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As consequências da judicialização da saúde em meio à pandemia provocada pelo novo coronavírus

Agenda 03/11/2020 às 16:40

Foi a partir da Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição cidadã”, que o Brasil passou a vivenciar momentos significativos e relevantes na construção de um Estado garantidor dos direitos sociais, tornando-se um instrumento essencial na promoção de uma sociedade digna, na medida em que se buscou efetivar as diretrizes constitucionais, garantindo ao cidadão o direito à educação, saúde, trabalho, previdência social, lazer, segurança, etc.

Como ideal de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, tem-se na Constituição Federal a busca pelo significado real de garantia dos direitos fundamentais, cuja democracia e os direitos sociais se destacam.

MEIRELES (2008, p. 88) aduz que:

Direitos sociais são aqueles direitos advindos com a função de compensar as desigualdades sociais e econômicas surgidas no seio de sociedade seja ela de uma forma em geral, seja em face de grupos específicos; são direitos que têm por escopo garantir que a liberdade e a igualdade formais se convertam em reais, mediante o asseguramento das condições a tanto necessárias, permitindo que o homem possa exercitar por completo a sua personalidade de acordo com o princípio da dignidade humana.

Através de fatores, como a mobilização popular, o Poder Público percebeu a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas, a fim de proporcionar ao povo brasileiro o cumprimento das garantias fundamentais tão bem delineadas pelo legislador originário.

Sobre a importância reservada aos direitos sociais SEVERO E ROSA JÚNIOR (2007, p. 69) destacam:

O título II da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) é uma das principais partes da Constituição, pois consagra a tábua de direitos e deveres fundamentais que a comunidade política brasileira reconhece, dentro outros direitos humanos, e assume o compromisso de, conjuntamente com cada um de seus integrantes, possibilitar ao máximo a vivência efetiva e equitativa, bem como a garantia do exercício harmônico de cada um destes direitos e deveres.

Pautado na previsão do texto constitucional, mais precisamente em seu art. 196, o Estado assumiu o dever de proporcionar ao cidadão o direito à saúde de modo universal e igualitário, através da execução de políticas sociais e econômicas.

Sobre o art. 196, da CF/88, observa SCHWARTZ (2001, p. 97):

[...] No referido artigo, encontramos também que o dever do Estado em relação à saúde deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas. Aqui estamos diante de um Estado Interventor, e, também, diante da primazia da ação estatal positiva na defesa do direito à saúde- e jamais da inércia- e conectando-se, essencialmente, à ideia de um direito social da saúde.
 

Assim, diante desta visão garantista, o Sistema Único de Saúde foi criado, especificamente, pela Lei 8.080/90, a qual atribuiu à Administração o dever de executar políticas econômicas na área da saúde, revelando-se como a mais alta expressão de garantia de direito fundamental de acesso isonômico e geral pelo indivíduo.

Nas lições de SALAZAR e GROU (2009, p. 52) sobre a Lei Orgânica da Saúde que disciplina o SUS, tem-se que:

A Lei 8.080/90 tem a função estruturante no que diz respeito às ações de preservação, manutenção e recuperação da saúde do cidadão brasileiro, estabelecendo desde regras de competência, organização e funcionamento, até relativas ao financiamento para viabilização do direito constitucional à saúde. E, dessa forma, constitui a base de todas as outras regras que porventura versem sobre seu conteúdo, ainda que parcialmente, ou mesmo de forma a complementá-la, como é o caso da Lei 9.656/98.

De fato, a Administração Pública conseguiu entregar à sociedade, um sistema único de saúde, o qual não faz distinção para atendimento àquele que o procura, seja rico ou pobre, branco ou negro, carente ou abastado.

Nestes aspectos, veja-se a abordagem do assunto feito por BUCCI (2006, p. 14):

Programa ou quadro de ação governamental, porque consiste num conjunto de medidas articuladas (coordenadas), cujo escopo é dar impulso, isto é, movimentar a máquina do governo, no sentido de realizar algum objetivo de ordem pública ou, na ótica dos juristas, concretizar um direito.

Vislumbra-se que pensar, executar, implementar programas desta natureza se revestem de suma importância no atendimento pelo poder público ao coletivo, de garantir, de forma universal e descentralizada, aos anseios básicos de saúde. Logo, quando a Carta Magna faz alusão ao direito à saúde, rege-se por diversos princípios que se resultam em igualdade no acesso aos serviços, proteção e recuperação da saúde do cidadão.

Contudo, ao longo dos anos, o conjunto de ações promovidas pelos entes públicos, não conseguiu, de forma organizada como se propôs, atender às demandas públicas. É então neste momento que se inicia a judicialização da saúde, quando o Estado, diga-se, a União, os Estados e os Municípios, não possuem formas eficazes de atender as necessidades básicas do povo, ou porque falta boa gerência sobres os recursos públicos, financeiros, ou porque falta organização ou por motivos alheios, como a ingerência de outros poderes sobre a Administração.

SARLET e FIGUEIREDO (2014, p. 119) ensinam que:

A titularidade universal não se confunde com a universalidade de acesso ao SUS, que poderá eventualmente sofrer restrições diante das circunstâncias do caso concreto, sobretudo se tiverem por desiderato a garantia de equidade do sistema como um todo – dando-se prevalência ao princípio da igualdade (substancial), que pode justificar discriminações positivas em prol da diminuição das desigualdades regionais e sociais, ou da justiça social, por exemplo.

Assim, é crescente a procura pelo Poder Judiciário, ora como garantidor de promessas não cumpridas, ora como a única solução vista pelo contribuinte para ver o seu direito resguardado, isto significa dizer, que a judicialização do direito à saúde tem se tornado um meio alternativo para se alcançar um direito previsto em lei, o qual passou a ser executado a partir de uma determinação da autoridade judiciária.

Não há dúvidas de que a via judicial é um meio legítimo para o cidadão exercer a busca por seus direitos, mas não pode ser a única ou a última alternativa para a concretização de um direito, principalmente quando este encontrar-se no rol dos direitos fundamentais à vida. Com esta procura, vem à tona duas indagações: houve falha na condução da política pública pela Administração ou almeja-se o que está fora dos padrões do SUS?

A bem da verdade, há inúmeros fatores que contribuem para as dificuldades do governo, como a corrupção e consequente cortes na saúde, crises políticas, envelhecimento da população, ausência de medidas preventivas e de proteção ao estado físico e mental do cidadão, além do aumento significativo com o cumprimento de demandas judicializadas.

Ora, se é cada vez mais intenso em nosso país o movimento de recorrer ao Judiciário para garantir o fornecimento de um medicamento, equipamento, insumo, vaga em leito de Unidade de Terapia Intensiva - UTI, para resguardar ou restabelecer a saúde do demandante ou até mesmo garantir sua sobrevivência, passa-se a confiar ao Juiz, a árdua função de um gestor da saúde pública.

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Tratando do aumento acelerado das demandas judiciais, BARROSO (2008, p. 383) assevera que:

Sob a Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos. Em seguida, pela circunstância de haver o texto constitucional criado novos direitos, introduzido novas ações e ampliado a legitimação ativa para tutela de interesses, mediante representação ou substituição processual.

Transferir ao poder judiciário a responsabilidade de decidir como deve ser aplicado ou pra quem devem ser utilizados os recursos econômicos ou financeiros da saúde, talvez seja a medida mais buscada para tentar resolver algumas mazelas que suportam a saúde pública, no entanto, esta não é a melhor saída para assegurar a todos a plenitude do exercício da cidadania, sem distinção, e, acima de tudo, com o atendimento das necessidades fundamentais dos cidadãos.

Nessa senda, vejo que a ausência de ações coordenadas do Poder Público culminaram no aumento desenfreado da judicialização da saúde, sendo delegado ao Judiciário as soluções ou os meios alternativos para garantir a eficácia e efetivação na aplicação dos recursos destinados à saúde pública.

É inegável que o Sistema Único de Saúde possui uma estrutura organizada, padronizada e determinada por competências, distribuídas entre a União, os Estados e os Municípios, entretanto, as decisões judiciais e a jurisprudência vem sobrecarregando os Entes Federados, cujas atribuições foram pensadas e direcionadas, com a finalidade de melhor atendimento ao dever público, como exemplo, a atenção básica, de competência precípua do Município e o financiamento e compras de vacinas, de competência da União, hoje exigidas de quaisquer dos Entes Públicos, com fundamento no princípio da solidariedade.

Neste contexto, a indevida utilização dos recursos financeiros na saúde, provoca impactos negativos em toda sociedade, não somente naqueles que venham a necessitar da prestação do serviço público, na medida em que, para garantir o direito de pessoas que recorreram ao judiciário, o gestor se vê compelido a custear serviços de saúde não inseridos no rol de políticas públicas e programas executados pelo Sistema Único de Saúde – SUS ou até mesmo a destinar verbas para o cumprimento de tais decisões judiciais, sob pena de responder por improbidade administrativa, desobediência e outras sanções.

Como consequência, fica mais visível o desequilíbrio nos gastos, na medida em que as decisões dos magistrados põem em xeque a efetividade no atendimento das políticas públicas planejadas com base no orçamento, quando se concede tratamento caríssimo, até mesmo milionário a poucas pessoas, afastando a compra de medicamentos comuns, equipamentos usuais, insumos e realização de procedimentos não padronizados, além de resultar no enfraquecimento do sistema de saúde público e, consequentemente, no atendimento universal e igualitário a que se propôs com a instituição do SUS.

Destaca-se, ainda, outros fatores negativos das decisões judiciais resultantes da falta de expertise ou conhecimento técnico da matéria objeto da lide pelo julgador, uma vez tratar-se de atribuições de especialistas, como médicos, farmacêuticos e outros profissionais da saúde. Àquelas condutas, acabam por prejudicar as diretrizes das políticas públicas voltadas para a área de saúde, aportando sob o nosso pensar o seguinte questionamento: o direito à saúde de um indivíduo pode se sobrepor e ser suficiente para o deferimento de uma súplica quando há toda uma coletividade que busca ver seus direitos garantidos, sem recorrer ao judiciário?

Também resultam como negativo, o atendimento de pedidos considerados impossíveis de serem executados pelo Poder Público, isso por diversos motivos, seja ele de cunho orçamentário, de ausência de registro do fármaco pleiteado nos órgãos de controle e vigilância, de inexistência de comprovação de resultados eficazes, enfim, ocasionando verdadeiro desgaste na condução dos recursos públicos pelos gestores, que acabam por inviabilizar o atendimento efetivo e eficaz previsto no orçamento da saúde.

Caminhando no rumo das adversidades, no dia 11 de março deste ano (2020), a Organização Mundial de Saúde – OMS anunciou que vivemos uma pandemia provocada pela disseminação do novo coronavírus, COVID-19, o qual afeta, diretamente, a área de saúde como um todo.

Sabe-se que o Brasil é autossuficiente em vacinas, possui produção tecnológica avançada, vigilância epidemiológica, muitas pesquisas, mas a forma súbita e veloz em que a transmissão virótica se deu, mostrou, mais cristalinamente, quantos gargalos existem no Sistema Único de Saúde.

São hospitais sem leitos apropriados para atendimento aos pacientes, insuficiência ou nenhum equipamento de proteção individual para uso dos profissionais de saúde, quantidade abaixo da necessária de médicos, enfermeiros e assistentes, enfim, precariedade da saúde.

Além de toda problemática já conhecida, o negacionismo de governantes é um dos fatores que atraem consequências nefastas para toda sociedade, uma vez que àqueles preferem negar a existência e gravidade de tal vírus e deixar de combater a epidemia para promover política partidária.

Na realidade, alguns gestores públicos vislumbraram tratar-se de um inimigo em comum e revelaram-se verdadeiros protagonistas no combate ao grave problema, mostrando-se sensíveis, prudentes e intencionados a resolver, da melhor forma, o dilema posto, evitando a propagação da doença, através de decretos de distanciamento e isolamento social e punindo, de forma mais enérgica, àqueles que se propunham a descumprir políticas públicas voltadas ao bem-estar da coletividade.

A pandemia provocada pelo COVID-19, mostra que não importa a classe social, a idade, o sexo, quando o assunto é contaminação pelo novo coronavírus, porque as desigualdades sociais revelam que os mais pobres sofrem mais consequências negativas, pois estão intensamente mais vulneráveis ao contágio, vez que são mais expostos à agentes nocivos, desde àqueles resultantes da falta de acesso à saúde, saneamento básico, alimentação, como também à educação, moradia, emprego, renda, etc.

Constata-se que em decorrência da pandemia, diminuíram as demandas individuais e aumentaram as demandas coletivas, na medida em que o indivíduo, por medo, por precaução, enfim, por qualquer outro motivo, deixou de procurar o Poder Judiciário para ver a sua necessidade particular ser atendida.

Deste modo, voltaram-se as atenções das grandes maiorias das autoridades de saúde, dos gestores públicos, do legislativo e do judiciário resultado só, a resolução da considerada maior mazela atual, priorizando-se a promoção de políticas públicas para viabilizar a exterminação do vírus ou minimizar os seus efeitos tão negativos, mudando, embora que temporariamente, a mentalidade de muitos atores que compõem a saúde pública de nosso país, promovendo ações que garantem maior ganho para toda coletividade.

Importa consignar que o direito à saúde não é absoluto, ao contrário, com este concorrem outros princípios, os quais devem ser interpretados à luz do texto Constitucional, de modo a garantir que a função jurisdicional seja balizada não apenas no atendimento do pleito individual, mas na reunião de conhecimentos dos profissionais médicos, especialistas da saúde, nas prioridades das filas, nas diretrizes orçamentárias e nas políticas públicas voltadas para o ramo.

Neste contexto, a judicialização deve ser empreendida como meio de organizar as políticas básicas de saúde, pautadas em critérios de evidências científicas e não em uma jurisprudência sentimental, na qual o julgador toma as dores do peticionante e concede-lhe não o direito, mas o desejo de ver o atendimento a sua pretensão, a qualquer custo.

Para BARROSO (2020, p. 89) deve existir um equilíbrio na atuação dos juízes e tribunais na busca de efetivação da meta coletiva.

O problema ganha em complexidade quando há confronto entre o interesse público primário consubstanciado em uma meta coletiva e o interesse público primário que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental … a propriedade industrial pode significar um óbice a uma eficiente proteção da saúde.
 

Nessa toada, não tenho dúvidas de que deve haver harmonia entre os Poderes, com um único objetivo de promover a saúde de forma universal e igualitária para toda a população, pois quando o Ente Público age, isso se dá através de critérios objetivos, não sendo os mesmos critérios utilizados nas decisões judiciais, que, distante do conhecimento da realidade orçamentária do SUS, deferem o pedido de um cidadão em detrimento do atendimento necessário à coletividade, regredindo, sensivelmente, na garantia plena do direito à saúde do povo.

De fato, as necessidades na área de saúde são numerosas, infinitas, diferentemente dos recursos destinados à promoção deste direito, daí é que surge a real intenção de garantir elementos suficientes para proporcionar aproximação e soluções executáveis pelos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, integrando-se com um único objetivo, fortalecer o Sistema Único de Saúde, sobretudo, com medidas de caráter preventivo e não curativo, como vem sendo usado ao longo dos anos.

Tratando de elementos básicos para se garantir a sobrevivência do indivíduo, BARCELLOS (2008, p. 223) diz que:

[...] a Constituição de 1988 efetivamente ocupou-se das condições materiais de existência dos indivíduos, pressuposto de sua dignidade, dedicando-lhe considerável espaço no texto constitucional e impondo a todos os entes da Federação a responsabilidade comum de alcançar os objetivos relacionados com o tema.
 

Não há dúvidas de que a judicialização tem sido um meio encarecedor do sistema de saúde e que nem toda carência do cidadão é dever do Estado, logo, é pensando nestas premissas que nasce o anseio de resolução das dificuldades vivenciadas no Sistema Único de Saúde.

Tal obrigação é tratada por CIARLINI (2013, p. 29) nos seguintes termos:

Não se pode negar que a Constituição Federal, ao mesmo tempo que estabelece a fundamentalidade do direito social à saúde, confere ao Estado a atribuição de promover um conjunto de ações e serviços públicos indispensáveis à redução dos riscos de doenças, bem como de garantir à população ‘o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a promoção, a proteção e a recuperação da saúde’
 

A ideia de que políticas públicas voltadas ao bem-estar da sociedade, garantindo-lhe alimentação balanceada, água de qualidade, saneamento básico e um meio ambiente sustentável, são algumas medidas que interferem diretamente na qualidade de vida e saúde do indivíduo, proporcionando-lhe menos exposições a agentes nocivos e, consequentemente, preservando-lhe a saúde, não era desconhecida, entretanto, foi ressaltada, com a pandemia provocada pelo COVID-19, que estas premissas devem ser conduzidas adiante pelo Poder Público.

Nos dizeres de Appio (2008, p. 136), as políticas públicas se baseiam em:

[...] instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na sociedade com a finalidade de assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo como escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna a todos os cidadãos.

É com este pensamento que a Organização Mundial da Saúde (1946), define a saúde como uma condição de ausência de doença:

A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas no melhor estado de saúde que é possível atingir constitui uma ausência de doença ou enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social.

Importante que se registre, que o funcionamento a contento do SUS, não deve ser apenas uma anseio daquele que dele pretende se beneficiar, e, admitir a existência de um sistema paralelo de internação, consultas, compras de medicamentos e equipamentos na política de saúde, atraem um custo altíssimo para toda a coletividade e fulmina a autonomia do SUS, impedindo sua engrenagem, tão brilhantemente pensada nas legislações atinentes à matéria.

E como deve se desenvolver os julgamentos, VIDAL (2009, p. 109) contribui ensinando sobre como deve se dar a interpretação do julgador:

Se a Constituição é norma jurídica, cabe ao Poder Judiciário aplicá-la diretamente, assegurando a sua eficácia. No campo da hermenêutica clássica, o reconhecimento da Constituição como norma jurídica terá como imediata consequência à aplicação dos métodos tradicionais de interpretação. [...] O papel do intérprete é apenas revelar a vontade do legislador expressada na norma constitucional (ato de conhecimento), aplicando-as, pelo mecanismo da subsunção, às situações concretas.

Não é demais lembrar, que o objetivo maior do Sistema Único de Saúde é garantir uma política pública que atenda, globalmente, a massa da sociedade e, à medida que a judicialização da saúde avança, aceleradamente, também nesta mesma velocidade ocorre a quebra da padronização no atendimento idealizado, da ordem e da cronologia, das prioridades e, por fim, geram o esgotamento financeiro, de suporte técnico e de pessoal, todos destinados, em sua essência, a garantir o pleno funcionamento do SUS.

Sob este aspecto, é de suma relevância ser dito que o Poder Público deve se sujeitar aos princípios norteadores para uma melhor condução na utilização da res publica, sendo, a partir desta ideia que os gastos com a saúde sujeitam-se à cláusula de reserva do possível.

A seguir trazemos à baila o entendimento de RIGO (2007, p. 177)

Os direitos sociais condicionados à prestação do Estado (como é o caso da saúde) sujeitam-se à reserva do possível, que está vinculada ao limite de recursos do Estado, significando, em síntese, que a pessoa somente pode exigir do Estado uma prestação que seja razoável para o Estado cumprir. A cláusula da reserva do possível abrange a possibilidade e o poder de disposição do Estado, colocando os direitos sociais prestacionais na dependência da conjuntura socioeconômica.

Não é demais afirmar que existe uma diferença sutil entre igualdade e isonomia, o qual faz toda diferença na execução das diretrizes do SUS.

Assim, reproduzimos o entendimento de ALMEIDA (2001, p. 35):

[...] todo cidadão é igual perante o Sistema Único de Saúde e será atendido conforme as suas necessidades. Os serviços de saúde devem considerar que em cada população existem grupos que vivem de forma diferente, ou seja, cada grupo ou classe social ou região tem seus problemas específicos, tem diferenças no modo de viver, de adoecer e de ter oportunidades de satisfazer suas necessidades de vida. Assim os serviços de saúde devem saber quais são as diferenças dos grupos da população e trabalhar para cada necessidade, oferecendo mais a quem mais precisa, diminuindo as desigualdades existentes. O SUS não pode oferecer o mesmo atendimento a todas as pessoas, da mesma maneira, em todos os lugares. Se isto ocorrer, algumas pessoas vão ter o que não necessitam e outras não serão atendidas naquilo que necessitam. O SUS deve tratar desigualmente os desiguais.
 

Em conclusão a este pensamento, registro o que escrito por ZAFFARONI (1995, p. 22):

De fato, ante a necessidade de atuação do Estado e a garantia de direitos nunca efetivados pelas políticas públicas inexistentes, registra-se uma crescente "demanda de protagonismo" dirigida aos judiciários, para que estes garantam que o Estado providência prometeu, mas não cumpriu.

A partir da ideia de uma sociedade saudável e da busca pela concretização desta premissa, que se perseguem meios para garantir ao cidadão a realização de seu direito.

Por derradeiro, entende-se de suma importância o entendimento esposado por BARROSO (2020, p. 112)

A igualdade, em sentido material ou substantivo, e especialmente a autonomia (pública e privada) são ideias dependentes do fato de os indivíduos serem livres de privações, com a satisfação adequada de suas necessidades vitais essenciais. Para serem livres, iguais e capazes de exercer uma cidadania responsável, os indivíduos precisam estar além de limiares mínimos de bem-estar, sob pena de a autonomia se tornar uma mera ficção. Isso exige o acesso a algumas prestações essenciais – como educação básica e serviços de saúde –, assim como a satisfação de algumas necessidades elementares, como alimentação, água, vestuário e abrigo. O mínimo existencial, portanto, está no núcleo essencial dos direitos sociais e econômicos, cuja existência como direitos realmente fundamentais.

Nessa senda, ao contrário das ferramentas que vem sendo utilizadas, a via judicial deve ser o caminho excepcional para se alcançar os objetivos traçados para a concretude e efetivação dos serviços públicos de saúde, na medida em que a judicialização individualizada, atrai, em sua essência, a desigualdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APPIO, Eduardo. Controle judicial das políticas públicas no Brasil. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2008.

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade das normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 8 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

BARROSO, Luís Robeto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

BUCCI, Maria de Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2006.

CIARLINI, Álvaro Luís de Araújo Sales. Direito à saúde: paradigmas procedimentais e substanciais da constituição, São Paulo: Saraiva, 2013.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos metodologia científica. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2001.

MEIRELES, Ana Cristina Costa. A eficácia dos direitos sociais. Salvador: Editora Podivm, 2008.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO - http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%Bade/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html.

RIGO, Vivian. Direito de todos e de cada um. In: ASSIS, Araken de, (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde. Porto Alegre: Notadez, 2007.

SALAZAR, Andrea Lazzarini. GROU, Karina Bozola. A defesa da saúde em juízo. Teoria e Prática. São Paulo: Verbatim, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001.

SEVERO, Álvaro Vinícius Paranhos; JÚNIOR, Faustino Rosa. Os direitos da pessoa humana na Constituição Federal de 1988: os direitos sociais podem ser pleiteados na via judicial? In: ASSIS, Araken de (Org.). Aspectos polêmicos e atuais dos limites da jurisdição e do direito à saúde. Porto Alegre: Notadez, 2007.

VIDAL, Jânio Nunes. Elementos da teoria constitucional contemporânea: estudos sobre as constantes tensões entre política e jurisdição. São Paulo: Juspodivm, 2009.

ZAFFARONI, Eugénio Raúl. Poder Judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

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