanto, que certo recurso ambiental (p. ex: as árvores existentes fora de áreas de preservação permanente e reserva legal ou o prédio de valor histórico) tenha regime jurídico de direito privado e outros (p. ex: a caça) sejam regidos por regime de direito público.

Desta forma, na "concepção de microbem ambiental, isto é, dos elementos que o compõem (florestas, rios, propriedade de valor paisagístico etc.), o meio ambiente pode ter o regime de sua propriedade variado, ou seja, pública e privada, no que concerne à titulariedade dominial." (LEITE, 2003, p. 85)

Com base nestas assertivas é possível reconhecer que a indisponibilidade existente no meio ambiente não é aplicável imediatamente ao caso dos recursos ambientais, pois a estes pode ser aplicada indisponibilidade total (p. ex: em relação à impossibilidade de apropriação do ar atmosférico ou à vedação à caça, com raras exceções), restrita (p. ex: em relação à pesca que é vedada em alguns períodos nos rios, bem como mediante certos petrechos) e até mesmo nenhuma (p. ex: nos casos de florestas na propriedade fora da área de preservação permanente e reserva legal que pode ser suprimida mediante simples ato administrativo autorizativo, ressalvadas as espécies protegidas).

Não se conclua, contudo, que em decorrência de alguns recursos ambientais deterem esta condição de regime privado, poderá o proprietário utilizar-se do mesmo a seu juízo, de forma irresponsável, pois além de ser imperioso o exercício da função social e ambiental da propriedade, a utilização de tais recursos está limitada à atividade sustentável de forma a não prejudicar o macrobem a que ele faz parte: o meio ambiente.

Nestes casos, como bem adverte Mirra (2002, p. 48), o regime jurídico do meio ambiente adotado no Brasil, além de direcionar-se aos recursos ambientais que pertencem a todos indivisível e indistintamente (p. ex: ar, praias, etc.), incide igualmente sobre todos os elementos corpóreos configuradores do seu substrato material, qualquer que seja a sua titularidade, e em relação a todas as atividades ou práticas que de alguma forma estão relacionadas com o meio ambiente e com os bens ambientais, para orientá-los e condicioná-los – uns e outras – à preservação da qualidade ambiental propícia à vida.

Esclarecendo-se ainda mais, afirma-se com certeza que a limitação de utilização destes recursos ambientais pelos seus titulares – sejam eles entes públicos ou privados – é justamente aquela pautada pela legalidade e pela não influência negativa sobre o meio ambiente. O que permite concluir que é vedada a utilização de recursos ambientais de forma a influenciar negativamente no meio ambiente como macrobem autônomo, por ser este bem difuso, indisponível e insuscetível de apropriação.

Justamente em razão destas limitações que atingem indistintamente a todos os recursos ambientais – de forma a que sua utilização seja racional e não prejudique o bem maior, meio ambiente – a doutrina vem procurando configurar outra categoria de bens – os bens de interesse público – na qual estão inseridos tanto bens pertencentes a entidades públicas quanto particulares. Ficam eles subordinados a um regime jurídico mais rígido em relação à intervenção estatal e de tutela pública, surgindo aí duas categorias, os de circulação controlada e os de uso controlado (SILVA, 2002, p. 83).

É este aspecto que estabelece identidade no regime jurídico dos bens ambientais, qual seja: os mesmos podem ser utilizados por seus titulares – sejam particulares (solo, árvores fora de áreas protegidas, prédio histórico, etc.), públicos (área pública, minas, etc.) ou à coletividade (ar, praias, etc.) – desde que esta utilização não se mostre nociva ao meio ambiente como bem autônomo (macrobem).

Firmadas estas bases, passa-se à análise da questão do dano ambiental e suas espécies.

Sobre o autor
Luciano Furtado Loubet

Pós-Graduado em Direito Ambiental pela UNIDERP – Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal. Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul. Ex-Juiz de Direito no Estado do Acre. Especialista em Direito Tributário pelo IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOUBET, Luciano Furtado. Delineamento do dano ambiental:: o mito do dano por ato lícito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 11, n. 1095, 1 jul. 2006. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/8568. Acesso em: 23 dez. 2024.

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