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A supraestatalidade da Organização das Nações Unidas

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Agenda 21/10/2020 às 16:45

Num cenário mundial cada vez mais beligerante e armamentista, a ONU tem adotado uma posição supraestatal, interferindo em assuntos que, muitas vezes, dizem respeito à soberania interna dos países.

Resumo: A Organização das Nações Unidas, órgão criado após o término da Segunda Guerra Mundial, passando a existir oficialmente em 24 de outubro de 1945, com o objetivo de promover a paz e mediar conflitos entre os Estados, num cenário cada vez mais beligerante e armamentista, baseia seus esforços a partir da Carta das Nações Unidas e, muito embora –ao menos por essência– não possua pretensões supranacionais, tem adotado uma cada vez mais frequente posição supraestatal, interferindo em assuntos que, muitas vezes, dizem respeito à soberania interna dos países. Para tanto, as decisões tomadas pelo seu Conselho de Segurança vêm assumindo ao longo do tempo, muito mais frequentemente, um aspecto de imposição, cuja desobediência, ainda que com base no argumento da soberania, pode ocasionar amplo leque de represálias, desde a simples admoestação até a invasão territorial.

Palavras-chave: Organização das Nações Unidas; monismo; soberania interna; supraestatalidade.


1. INTRODUÇÃO

A Organização das Nações Unidas–ONU[1] se trata de uma organização intergovernamental de direito internacional constituída em 24 de outubro de 1945 em substituição à Liga das Nações[2]. Corresponde, na verdade, à manifestação de um novo e contínuo esforço coletivo entre os Estados, destinando-se, segundo Garcia[3], à promoção da paz mundial através da mediação de conflitos e constituindo um espaço institucionalizado de diálogo, negociação e deliberação entre Estados soberanos. Além dessas, há também outras atribuições tão importantes quanto, a exemplo das desempenhadas por outras agências, órgãos e programas que compõem sua estrutura e agenda (Organização Mundial de Saúde-OMS,  Fundo das Nações Unidas para a Infância-UNICEF, Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura-FAO, Organização Internacional do Trabalho-OIT, Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura-UNESCO, Banco Mundial etc).

Formada inicialmente por 51 países, atualmente, após 73 anos de sua criação, a ONU conta com quase duas centenas de membros com direito a voto, o que por si já demonstra seu sucesso em relação às tentativas anteriores de se criar um organismo com capacidade de promover a intermediação de conflitos, evitando o recurso à guerra, especialmente uma capaz de envolver novamente diversos atores mundiais, com resultados imprevisíveis e possivelmente catastróficos para o destino da humanidade.

Seu principal desafio foi por várias décadas conduzir o diálogo polarizado decorrente da Guerra Fria[4], notadamente entre os Estados Unidos e a União Soviética. Com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas-URSS, amplamente simbolizada por meio da derrubada do muro de Berlim[5], as atenções da ONU não se reduziram nem seu objeto se esgotou, especialmente num cenário crescentemente globalizado e cada vez mais sem fronteiras.

E é justamente nesse contexto, em que muito se discute a importância da ONU enquanto organismo com força capaz de fazer valer suas decisões e recomendações, que questões relativas à soberania estatal são frequentemente suscitadas. Vale destacar, nesse ponto, que as Nações Unidas mantêm atualmente o segundo maior contingente militar distribuído pelo mundo, atrás somente dos Estados Unidos, contando com mais de cem mil militares trabalhando em prol de seus objetivos em diversas missões, dispondo, para tanto, somente o Conselho de Segurança da entidade de um orçamento que supera a cifra dos 7 (sete) bilhões de dólares[6].

Vasconcellos[7], abordando o tema da soberania nacional versus supraestatalidade, reconhece que muito embora as organizações internacionais sejam fruto de uma elaboração formal, na prática, porém, a consolidação do poder dessas entidades segue um desenvolvimento lógico muito mais sujeito às contingências históricas do que sugere a ideia de uma simples execução de um esquema funcional consagrado em um texto convencional. Para o autor, há situações em que um Estado resiste a cumprir as determinações da autoridade internacional, seja dando uma interpretação normativa diversa ou mesmo agindo de forma indiferente às suas orientações. Da mesma forma, conclui que:

o ente internacional pode levantar-se sobre a soberania, seja para punir os Estados infratores das regras submetidas à sua alçada, seja para atuar de um modo diferente daquele imaginado pelos seus criadores, como que estendendo os limites de seu poder, embora, é claro, normalmente o fundamento jurídico de sua atuação, apesar desta estar ampliada, possa ser encontrado como uma derivação das competências originalmente conferidas à organização[8].

O mesmo raciocínio vale quando se refere à ONU, que apesar de não exercer, a princípio, atribuições de caráter supranacional, as decisões do seu Conselho de Segurança repercutem sobremaneira no cenário político dos Estados membros, muitas vezes levantando questionamentos em defesa da própria soberania interna. Apesar disso, como será possível observar, o descumprimento de suas recomendações e resoluções também não são incomuns.

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2. A CONCEPÇÃO KELSENIANA DE SOBERANIA E A SUPRAESTATALIDADE DA ONU

Conforme esclarece Maia[9], a noção de soberania surgiu em meados do século XVII e estava especialmente relacionada à procura por uma maior autonomia do nascente Estado moderno frente aos poderes universalistas, como o da Igreja, por exemplo. Para tanto, buscou-se enfatizar a naturalidade do princípio da igualdade soberana entre os Estados. Com o advento das Constituições modernas no final do século XVIII, porém, passou-se de um plano puramente personalístico para uma compreensão predominantemente institucional acerca do conceito de soberania, concebendo-se a partir daí a ideia de Constituição soberana.

Contrapondo-se a essa concepção clássica de soberania como um poder ilimitado, Kelsen[10] considera irrelevante a discussão jurídica da questão, contestando inclusive a posição dualista entre direito nacional e internacional. Para o autor, a única concepção viável a respeito do conceito de soberania é através de uma compreensão monista entre direito estatal e direito internacional.

Debruçando-se sobre o pensamento kelseniano, Mazzuoli[11] afirma que o monismo parte de uma concepção totalmente oposta à concepção dualista, vez que têm como ponto de partida não a dualidade, mas a unidade (ou unicidade) do conjunto das normas jurídicas, internas e internacionais. E continua:

trata-se da teoria segundo a qual o Direito Internacional se aplica diretamente na ordem jurídica dos Estados, independentemente de qualquer "transformação", uma vez que esses mesmos Estados, nas suas relações com outros sujeitos do direito das gentes, mantêm compromissos que se interpenetram e que somente sustentam juridicamente por pertencerem a um sistema jurídico uno, baseado na identidade de sujeitos (os indivíduos que os compõem) e de fontes (sempre objetivas e não dependentes (...) da vontade dos Estados).

A partir desse ponto de vista, aliás, é que se torna possível avaliar novas formas de relacionamentos internacionais, possibilitando dessa maneira o desenvolvimento de organizações e proporcionando aos Estados, analisados ao menos sob o ponto de vista de uma igualdade formal, uma atuação mais relevante perante a comunidade internacional. Assim sendo, a própria ONU fora dotada de poderes que se sobrepõem, ainda que potencialmente, à autoridade dos Estados, uma vez que, na prática, o fator preponderante continua sendo a força (política, econômica e militar), muito embora se mostre importante levar em consideração também outros aspectos, como causas sociais e até mesmo fatores psicológicos[12].

Assim, ao menos em tese, as decisões proferidas pela Organização das Nações Unidas vinculam os Estados-membros, uma vez que ao assinarem o acordo e passarem a compor a referida organização internacional, consentindo em vincular-se juridicamente a ela, transmitem uma parcela de sua soberania.

Bomtempo[13] assevera que apesar de não se tratar propriamente de um Estado, o poder exercido pela ONU, inclusive sobre Estados que não a integram, é de ingerência e de império, na medida em que esta organização pode sancionar desde medidas restritivas de ordem econômica até o uso da força coercitiva, em nome da paz e da ordem mundial, por meio de medidas aprovadas pelo Conselho de Segurança.

3. OS MECANISMOS DE MANIFESTAÇÃO DA SUPRAESTATALIDADE DA ONU

Como se pretende demonstrar, não raras vezes a soberania dos Estados em face de organizações internacionais, especialmente no caso da ONU, é relativizada ou até mesmo abolida, justificando-se para tanto, na maioria dos casos, questões de interesse global, como a paz mundial ou o direito humanitário.

As intervenções da ONU, como assevera Maluf[14], podem ocorrer por diversas razões, inclusive por solicitação do próprio país em caso de comoção interna, a exemplo das forças internacionais de paz que ocuparam o Haiti[15] no ano de 2004. Não é incomum, porém, que tais ingerências advenham da imposição de sanções econômicas e comerciais[16] com finalidades coercitivas.

Destaque-se, outrossim, ainda com base no escólio apresentado por Maluf[17], que tais intervenções também podem resultar da legitimação outorgada a um ato de ocupação ou invasão, praticado por um ou vários países contra outro, como ocorreu no Iraque em 2003.

 A bem da verdade, porém, e especificamente em relação a esse conflito,  importante destacar, conforme assevera Vasconcellos[18], que a coalização liderada pelos Estados Unidos e Inglaterra utilizou um argumento pseudojurídico, dando uma interpretação totalmente distorcida à Resolução 1441 do Conselho de Segurança da ONU. Assim, a invasão foi muito mais sustentada pelas superpotências buscando atingir seus próprios interesses, baseadas para tanto muito mais na confiança na capacidade bélica de que dispunham do que pelas razões jurídicas invocadas. Assim, conclui o autor:

Os Estados Unidos, de sua parte, justificam sua posição alegando que sua “causa é justa – a segurança das nações que servimos e a paz no mundo”. Ao apresentar razões de segurança para justificar o ataque, o governo norte-americano sugere haver atuado em legítima defesa preventiva. Além disso, consideravam-se já autorizados a proceder ao ataque pela parte da Resolução 1441 em que o Iraque era advertido de que, se continuasse infringindo suas obrigações ficaria exposto a “graves consequências”. Somente, porém, com muita imaginação para entender que termos tão vagos seriam utilizados para utilizar medida tão séria como o ataque armado a um país, sobretudo quando havia a expressa previsão de nova consulta ao Conselho de Segurança, nos itens 4 e 12 da resolução (...)[19]

Em razão disso, talvez esse não seja o melhor exemplo de demonstração da supraestatalidade exercida pela ONU por meio da intervenção armada, entendida esta, conforme redação do art. 42 da Carta das Nações Unidas, como a ação militar levada a cabo por decisão do Conselho de Segurança através de forças aéreas, navais ou terrestres, visando manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais[20]. Este poder é conferido ao órgão pelos Estados-membros (art. 24, item 1, da Carta), os quais abdicando de parcela de sua autoridade permitem que a ONU aja em nome deles, a exemplo do que aconteceu quando da invasão realizada pelo Iraque contra o Kuwait em 1990[21], tendo a ONU, após intensa pressão internacional, autorizado, por meio da Resolução nº 678, uma coalização liderada pelos Estados Unidos a entrar no conflito que ficou conhecido como Guerra do Golfo.

Há de se frisar, outrossim, que além da força bélica há outros mecanismos sancionatórios de que lançam mão a ONU e suas agências, e que podem configurar desde sanções morais, autorização para adoção de medidas compensatórias, imposição de pena pecuniária, até a aplicação de outras medidas coercitivas (retorsão, represálias, embargo e boicotagem). A esse conjunto de medidas, Vasconcellos[22] classifica como mecanismos de extensão sancionatórios, uma vez que previstos nos tratados constitutivos, sendo apenas a capacidade de empregá-los que efetivamente se caracteriza como uma extensão ao funcionamento ordinário de uma organização internacional.

Além desses, a Organização das Nações Unidas também pode atuar de maneira inovadora, ampliando seus poderes originários, a exemplo do que frequentemente ocorre quando se trata de direitos humanos ou da questão ambiental, onde se tem defendido uma cada vez maior intervenção por parte da ONU, seja por meio dos efeitos normativos de suas resoluções, seja pela adoção de medidas com caráter jurisdicional, como no caso da criação de tribunais internacionais penais ad hoc[23], sendo possível citar como exemplos o Tribunal para a Acusação de Pessoas Responsáveis por Sérias Violações do Direito Internacional Cometidas nos Territórios da Antiga Iugoslávia (Tribunal Penal Internacional para a Iugoslávia –TPII, criado a partir da Resolução da ONU  de nº 827, de 1993) e Tribunal Penal Internacional para a Acusação de Pessoas Responsáveis por Genocídio e Outras Sérias Violações ao Direito Humanitário Internacional Cometidos no Território de Ruanda e por Cidadãos Ruandeses Responsáveis por Sérias Violações em Territórios Vizinhos (Tribunal Penal Internacional para Ruanda –TPIR, criado a partir da Resolução nº 955, de 1994).

4. CONCLUSÃO

Como se percebe, a ONU ocupa um importante e inquestionável espaço de mediação e promoção da paz no mundo moderno e tem conseguido conduzir de forma satisfatória ao longo das últimas sete décadas diversos conflitos, muitas vezes evitando que países adversários no contexto geopolítico e histórico mundial recorressem à guerra, notadamente uma com contornos semelhantes aos dos dois conflitos mundiais ocorridos durante o século XX.

Para tanto, a ONU se vale não só da própria legitimidade que lhe foi concedida por meio da Carta das Nações Unidas e da natural capacidade de conduzir os diálogos que seus líderes demonstram, como também possuem elementos coercitivos à sua disposição, usados como forma de expressar desaprovação e punir governos ou outros organismos.

Esses elementos de demonstração de força, que podem variar desde uma simples reprimenda até uma invasão territorial, muito frequentemente são vistos como ingerências em assuntos internos e até mesmo uma violação da soberania nacional, o que revela um dos aspectos mais importantes da atuação da ONU na comunidade internacional, qual seja, a sua supraestatalidade, resultante da convenção dos Estados ao assinarem o acordo e aderirem à organização, abrindo mão de parcela de sua soberania e se vinculando juridicamente a ela.

Por se tratar de uma organização a princípio sem pretenções supranacionais, a ONU se vale de mecanismos de extensão sancionatórios, a partir de medidas previstas genericamente em seus tratados constitutivos, assim como também pode agir de modo inovador, ampliando seus poderes originários, especialmente quando se trata de assuntos de interesse de toda a comunidade internacional, como direitos humanos, terrorismo e direito ambiental.

Sobre o autor
José Henrique Mesquita da Silva

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Delegado de Polícia Civil. Estudante do Mestrado em Direito Público pela Universidade Portucalense – UPT em parceria com o Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública –CECGP. São Luis – MA, Brasil. Correio eletrônico: dpc.henrique.mesquita@gmail.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Henrique Mesquita. A supraestatalidade da Organização das Nações Unidas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6321, 21 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86075. Acesso em: 21 nov. 2024.

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