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A Ponderação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana como Prius Axiológico

Breves notas da dignidade da pessoa humana e sua função na interpretação do Direito

Agenda 23/10/2020 às 10:35

O presente artigo traça um breve panorama da dignidade da pessoa humana na História até chegar a sua consolidação como princípio na Era Pós-Moderna. Ademais, enuncia a ponderação de sua aplicação no Direito, de modo não esvaziar seu real significado.

            Ao se mencionar um vernáculo, sempre tentamos compreender sua origem etimológica, pois, assim, tenderíamos ao seu real significado e sua carga funcional diante da sociedade. Não diferente, a dignidade advém do dignitas, latim vulgar e que se deriva do dignus que significa digno, valioso, adequado, compatível com os propósitos, ainda, de acordo com o dicionário Michaelis, tem como significado a autoridade moral, honestidade, respeito a valores e sentimentos. 

            O conceito de dignidade da pessoa humana remonta tempos longínquos na linha da História humana. A Lei Moisaica talvez tenha sido a primeira precursora dos direitos da pessoa humana, invocando a dignidade como salvaguarda da liberdade e alegando direitos aos Povos aprisionados pelo regime faraônico, apesar de ser dificilmente encontrada a expressão “dignidade humana”, conforme Yair Lorberbaum[1], o termo “kavod” aparece na Talmude dos Hebreus centenas de vezes e suas raízes estão provavelmente na palavra “kaved” que significa substância (presença física).

            Já com os pensamentos medievos de Tomás de Aquino, a dignidade humana descrita na Summa Theologiae bem evidencia o caráter indissociável do atributo dado a todo ser humano com a interleçção do mistério Divino-cristão. Com isso, inicia-se um movimento que cuida por aprofundar o que convém reconhecermos como dignidade. A teologia cristã está conectada com a dignidade humana quando reafirma o tratado bíblico que diz o homem é a imagem de Deus, dando um caráter mais preternatural ao dispositivo em comento[2] – claro que não podemos nos dissociar da questão moral à época, pois nem todos possuíam dignidade tal como afirmada pelos escolásticos e pensadores da Igreja.

            Por sua vez, na Era Moderna, autores como Voltaire, Rousseau e até Kant se debruçaram a traçar o conteúdo que sintetiza ou, ao menos, indaga a questão que, por tantos anos, tornou-se tormentosa pelo simples fato de não ter havido um conceito uníssono, mas foram partes que se compunham. Podemos ver na atuação de Voltaire, o espírito de defesa aos mais necessitados. O filósofo de Paris defendeu a dignidade humana em seus aspectos formais e materiais, considerado o primeiro advogado de direitos humanos da Europa, e nisso via a dignidade, legitimidade e justiça.  No entanto, foi com Immanuel Kant na sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes que enlaçou o que temos hoje por definição mais fidedigna com a aplicação do instituto. Para Kant, o ser humano não poderia ser tido como meio, mas o próprio fim em si mesmo. Assim, sintetizou o seu pensamento[3]:

Pois bem, o ser humano, como natureza racional, existe como valor absoluto e fim em si e, por isso, constitui-se como a base da lei prática. O ser humano não deve, por conseguinte, absolutamente ser usado como meio, mas tão-somente como fim em si mesmo, devendo ser chamado de pessoa e não de coisa, porque, enquanto esta possui valor relativo, aquela é fim em si mesmo, possui valor absoluto e, portanto, dignidade. (2009, p. 207). 

            Ou seja, por ser dotado de valor (e não de preço, como as coisas), o ser humano deveria ser o ponto inicial e o final para todo e qualquer passo. Importante assinalar que, muitos anos antes da Primeira Grande Guerra (1914-1918) – que conspurcou a definição da dignidade da pessoa humana - , o filósofo de Könisgberg já sinalizava a carga semântica do que viria a ser um princípio apregoado em um sem fim de Cartas Magnas, de modo a assegurar e reafirmar o homem como o fim em si mesmo, apesar de guerras, disputas ideológicas, comerciais e toda sorte de mudança. É consabido que o significado da dignidade da pessoa humana não se limita ao campo ontológico (neste incluído o biológico).

            No entanto, com os rompimentos das duas Grandes Guerras, houve por bem fazer uma releitura, de modo a alargar o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana e, sobretudo, a sua aplicação como compromisso inarredável de confluir as ideias abduzidas em prol do ser humano. Entrementes, não há se confundir a aplicabilidade moldada aos olhos neoconstitucionalismo com a elevação de categorias graníticas ou absolutista. É fato que a dignidade da pessoa humana, como alicerce fundamental da Carta da República Federativa do Brasil de 1988, não é princípio absoluto no ordenamento jurídico.  

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            No pós-segunda guerra, tendo em vista a releitura do princípio da dignidade da pessoa humana, muitos anos imergiram em todos os aspectos evidenciais do propósito deste supedâneo, notadamente como assinalada Jorge Pereira da Silva, citando Canotilho e Jorge Miranda[4]:

A ideia de dignidade da pessoa humana corresponde, certamente, ao mais importante conceito da gramática dos direitos fundamentais e, em geral, do constitucionalismo posterior à Segunda Guerra Mundial. [...] fornece a base para os direitos em geral, no sentido de que disponibiliza um argumento-chave para explicar por que razão os homens devem ter direitos. 

            

            O primeiro documento marcante, pós o Holocausto, que trouxe a dignidade considerada em si mesma foi a Carta da São Francisco, de 1945, por ocasião da Conferência Internacional das Nações Unidas, que evoca no seu preâmbulo, a dignidade e o valor do ser humano. Muito embora, a Declaração Universal de Direitos Humanos seja não vinculatória, ou seja, soft law para o Direito Internacional Público, indubitavelmente é farol reluzente para as Cartas Magnas posteriores. Além de criar costume internacional que, se preenchido os requisitos legais, torna-se-á norma hard law

            Fazendo uma análise nas Constituições do Brasil, podemos apontar categoricamente que o princípio da dignidade da pessoa humana nunca fora antes erigido a uma carga axiológica tão efusiva quanto ao que fora dado pelo Poder Constituinte Originário de 1988, colocando-o como princípio fundante da República. Também é fato que o mesmo Poder não trouxe um status supraconstitucional ao demandado princípio. O entendimento é de que, diante da pulverização dos temas constitucionais, dos princípios de Direitos Humanos assumidos pelo Brasil em pactos internacionais, da máxima efetividade da constituição, do modo a não relegá-la à ineficácia, seria um vetor de categoria ímpar no ordenamento jurídico brasileiro. O ponto de concatenação do real significado da Carta Política no seu aspecto material e, com isso, proporcionar a efetividade do Direito vindicado. Não baste a letra da norma, tão somente. É preciso mais! É necessário o implemento das considerações hermenêuticas e as releituras da norma e do Direito – que é autopoiético, segundo Luhmann -, tendo em vista a hipercomplexidade da sociedade atual. 

            Aponta-se que, na Constituição de 1824, o princípio da dignidade era preordenado para o alcance pro homine de restritas pessoas, tais quais, os monarcas e familiares diretos [5]. Outrossim, nas Constituições 1934 e 1946 o incremento da dignidade era apontado sob o título da Ordem Econômica (já na de 1946, ficava na Ordem Econômica e Social), atrelando-se a um conceito indiretamente tutelado, sobressaindo a normativa de “possibilitar a todos existência digna”, mas nota-se que a incidência ficava sob o julgo da Ordem Econômica e Social. A bem da verdade, nunca se teve em toda História do Brasil, a elevação do princípio em debate a conceito com força motriz para rotacionar todo o eixo da Constituição. Tamanho a sua importância no ordenamento jurídico para dirimir as lides vindouras. No entanto, com a Constituição Cidadã, o princípio alcançou vetor essencial para a interpretação da Lex Magna

            Autores como Uadi Lammêgo Bulos, traz sob a maestria de um menestrel, citando Antonio Enrique Pérez Luño, as dimensões do princípio da dignidade da pessoa humana, como sendo: sua dimensão fundamentadora; dimensão orientadora e dimensão crítica. Ainda, elenca o princípio a exegese de decisões de importância ímpar sob o crivo do STF. A saber[6]:

  O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, apresenta-se em três dimensões: 1) dimensão fundamentadora -  núcleo basilar e informativo de todo o sistema jurídico-positivo; 2) dimensão orientadora – estabelece metas ou finalidades predeterminadas, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico-constitucional; 3) dimensão crítica – serve de critério para aferir a legitimidade das diversas manifestações legislativas. (BULOS, 2020)

            Tendo em vista o aspecto descritivo do princípio da dignidade da pessoa humana, é sobressalente que se trata de um vetor indissociável do Direito. E, apenas, com a Constituição de 1988 que chegou ao status imprescindível na operação da hermenêutica, de modo a conduzir o intérprete, seja o postulante, seja o decisor, seja qualquer ator direta ou indiretamente afetado aos ditames da Justiça. 

            Muito embora, não podemos entremear o princípio em debate como um instituto multifacetado e de multiuso. Não se pode descambar ao equívoco de que tudo deve ser tratado pelo viés da dignidade da pessoa humana. É consabido que a Constituição de 1988 é principiológica (embora correntes minoritárias assegurem o seu caráter preceitual), mas isso não é capaz de dizer que o prius interpretativo deva ser única e necessariamente a dignidade da pessoa humana. No próprio art. 1º, inciso V, temos o pluralismo político – que é, em última análise, o pluralismo de ideias, de opiniões, de pautas. 

            Nessa senda, o operador deve se preordenar pelos inenarráveis outros princípios que pautam a nossa Carta de Outubro, a depender do caso concreto,  mas sem se desgarrar com a ideia de que em ricochete, a lesão e ameaça de lesão ao direito, recai, inevitavelmente, na dignidade da pessoa humana ofendida ou em vias de. Com sobriedade e clareza, o princípio da dignidade da pessoa humana serve de limitador aos excessos infundados ou às lacunas preordenadas. A ponderação servirá para sopesar o que de fato é necessário e determinante no caso concreto. Não podendo relegar tudo a uma única coisa, sob falha de esvaziamento da própria Constituição, vez que tudo seria pautado no princípio estudado.

            Diante disso, a temperança é aliada na exegese. Entender o princípio da dignidade como um limitador de excessos e faltas é, primordialmente, atender a sua própria essência – não desamparar a quem de direito. 


[1] Lorberbaum, Y. (2014). Human dignity in the Jewish tradition. In M. Düwell, J. Braarvig, R. Brownsword, & D. Mieth (Eds.), The Cambridge Handbook of Human Dignity: Interdisciplinary Perspectives (pp. 135-144). Cambridge: Cambridge University Press.

[2] Koulagna, Jean. (2020). La dignité humaine au coeur de la tradition biblico-chrétienne. Publié dans N. Y. Soede, P. Poucouta et L. Santedi (éds), Culture, Politique et Foi en Afrique, Abidjan, Ed. 

Paulines, 2019, p. 173-186 – pas de tiré à part

[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. de Guido Antônio de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial: Barcarolla, 2009. 

[4] SILVA, Jorge Pereira da. Direitos fundamentais: teoria geral – Lisboa: Universidade Católica Editora, 2018. Pág. 43.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Comentário ao art. 1º, III. In. CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SALERT, Ingo Wolfgang; Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:Saraiva/Almedina, 2013, p. 123-125. 

[6] BULOS, Uadi Lammegô. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2020.

Sobre o autor
Manoel Correia de Queiroz Neto

Olá, sou advogado nas áreas cível e trabalhista. Pós-graduado em Direito Público pela Damásio, pós-graduado em Português Jurídico - Enfâse em Didática do Ensino pela FACOTTUR; pós-graduado em Direitos Humanos pelo CEI e pós-graduando em Direito Processual Civil pelo Instituto Elpídio Donizetti.

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