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A INCONTESTE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Agenda 09/10/2020 às 09:09

O ARTIGO DISCUTE SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL.

A INCONTESTE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL

Rogério Tadeu Romano

Prevê o artigo 1790 do Código Civil:

A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - Se concorrer com filhos comuns terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - Se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a um terço da herança;

IV - Não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.

Como expuseram Deise Laura R. da Silva e Altamir Carlos da S. Oliveira(A inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil ) “o artigo acima expõe as condições de sucessão entre os companheiros que vivem em União Estável e as formas pelas quais o companheiro (a) sobrevivente poderá participar da herança, desde que os bens tenham sido adquiridos de forma onerosa na constância da união estável, conforme prevê o Caput do artigo. Deixando claro que bens adquiridos de forma gratuita, por doação ou por sucessão não farão parte dos bens do casal, sendo comunicados apenas os que forem adquiridos na constância da União Estável, seja pelo esforço do cônjuge varão ou da varoa. Podemos perceber que não há o que se falar em meação, nem em regime de bens escolhido pelos companheiros, ou seja, o cônjuge sobrevivente concorrerá independente se foi ou não escolhido um regime de bens para reger a união estável, o que não se percebe na relação de casamento.”

O IBDFAM defende a inconstitucionalidade do artigo. 

Em 10 de maio de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu julgamento que discute a equiparação entre cônjuge e companheiro para fins de sucessão, inclusive em uniões homoafetivas. A decisão foi proferida no julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) 646721 e 878694, ambos com repercussão geral reconhecida. No julgamento realizado os ministros declararam inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelece diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens.

O RE 878694 trata de união de casal heteroafetivo e o RE 646721 aborda sucessão em uma relação homoafetiva. A conclusão do Tribunal foi de que não existe elemento de discriminação que justifique o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro estabelecido pelo Código Civil, estendendo esses efeitos independentemente de orientação sexual.

No julgamento referenciado, prevaleceu o voto do ministro Luís Roberto Barroso, relator do RE 878694, que também proferiu o primeiro voto divergente no RE 646721, relatado pelo ministro Marco Aurélio.

O ministro Barroso sustentou que o STF já equiparou as uniões homoafetivas às uniões “convencionais”, o que implica utilizar os argumentos semelhantes em ambos. Após a Constituição de 1988, argumentou, foram editadas duas normas, a Lei 8.971/1994 e a Lei 9.278/1996, que equipararam os regimes jurídicos sucessórios do casamento e da união estável.

Para a professora Giselda Hironaka, diretora nacional do IBDFAM, o histórico do artigo 1.790 já induz ao entendimento de que ele carrega consigo inúmeros problemas, eis que só foi inserido no texto do Projeto de Código Civil com a Emenda nº 358, apresentada pelo senador Nelson Carneiro.

Segundo ela, antes dele, nada constava a respeito da sucessão do companheiro, e a escolha do habitat legislativo para a sua inserção foi extremamente desastrosa, uma vez que não foi acolhido pelo dispositivo que abrigou a ordem de vocação hereditária, mas restou instalado fora do título destinado à Sucessão Legítima, no título destinado à Sucessão em Geral, no Capítulo das Disposições Gerais.

“O artigo 1.790 é de feição extremamente retrógrada e preconceituosa, e a vigorosa maioria dos pensadores, juristas e aplicadores do direito tem registrado com todas as letras que o dispositivo é inconstitucional, exatamente porque trata desigualmente situações familiares que foram equalizadas pela ordem constitucional, como é o caso das entidades familiares oriundas do casamento e da união estável”, argumenta.

Vejamos o problema como é posto.

Se o companheiro falecido tiver apenas bens recebidos a esse título, não deixando descendentes, ascendentes ou colaterais, os bens devem ser destinados ao companheiro ou ao Estado? Filia-se ao entendimento de destino ao companheiro, pela clareza do art. 1.844 do CC, pelo qual os bens somente serão destinados ao Estado se o falecido não deixar cônjuge, companheiro ou outro herdeiro. Na tabela doutrinária elaborada pelo Professor Francisco José Cahali, esse parece ser o entendimento majoritário, eis que exposta a dúvida em relação à possibilidade de o companheiro concorrer com o Estado em casos tais. A maioria dos doutrinadores respondeu negativamente para tal concorrência, caso de Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Diniz, Mario Roberto de Faria, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Sílvio de Salvo Venosa; além do presente autor. Por outra via, sustentando que o companheiro deve concorrer com o Estado em casos tais: Francisco José Cahali, Giselda Hironaka, Inácio de Carvalho Neto, Maria Helena Daneluzzi, Mário Delgado, Rodrigo da Cunha Pereira e Zeno Veloso. 

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Fácil é ver que aquela redação para o artigo 1.790 do Código Civil, não se sustentava seja sob o âmbito literal ou ainda teleológico, uma vez que criava, em afronta ao princípio da igualdade, no âmbito da realidade social(direito é fato, norma e valor) um absurdo tratamento à  união estável.

Na publicação do acórdão foi mantida a modulação dos efeitos reconhecida em 2016, sem qualquer ressalva, apesar de debates no julgamento final. Conforme o voto do Ministro Barroso, "é importante observar que o tema possui enorme repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Assim, levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo ser recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, entendo que a solução ora alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública" (STF, recurso extraordinário 878.694/MG, relator ministro Luís Roberto Barroso).

Em suma, a tese da repercussão geral aplica-se, sim, aos processos de inventário em curso, desde que não haja decisão transitada em julgado, sem pendência de recurso. Por outra via, em havendo sentença ou acórdão aplicando o art. 1.790 da codificação material, esse deve ser revisto em superior instância, com a subsunção do art. 1.829 do Código Civil. Em relação aos inventários extrajudiciais pendentes, as escrituras públicas devem ser elaboradas com o novo tratamento dado pela nossa Corte Máxima. Em todos esses casos, as afirmações valem desde que a sucessão tenha sido aberta a partir de 11 de janeiro de 2003, conforme determina o art. 2.041 do Código Civil de 2002, in verbis: "as disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior (lei3.071, de 1º de janeiro de 1916)".

Para melhor elucidação sobre o caso trago trechos do brilhante voto do ministro Barroso na matéria:

“Na história brasileira, em decorrência da forte influência religiosa, o conceito jurídico de família esteve fortemente associado ao casamento. Seu objetivo principal era a preservação do patrimônio e da paz doméstica, buscando-se evitar interferências de agentes externos nas relações intramatrimoniais e nas relações entre pais e filhos. Nesse sentido, todas as Constituições anteriores à de 1988 que trataram expressamente do tema dispunham que a família se constitui pelo casamento”.

“Até pouco tempo atrás, o prestígio ao matrimônio tinha suporte em uma concepção da família como ente autônomo, e não como um ambiente de desenvolvimento dos indivíduos. A família era tutelada pelo Estado ainda que contra a vontade de seus integrantes, ou seja, independentemente dos custos individuais a serem suportados”.

“Durante a segunda metade do século XX, porém, operou-se uma lenta e gradual evolução nesta concepção na sociedade brasileira, com o reconhecimento de múltiplos modelos de família. Nesse período, parcela significativa da população já integrava, de fato, núcleos familiares que, embora não constituídos pelo casamento, eram caracterizados pelo vínculo afetivo e pelo projeto de vida em comum. Era o caso de uniões estáveis, de uniões homoafetivas, e também de famílias monoparentais, pluriparentais ou anaparentais (sem pais, como a formada por irmãos ou primos). Na estrutura social, o pluralismo das relações familiares sobrepôs-se à rigidez conceitual da família matrimonial”.

“Sensível às mudanças dos tempos, a Constituição de 1988 aproximou o conceito social de família de seu conceito jurídico. Três entidades familiares passaram a contar com expresso reconhecimento no texto constitucional: (i) a família constituída pelo casamento (art. 226, §1º); (ii) a união estável entre o homem e a mulher (art. 226, § 3º); e (iii) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, a chamada família monoparental (art. 226, § 4º). A Constituição rompeu, assim, com o tratamento jurídico tradicional da família, que instituía o casamento como condição para a formação de uma família ‘legítima’”.

“Se o Estado tem como principal meta a promoção de uma vida digna a todos os indivíduos, e se, para isso, depende da participação da família na formação de seus membros, é lógico concluir que existe um dever estatal de proteger não apenas as famílias constituídas pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes, pelo amor, pelo afeto e pela vontade de viver junto”.

“Essa evolução, no entanto, foi abruptamente interrompida pelo Código Civil de 2002. O Código trouxe dois regimes sucessórios diversos, um para a família constituída pelo matrimônio, outro para a família constituída por união estável. Com o CC/2002, o cônjuge foi alçado à categoria de herdeiro necessário (art. 1.845), o que não ocorreu – ao menos segundo o texto expresso do CC/2002 – com o companheiro”.

“Assim, caso se interprete o Código Civil em sua literalidade, um indivíduo jamais poderá excluir seu cônjuge da herança por testamento, mas este mesmo indivíduo, caso integre uma união estável, poderá dispor de toda a herança, sem que seja obrigado a destinar qualquer parte dela para seu companheiro ou companheira”.

“Se é verdade que o CC/2002 criou uma involução inconstitucional em seu art. 1.790 em relação ao companheiro, é igualmente certo que representou razoável progresso no que concerne ao regramento sucessório estabelecido no art. 1.829 para o cônjuge. No citado artigo 1.829, reforça-se a proteção estatal aos parceiros remanescentes do falecido, tanto pela sua elevação à condição de herdeiro necessário, como pelos critérios de repartição da herança mais protetivos em comparação com a legislação até então existente.”

“Considerando-se, então, que não há espaço legítimo para que o legislador infraconstitucional estabeleça regimes sucessórios distintos entre cônjuges e companheiros, chega-se à conclusão de que a lacuna criada com a declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 deve ser preenchida com a aplicação do regramento previsto no art. 1.829 do CC/2002, e não daquele estabelecido nas leis revogadas. Logo, tanto a sucessão de cônjuges como a sucessão de companheiros devem seguir, a partir da decisão desta Corte, o regime atualmente traçado no art. 1.829 do CC/2002”.

Essa histórica decisão do STF é de inexcedível importância para as relações sociais.

Trouxe suas consequências no âmbito do processo.

Destaco que, consoante informado pelo site do STJ, em 8 de outubro de 2020, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu parcial provimento ao recurso de um homem para retirar do polo passivo da ação de reconhecimento e dissolução de união estável os parentes colaterais da sua suposta companheira, que faleceu.

Apesar do interesse dos familiares no resultado da ação – que também pede a concessão da totalidade dos bens da falecida –, o colegiado entendeu que isso não é suficiente para qualificá-los como litisconsortes passivos necessários, pois, no processo a respeito da união estável do suposto casal, não há nenhum pedido formulado contra eles.

O juízo de primeiro grau incluiu os parentes na ação sob o fundamento de que teriam interesse direto na discussão sobre a existência da união estável, bem como​ entendeu pela constitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil – que estabelece diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens. O entendimento foi mantido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Ao STJ, o autor da ação alegou a desnecessidade de inclusão dos herdeiros colaterais no polo passivo, pois eles não concorreriam à herança em razão da inconstitucionalidade do artigo 1.790. Sustentou ainda que não teriam interesse direto na formação do convencimento do juízo quanto à existência ou não da união estável invocada.

Em síntese: os parentes colaterais do falecido não precisam figurar no âmbito de ação que discute o reconhecimento de união estável, pois aí não há litisconsórcio passivo necessário.

O litisconsórcio passivo necessário surge quando a natureza da relação jurídica o exige ou a lei determina e quando o litisconsórcio deva ser unitário, pois a decisão deva ser una para todos.

 

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

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