1. INTRODUÇÃO
A evolução tecnológica, nos últimos anos, acontece em ritmo acelerado e acarreta mudanças sensíveis nos diversos aspectos das relações sociais. Sendo o direito um instrumento de controle das ações humanas, cabe a ele acompanhar o passo das novas tecnologias e manter o equilíbrio das relações interpessoais.
Na nova era de desenvolvimento, as relações de consumo foram transmutadas, o acesso e compartilhamento de informações foram extremamente facilitados, além da comunicação e a interatividade terem encurtado a distância entre as pessoas. Nesse sentido, houve uma clara potencialização do mundo digital cujo ambiente criado favoreceu o desenvolvimento de novos empreendimentos que revolucionaram diferentes setores da economia.
A mudança trazida pelos avanços da economia digital, ao tempo que trouxe facilidades para os indivíduos, também apresentou forte caráter disruptivo. Desse modo, os países, antes acostumados com as relações da economia tradicional, se viram forçados a modificar suas leis, a fim de abarcar esse novo panorama econômico.
No âmbito tributário os desafios são variados e de difícil solução. Partindo das mudanças dos modelos de negócio e dos ativos criadores de valor; passando pela ausência física das empresas nos países; e desaguando na intangibilidade dos produtos transacionados, bem como na dificuldade de conceituação da operação efetuada. Ademais, cada país apresenta características próprias as quais forçam seus governos a estudarem as melhores soluções diante do funcionamento e influência singulares da economia digital em cada mercado.
Sendo assim, é necessário salientar que o contexto tributário brasileiro, em relação à economia digital, apresenta desafios específicos, os quais não podem ser resolvidos com a simples importação de soluções prontas vindas de outros países. Logo, faz-se necessário apresentar o retrato do panorama brasileiro e demonstrar a diferença entre as dificuldades apresentadas pelo Brasil e de outros países, os quais, a despeito de uma melhor situação econômica, ainda mostram dificuldades para adequar sua legislação às dinâmicas do mercado digital.
2. TRIBUTAÇÃO E ECONOMIA DIGITAL
O sistema tributário mundial atual, alicerçado nos aspectos da economia tradicional, vem encarando fortes desafios diante das novidades trazidas pela economia digital, uma vez que os instrumentos, antes funcionais na arrecadação de tributos, hoje se mostram falhos.
Para compreender como a digitalização da economia levou o sistema tributário mundial a um processo de urgente reforma, é necessário compará-la com aspectos da economia tradicional e demonstrar porque os países defendem a tributação da economia digital através da criação de um imposto específico.
Uma empresa tradicional, sem sede no país consumidor, envia um produto do seu país para revendedores no país consumidor. Desse modo, a empresa paga tributos pelo lucro auferido, no país em que ela tenha presença física; os tributos aduaneiros; e o IVA; enquanto a loja que revende o produto no mercado consumidor recolhe tributos ao país onde está fixada. Nesse sentido, com um estabelecimento responsável pela revenda no país consumidor, é possível a exploração do referido mercado com a arrecadação, inclusive, do imposto de renda pelo país de destino.
No caso das empresas digitais, sem sede no país consumidor, como uma empresa só pode ser tributada pelos lucros que ela aufere em um país se a mesma tiver presença física no local, há uma menor carga tributária incidente. Ademais, a própria digitalização facilitou o contato direto da empresa estrangeira com o consumidor final, desse modo, os produtos enviados são destinados de modo difuso para diferentes consumidores espalhados no país de destino, o qual apresenta maiores dificuldades de tributação e controle aduaneiros.
Além da mencionada dificuldade na fiscalização das vendas digitais B2C (Business to Consumer), os países consumidores sofrem ainda com a ausência de suporte físico dos produtos. Na economia digital, há uma forte tendência à intangibilidade do objeto envolvido na operação, isto é, cada vez menos as empresas realizam operações de venda de produtos tangíveis e, ao inverso, cada vez mais promovem operações de licenciamento de bens intangíveis.
A fim de elucidar a situação, um bom exemplo dessa mudança são os softwares, os quais eram vendidos, há alguns anos, com suporte físico; depois passaram a ser adquiridos por download com licença perpétua; e atualmente são oferecidos para download em modelo de licença por tempo limitado, através de uma plataforma digital.
O problema da intangibilidade nas operações B2C está principalmente na quebra das fronteiras comerciais, uma vez que fica impossibilitada a cobrança da tributação aduaneira sobre produtos sem suporte físico. Um exemplo simbólico da iminente falência do sistema tradicional de tributação é a venda de projetos para consumidores donos de impressoras 3D, que adquirem virtualmente um objeto e poderão imprimí-lo (tangível) em suas casas.
Outra grande dificuldade encarada pelos países consumidores é como fiscalizar o recolhimento do IVA, tendo em mente que a maioria das vendas é feita ao consumidor final. Desse modo, seria impossível impor ao consumidor final o recolhimento do tributo a cada compra que ele fizer. Portanto, o problema estaria voltado à viabilização da cobrança do IVA.
O terceiro grande fator que impõe desafios aos países consumidores é a mudança do modelo negocial e dos ativos criadores de valor, no contexto da economia digital.
No caso do ramo de hospedagem, o Airbnb modificou drasticamente a forma pela qual as pessoas realizam negócios. Antes, grandes redes de hotéis utilizavam a marca como atrativo para que novos clientes se hospedassem em seus imóveis, isto é, o ativo estava nas mãos da própria rede de hotéis. Contudo, atualmente, as empresas como a Airbnb interligam os donos de imóveis com os locatários, através de uma plataforma funcional, e criam um sistema reputacional seguro em que os locadores são avaliados.
Nesse sentido, os ativos criadores de valor são os próprios usuários que geram informações para as empresas. Outro exemplo no mesmo sentido é o Facebook que, além de prestar serviço de publicidade direcionada a empresas que pagam diretamente pelo serviço, oferece “serviço” de rede social aos usuários, os quais fornecem dados valiosos para o direcionamento de publicidade.
Diante da transferência da titularidade do ativo produtor de valor para as mãos dos usuários das plataformas digitais, os Estados passaram a questionar se teriam legitimidade para tributar essa riqueza gerada pelos seus cidadãos e direcionada às empresas digitais.
Em virtude dos três principais entraves tributários criados pela economia digital, os Estados, em especial os europeus, passaram a discutir a implantação dos Digital Service Taxes, sob o principal pretexto de que as empresas digitais estavam explorando seus mercados consumidores e utilizando toda a infraestrutura do país sem oferecer nenhuma vantagem em contrapartida.
A proposta de criação de um tributo digital, no entanto, vem gerando celeuma entre as nações envolvidas, as quais iniciaram uma forte disputa econômica. Os EUA, por exemplo, país sede de grandes empresas digitais, prometeram aumento dos impostos de importação sobre os produtos advindos das nações que instituíssem o impostos digitais sobre suas empresas.
A implementação do Digital Service Tax, porém, ainda é tema controverso entre os países, tendo em vista a ausência de estudos empíricos que comprovem que a aplicação do tributo não inviabilizará que empresas menores tenham melhor acesso aos mercados e que não haverá repasse do ônus fiscal para empresas e clientes que usam plataformas online. Sendo assim, a polêmica segue no centro das discussões tributárias atuais.
3. PARTICULARIDADES DO CONTEXTO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
A discussão sobre a tributação da economia digital, no contexto brasileiro, deve ser orientada pelas balizas corretas e adequadas à realidade nacional. Nesse ínterim, deve-se alertar, de início, que as empresas digitais exploram o mercado consumidor europeu de maneira diversa da realizada no Brasil.
A exploração do mercado europeu ocorre a partir de uma presença somente digital no país de destino, uma vez que as empresas digitais se fixam em países de menor carga tributária. Desse modo, diante da ausência de presença física, restam impossibilitadas as retenções na fonte sobre pagamentos advindos do país consumidor, tendo em vista que a rede de tratados do mercado europeu impede esse tipo de retenção, além do modelo de tributação sobre a renda, nesses Estados, ser ainda calcado na economia tradicional, apenas alcançando estabelecimentos físicos.[1]
Em solo brasileiro, todavia, a realidade é bem diferente da situação européia. O Brasil é um país que, por diferentes fatores, tais quais, controle cambial, que exige celebração de contrato de câmbio para realização de remessas ao exterior; uso reduzido de cartão de crédito internacional; exigência de nota fiscal; e pagamento em real pelo consumidor local; força as empresas digitais a se instalarem em solo nacional.
Ademais, o Brasil tributa largamente as remessas internacionais, através de um sistema de tributação da renda na fonte. Nesse sentido, mesmo que as empresas digitais não tenham subsidiárias em solo brasileiro, terão de recolher IRRF e, no caso das vendas com pagamento por cartão de crédito, IOF crédito. Há ainda, inclusive, a incidência do PIS/Cofins importação, ISS e da CIDE.[2]
O Estado brasileiro, por conseguinte, já tributa amplamente a renda de empresas que oferecem serviços no país, restando claro que o problema europeu muito difere dos desafios tupiniquins acerca do assunto.
O problema do sistema brasileiro, no contexto da economia digital, deve ter como foco a previsibilidade da tributação e a criação de um ambiente favorável ao funcionamento dessas empresas digitais, tendo em vista que, além da nossa legislação tributária ser dotada de grande complexidade, a dinâmica de tributação sobre o consumo é arcaica e responsável pela promoção de uma guerra fiscal entre estados e municípios.
Enquanto os países europeus ultrapassaram, há muito tempo, esse imbróglio com a instituição do IVA, o Brasil segue com a dinâmica de aplicação do ISS e do ICMS, impostos incompatíveis com a economia digital.
A tentativa de delimitação do objeto das operações realizadas pelas empresas em serviço ou mercadoria, cada vez mais se mostra falha e insuficiente, na medida em que, no mundo digital, essas naturezas passam a se confundir. Casos que retratam bem a fluidificação dos conceitos são os dos carros semiautonomos ou das geladeiras inteligentes, cuja funcionalidade extrínseca circunstancial ganha maior importância do que sua natureza intrínseca.
Diferentes funções agregadas ao produto fazem diminuir, portanto, a relevância de seu valor por sua função primária e dificultam a identificação de sua natureza jurídica, trazendo distorções na tributação. Desse modo, o valor agregado do produto, isto é, sua inteligência e tecnologia aplicadas ao objeto, passa a ter mais importância que a função tradicional.[3]
Some-se a isso a intangibilização dos objetos das operações, como no caso daquelas envolvendo licenciamento de software, por tempo limitado, disponível na nuvem, que torna ainda mais flagrante a caducidade dos ISS e do ICMS na tributação digital.
A dinâmica da tributação sobre o consumo brasileira ainda traz outros sérios problemas, além dos listados. O primeiro deles resta configurado na tendência das operações realizadas pelas empresas digitais, em sua maioria, serem oferecidas como serviços. Sendo a economia digital majoritariamente voltada ao oferecimento de serviços, ocorre um aumento da carga tributária federal em detrimento da arrecadação dos estados.
Um segundo ponto problemático reside no fato da disputa arrecadatória entre estados e municípios no momento de imputação da operação como serviço ou mercadoria e conseqüente aplicação do ISS ou ICMS. Nesse sentido, as empresas digitais se encontram no pior cenário possível, uma vez que são cobradas pelos dois entes da federação e, nos últimos meses, para não serem alvo de autos de infração, vêm se valendo de ações consignação em pagamento para que o juiz arbitre a qual ente tributante caberá o recolhimento do tributo.
Nesse sentido, os problemas tributários brasileiros são bem diferentes dos enfrentados por outros países, em especial os europeus, não sendo indicado tomar medidas baseadas nas legislações estrangeiras, uma vez que a importação de soluções prontas tornaria o mercado nacional ainda menos atrativo às empresas digitais.
4. CONCLUSÃO
Diante dos desafios impostos pela economia digital aos Estados, urge salientar que cada país apresenta um sistema político próprio e, portanto, necessitam de soluções particulares.
Logo, apesar dos tributos brasileiros sobre o consumo serem notadamente incompatíveis com o modelo econômico digital e, justamente por isso, desestimularem a atuação das empresas digitais nacionais e estrangeiras no país, a importação de uma legislação estrangeira pode significar um retrocesso. A implantação, no Brasil, de um novo Digital Service Tax, como discutido pela União Européia, viria sobrecarregar ainda mais as empresas digitais as quais já recolhem muitos tributos no país e ainda precisam conviver com um sistema tributário confuso e incerto.
Dessa maneira, por adotar um sistema que tributa a renda e pelo fato das empresas digitais possuírem subsidiárias no país, cabe ao Brasil dirimir os problemas de fiscalização que prejudicam a arrecadação e simplificar seu sistema tributário através, por exemplo, da implementação de um imposto sobre valor agregado, a fim criar um ambiente econômico favorável para que as empresas digitais explorem seu mercado consumidor, movimentem a economia, gerem riqueza e contribuam com o pagamento de impostos simples, previsíveis e razoáveis.
[1] RENAULT, Felipe Kertezs. Vital, Gustavo da Gama. Temas de Tributação Internacional: Base Erosion and Profit Shifting (Conceitos e Estudo de Casos) – Estabelecimento permanente e as novas tecnologias: um conceito em mutação? / Organização de Edgar Santos Gomes, Francisco Lisboa Moreira, Marcus Lívio Gomes. 1ª edição. Rio de Janeiro: Gramma, 2018. P. 288-289.
[2] PEROBA, Luiz Roberto. CONCA, Gabriela de Souza. O digital tax europeu e a reforma Tributária no Brasil. Jota. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-digital-tax-europeu-e-a-reforma-tributaria-no-brasil-29072019>. Acesso em: 17 de outubro de 2020.
[3] FERREIRA, Luiz Guilherme de Medeiros. NÓBREGA, Marcos. A tributação na economia digital. Jota. 2019. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-tributacao-na-economia-digital-19092019>. Acesso em: 17 de outubro de 2020.