PREFEITO MUNICIPAL PODE EDITAR NORMAS DE SAÚDE MESMO QUE ENVOLVAM CARREATAS, PASSEATAS E COMÍCIOS ELEITORAIS
Rogério Tadeu Romano
Segundo o G1 RN, “a Prefeitura de Natal proibiu a realização de caminhadas, carreatas, passeatas e comícios na capital potiguar durante as eleições municipais de 2020. Segundo o município, o objetivo da medida é prevenir a contaminação pelo novo coronavírus.”
Ainda de acordo com o decreto publicado no dia 5 de outubro ficam proibidas reuniões com mais de 100 pessoas. De acordo com o texto, no caso de reuniões, deve ser mantida restrição do número de pessoas, observando-se distanciamento mínimo de 1,5 metro e o limite de uma pessoa para cada 5m² de área. Além disso, deve ser disponibilizado álcool 70º gel ou líquido e o uso de máscara é obrigatório.
"Com fim de prevenir o contágio e a disseminação da Covid-19 pela distribuição de mídias impressas, as coligações e candidatos deverão dar preferência às mídias digitais", diz o decreto.
Discute-se aqui sobre a competência dos municípios de tratar de assuntos de especial interesse local no que concerne ao combate aos efeitos da covid-19.
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
…………
O Município está no conceito da federação brasileira, tal como determina o artigo 18 da CF.
Dir-se-á que há competência concorrente entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios para editar sobre normas de saúde.
Mas, afinal, o que é interesse local que determine essa competência do Município com relação a esses assuntos?
Deve-se entender como interesse local, no presente contexto, aquele inerente às necessidades imediatas do município, mesmo que possua reflexos no interesse regional ou geral. Dessa forma, não compete aos Estados a disciplina do horário das atividades de estabelecimento comercial, pois se trata de interesse local.
O STF possui entendimento assentado nesse sentido, consolidado no enunciado da Súmula n° 645/STF: “” É competente o município para fixar o horário de funcionamento de estabelecimento comercial”. No mesmo sentido, inúmeros precedentes da Corte, dentre os quais cito: RE-AgR n° 203.358, 2a T., unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29.8.1997; RE n° 174.645, 2a T. , unânime, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 17.11.1997; RE n° 237.965, Pleno, unânime, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 31.3.2000; RE n° 274.028, 1a T., unânime, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 10.8.2001; RE n° 189.170, 2a T., maioria, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 8.8.2003; AI-AgR n° 481.886, 2a T., unânime, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 1.4.2005.
Sobre a matéria disse Uadi Bulos (Constituição Federal Anotada, 6ª edição, pág. 607) quando disse:
“Mas, no que tange ao conceito de “interesse local”, aplica-se ou não toda aquela exegese doutrinária, avalizada pela jurisdição de nossos Tribunais, a respeito da expressão “peculiar interesse municipal? Parece-nos que sim. Nada obstante o fato de o constituinte de 1988 ter substituído a terminologia “peculiar interesse municipal” por interesse local, o certo é que cairá na esfera de atribuições do município tudo aquilo que for predominante ao gerenciamento de seus negócios próprios nos limites das atribuições que as normas constitucionais e ordinárias lhe irrogam. Isso não significa exclusividade, pois, como profligou Hely Lopes Meirelles, “Peculiar Interesse não é o interesse exclusivo do Município, não é interesse privativo da localidade, não é interesse único dos municípios. Se se exigisse essa exclusividade essa privatividade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o reflexamento da União e do Estado-membro, como também não há interesse regional ou nacional, que não ressoa nos Municípios, como partes integrantes da Federação brasileira, através dos Estados a que pertencem. O que define e caracteriza o peculiar interesse inscrito como dogma constitucional é a predominância do interesse do Município sobre o Estado e a União(Direito municipal brasileiro, 4ª edição, 1981, pág. 86).”
Dito isso, discute-se se o Município, através do chefe do Poder Executivo local, pode editar normas de saúde em se tratando de aglomerações que ponham em risco a saúde da população, em época de eleições.
A temática, por certo, é administrativa, e não eleitoral.
Direi que é um argumento absurdo entender que, em época de eleições, não possa o chefe do poder executivo municipal editar decretos que tratem de poder de polícia em matéria de saúde pública. Assim, ab absurdum, apenas a União Federal, que detém o poder de editar normas gerais, e os Estados membros poderiam agir como tal. Mas, isso é elidir norma programática exposta na Constituição, atribuindo ao Município poder de editar normas no seu especial interesse.
Para isso, propõe-se uma distinção entre o que é válido para o sujeito (subjetivo) e para todos os seres racionais (objetivo), conceitos que Perelman (Tratado da argumentação - A nova retórica) se utiliza para delimitar seu auditório universal e particular. Já nas palavras de Kant, o assentimento é um evento em nosso entendimento que, embora possa repousar sobre fundamentos objetivos, também exige causas subjetivas na mente daquele que julga. Se este juízo é válido para qualquer pessoa, desde que seja dotada de razão, o seu fundamento é objetivamente suficiente e assentir a ele chama-se, então, convicção. Se ele possui o seu fundamento tão somente na natureza particular do sujeito, então o assentir a ele denomina-se persuasão (KANT, 1787). Aí está a principal diferença entre convicção/convencimento e persuasão: enquanto a persuasão funciona como uma verdade interna, para um único sujeito, a convicção se dá quando o mesmo assentimento, que serviu para um sujeito em particular, é comunicado e considerado válido para a razão de quaisquer seres humanos. A concordância de todos os juízos teria fundamento no objeto, daí ser considerado o conceito de objetividade, em contraponto à subjetividade (fundamento no sujeito). Segundo o autor, ainda, é só aí que se dá uma comunicação, quando o assentimento pode ser creditado por todo um conjunto racional, e não subjetivo. Nada posso afirmar, isto é, declarar como um juízo necessariamente válido para qualquer pessoa, senão aquilo que tem como efeito uma convicção. Posso guardar uma persuasão para mim no caso de me sentir bem assim, mas não posso nem devo pretender torná-la válida fora de mim (KANT, 1787).
Não atua assim o prefeito como candidato a invadir competência dos órgãos eleitorais.
A matéria é de saúde e esta está em primeiro lugar. O zelo pela saúde pública é princípio constitucional impositivo a que não podem os entes públicos abdicar.
Estão aí as consequências trazidas pela Covid-19, com mais de 150.000 mortos no Brasil e uma ameaça de uma segunda onda caso não sejam tomadas providências preventivas que exigem responsabilidades dos agentes políticos.
Alerte-se que não cabe à Justiça Eleitoral, Justiça Especial, editar normas que transbordem o pleito eleitoral.
Não se trata de matéria eleitoral.
Adite-se, que em matéria de saúde, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu que governos estaduais e municipais têm poderes para decretar ordens restritivas durante a pandemia —entre as quais o isolamento social, a quarentena, a suspensão de atividades de ensino, as restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas —, mesmo que o governo federal tome depois medida em sentido contrário. Ainda segundo o ministro, a validade dos decretos dos governos estaduais e das prefeituras poderá ser analisada pelo Judiciário individualmente:
“Não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento/ isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos”.
Para Hely Lopes Meirelles:
“Estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa – e inútil, por incompleta – a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização, etc; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local, é de se assinalar, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local.”(Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 12ª ed., p. 135).
Eventual determinação da Justiça Eleitoral ao Executivo Municipal, impedindo-o de gerir livremente os assuntos de interesse da administração, agride a competência dada ao Município de gerir sobre matéria de seu peculiar interesse.
Portanto, data vênia de entendimento contrário, entendo que, para o caso, o prefeito de Natal não invadiu competência eleitoral, até porque se tratava de matéria envolvendo saúde pública, que é de competência do Município em matéria de seu especial interesse.
Para o caso em discussão sequer legitimado está o atual prefeito para responder como candidato e sequer é competente a Justiça Eleitoral para dirimir o caso. A matéria é da Justiça Comum Estadual.